EM LOUVOR DA INSENSATEZ DE PORTUGAL
As descobertas dos leitores derivam muitas vezes de acontecimentos
fortuitos ou, pelo menos, resultantes de circunstâncias que não se podem
considerar como estritamente relacionadas com o simples desejo da fruição literária:
não tenho dúvidas que as razões que levaram ao aparecimento em português deste
romance de J. J. Slauerhoff, O Reino Proibido, estão relacionadas
com o facto intrigante de ser uma obra passada em Macau, tendo como personagem
principal o bardo pátrio, e com a legítima curiosidade de saber que tratamento
literário daria este autor holandês a temas da história portuguesa.
Nas ínfimas referências que se consegue obter no nosso país sobre
literaturas mais periféricas, pouco ou quase nenhumas informações se descobrem
sobre este autor. Foi possível, no entanto, saber que J. J. Slauerhoff foi um
poeta com alguma notoriedade na chamada geração modernista neerlandesa e que
fez algumas incursões no domínio da narrativa, de onde se destaca este romance
agora traduzido.
Antes do mais, deve já referir-se que O Reino Proibido é uma obra de
inegáveis qualidades estéticas e literárias, de leitura muito aliciante, e não
uma mera curiosidade histórica. Um dos seus elementos mais fascinantes é a
complexidade da estrutura narrativa, constituída por várias tramas, algumas
delas com diversos narradores, que se vão entrecruzando num tecido comum. Além
disso, em cada trama autónoma, mas confluente em termos temporais, aparece
indícios que recorrem para outras, provocando, por isso mesmo, uma ambiência
perturbante e originando, no leitor, uma expectativa que, curiosamente, morre
em si mesmo. E este aspecto não só lhe cria um sincero mal-estar, como o obriga
a interrogar-se sobre o elemento mais intrigante deste romance: o seu sentido.
Apenas quando o leitor chega às últimas páginas de O Reino Proibido é que confirma aquilo que foi
pressentindo ao longo do romance, isto é, que o sentido que o estrutura é
puramente formal. De facto, este tem uma construção narrativa muito próxima de
um complexo metonímico em que a sucessão (e justaposição) das tramas provoca o
efeito poético essencial. Desta opção estética decorre, nos dias de hoje, certa
dificuldade na sua leitura e, por isso, teria alguma utilidade, em termos
editoriais, que esta obra tivesse uma introdução que a integrasse nas correntes
literárias e estéticas dos anos vinte e trinta, de onde é originária, e que, de
certo modo, questiona e confronta.
Como é referido no texto de apresentação da contracapa, o romance conflui
para uma situação em que um telegrafista naval irlandês se vê a percorrer os
mesmos passos que Camões seguiu em Macau e na China, chegando mesmo a enfrentar
o seu espectro. Como se o nosso poeta necessitasse, por razões e artes
demoníacas, de entregar o testemunho do seu doloroso destino a um homem do
presente século, atraindo-o e envolvendo-o com a sua sombra, de molde a dar-lhe
a compreender o sentido “real” da sua
obra. Porém, esta linha narrativa de O Reino Proibido é também somente
aludida: a personagem contemporânea, depois de, por momentos, se “transfigurar”
no poeta, numa alucinante deambulação pela China e por Macau (para a qual não é
insignificante o uso do ópio), esquiva-se a essa “presença” dilacerante como se
tivesse pressentido que o destino de Camões era impossível e insustentável.
Perante esta ausência de sentido explícito, o que fica subjacentes à(s)
própria(s) trama(s) de O Reino Proibido é a substância que a(s) fermentou: o destino de Macau e,
completarmente, de Luís de Camões. De facto, a imagem que este romance
transmite da fundação de Macau, da sua situação como colónia extrema de
Portugal ao longo dos séculos, é, num universo borbulhante de conspirações,
ódios e brutalidade, de uma desumana epopeia no seu estatuto de ponta-de-lança
para a “conquista” (no sentido
político, económico e cultural) do Extremo Oriente.
Em paralelo, é dada à figura do poeta nacional um percurso que conflui para
este estatuto de Macau: forçado ao exílio pelo poder político - em consequência
de um conflito com o Príncipe português, devido a amarem a mesma mulher -, mas,
ao mesmo tempo, aceitando este destino por corresponder à sua ânsia por “perder-se” em conquistas nos confins do Império,
Camões é, durante a sua viagem para o Oriente, obrigado a substituir a espada pela
pena (a imagem que se transmite do nosso épico é que este se sente “tentado” pela poesia, mas não a deseja de forma consciente)
como forma de compreender as razões do seu destino (e com ele, o da sua pátria)
naquelas paragens.
Neste sentido, percebe-se que “compreender” (a intenção de Camões) é um
projecto mais ambicioso do que “conquistar” (as razões da fundação e da
existência de Macau), mas que, no essencial, pretende atingir o mesmo fim: “absorver” os universos radicalmente distintos das
civilizações orientais e, ao mesmo tempo, dar sentido à motivação da diáspora
nacional e ao seu projecto expansionista. E o resultado final dos dois
projectos é, tal como o seu percurso, similar: a cidade de Macau que o
telegrafista vem a conhecer, no princípio do século, é uma “cidade-fantasma”,
abandonada pelo país colonizador, sem sentido histórico e à deriva no tempo,
uma espécie de “no man’s land” entre
o Ocidente e o Oriente; quanto a Camões, a desmesura do seu projecto,
transformou-o numa “alma-penada” caminhando
pelas estepes desérticas (porque “insignificantes”) da China, em busca de
regressar à vida, isto é, à sua pátria que não passa de um “sonho” que o repudia e abandona. O seu poema
épico é, por isso, uma obra falhada nos seus fins, visto que o Oriente se
recusa a tornar-se redutível à compreensão do Poeta e este sente-se forçado a
utilizar, por circunstâncias históricas e paradigma cultural, a mitologia
clássica (um território não-humano) para tentar compreender a insensatez do
destino nacional.
E compreende-se, então, as razões profundas porque Macau e Camões exercem
um enorme fascínio sobre J.J Slauerhoff: existe neles uma absurda insensatez
que não só os torna inevitavelmente “perdedores”, como os transfigura, pelo seu
não-sentido, em gestos históricos gratuitos, isto é, só compreensíveis e
louváveis em termos estéticos.
Em conclusão, O Reino Proibido é uma
obra que, para além de inúmeras interpretações romanescas do nosso Épico, que decerto
deleitarão os nossos camonianos, se revelará de uma estranha e original beleza,
mergulhando o leitor em universos impressionistas e fantasmagóricos que parecem
reavivar as neblinas que percorrem inúmeros trechos do destino nacional e lhe
darão uma aliciante, e respeitável, no seu questionamento, perspectiva sobre os
caminhos para que a História empurrou este povo à beira-mar plantado.
Publicado no Público em 1997.
Título: O Reino Proibido
Autor: J. J. Slauerhoff
Tradução: Patrícia Couto e Arie Pos
Editor:
Editorial Teorema
Ano: 1997
198 págs., € 1,10
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