A GUERRA DE UM
RAPAZ
Alguma atenção à
literatura americana contemporânea permite-nos, sem erro, chegar a uma fácil
constatação: é que, ao contrário do que sucedeu na produção cinematográfica, a
Guerra do Vietname não originou nenhuma obra literária que possa ser
considerada como um verdadeiro “marco”. É certo que foi escrita muita ficção
que tem como cenário os próprios conflitos militares ou os seus efeitos sobre a
população civil americana (recordo-me, a título de exemplo, de obras de Bobbie
Ann Mason, de Robert Stone e, muito em particular, das obras de Tim O’Brien -
talvez o escritor que, de forma mais criativa e pungente, se debruçou sobre
este assunto), mas nenhuma conseguiu obter uma grandeza estética que, de facto,
afronte esta brutal tragédia. Tem-se tentado compreender este facto com
análises sociológicas e psicológicas e chegou-se a apontar a realidade
excessivamente “irreal” de tanta violência como mecanismo bloqueante da
produção literária. Recordo que este “silêncio” sobre a Guerra do Vietname foi
considerado tão significativo que serviu até como um dos principais argumentos
a John Barth para acusar a chamada “geração minimalista” - a de Raymond Carver
e discípulos - de “impotência” e “incapacidade criativa”.
Foi, contudo, um
dos discípulos de Raymond Carver, Tobias Wolff, que publicou, vinte anos depois
do final da Guerra do Vietname, uma obra narrativa sobre este conflito, agora
traduzida com o título No Exército do Faraó, que, não sendo
ainda a “grande” obra sobre esta Guerra, é, sem dúvida, uma das mais
importantes que a literatura americana produziu até hoje.
Quem tiver tido
a sorte de ler o belíssimo A Vida Deste Rapaz do mesmo
autor - e que a Teorema também publicou no nosso país - constata que a
narrativa agora traduzida é a continuação de um projecto autobiográfico que
Tobias Wolff tem em curso (note-se, no entanto, que a inteligibilidade de No
Exército do Faraó não exige a leitura da obra anterior). Em comum com
os autores da geração da chamada - cada vez mais erroneamente - “ficção minimalista”,
o que Tobias Wolff pretende com a sua obra é, de uma forma assumida, “testemunhar”,
isto é, dar, através da escrita, uma “simples voz” a inúmeras existências que a
morte devora de forma anónima. Neste aspecto, a única diferença que existe no
projecto de Tobias Wolff, em relação ao de Raymond Carver, é que este decidiu,
a partir de um certo momento da sua produção literária, assumir, com uma
ambígua humildade, a sua própria vida como mais um “caso” dessas existências
simples, reproduzindo-a numa escrita, em termos estilísticos, admirável e de
uma clássica limpidez.
Não espere o
leitor, em No Exército do Faraó, exemplares feitos épicos ou movimentadas
cenas de guerra. Logo nas primeiras páginas percebe que o sentimento dominante
da guerra é o medo, uma nebulosa obsessão que dilui as referências e coloca
quem o vive num estado de suspensão onde tudo se joga no acaso de uma mina ou
de uma emboscada. Nesse sentido, o subtítulo desta obra, “Memórias De Uma
Guerra Perdida”, e, em particular, o adjectivo “perdida”, tem uma significação
particular: de facto, para uma geração, como a de Tobias Wolff, cujo espírito
bélico foi idealisticamente fermentado pelas obras de um Hemingway, de um James
Jones ou de um Norman Mailer, a Guerra do Vietname foi, antes do mais, um
absurdo desperdício de tempo e de vidas, um criminoso logro em que caiu o seu
ingénuo desejo de “heroicidade”. A situação em que o narrador, na confusão dos
sentimentos contraditórios que a guerra lhe provoca, readquire a “pureza” do
seu “sentimento americano” com a visão da série televisiva “Bonanza”, no meio
do Vietname, é, neste aspecto, exemplar.
A guerra
revela-se como um exercício absurdo e assassino, pois que mata os amigos de
forma súbita e imprevisível (mesmo na guerra a morte parece sempre imprevisível) e obriga a personagem principal e o seus
companheiros a deambularem em cenários que lhe são radicalmente estranhos e
que, por isso, os segregam (são notáveis as páginas em que Tobias Wolff expõe o
terror de ser-se “branco” e “alto” no Vietname), até perderem de todo a noção
do seu papel no meio daquele caos de morte e dor. Tingir estas descrições com
humor, como faz Tobias Wolff, sem que este se revele de uma sobranceria atroz
para com o sofrimento anónimo que o rodeia, é uma tarefa arriscada, mas que é,
de um modo magnífico, conseguida, pela sua subtileza e inteligência. A forma
como descreve o salvamento de um cão, Canh Cho (isto é, em vietnamita, “cão
guisado”), de morrer assado numa fogueira, de como o cria mesmo contra o “kharma”
que o próprio cão parece resignadamente aceitar e, por fim, sem querer, o come,
numa festa de despedida, demonstra, com uma fina ironia, toda a dimensão
trágica e irrisória que tem esta participação dos Estados Unidos na Guerra do
Vietname e, por outro lado, é um excelente testemunho da invulgar capacidade de
Tobias Wolff em dramatizar as situações (uma técnica claramente oriunda da
“short-story”) e, dessa forma, cativar e impressionar o leitor.
Porém, talvez o
fio condutor mais importante de No Exército do Faraó seja o de
revelar por que atalhos a vida nos leva nos processos de crescimento. E, nesse
sentido, a relação da personagem principal com o pai é exemplar. Toda a
descrição da situação em que aquela, depois de regressar do Vietname, e
afectada pelos actos mesquinhos que caracterizaram a sua passagem por esta
guerra (e, neste aspecto, a coragem de Tobias Wolff é assinalável, porque muito
mais doloroso é o confronto com falhas medíocres, do que a assumpção de um Mal
absoluto que mitifica e coloca quem o
reconhece no outro lado do humano), consegue aceitar o pai, um pequeno burlão,
sem escrúpulos e com um tal apetite de viver que desagregou todas as vidas em
seu redor, permite-nos perceber uma coisa muito simples e essencial: é que
qualquer homem passa necessariamente pelo momento da reconciliação com o pai e
que isto prenuncia a morte deste e o início da verdadeira idade adulta e
solitária para o filho.
Publicado no Público em 1997.
Título: No Exército do Faraó
Autor: Tobias Wolff
Tradutor: Isabel Paula
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1997
290 págs., esg.
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