O PRAZER
MORTÍFERO
Em
Portugal, quem se dedica à leitura, profissionalmente, de obras de autores
estrangeiros, poucas surpresas tem. Não se veja nesta afirmação nenhum lamento,
mas a constatação de um estado natural das coisas. De facto, as obras de autores
estrangeiros, quando são traduzidas e editadas no nosso país, já foram
analisadas por agentes literários, publicadas por editoras de outros países com
linhas editoriais similares às nossas, comentadas em revistas literárias de
repercussão internacional, etc., e, por conseguinte, os editores portugueses,
quando se decidem pela sua publicação, já têm algumas garantias – e, por
consequência, também os nossos leitores - quanto à sua qualidade literária.
No entanto,
se esta é a regra geral, por vezes, aparecem traduzidas e editadas no nosso
país obras que não efectuam o “circuito internacional” da edição - opção que é
sempre de algum risco para os editores portugueses. É o que sucede, com algum
sucesso, com a Editorial Teorema que, uma vez por outra, arrisca a publicação
de obras de autores pouco conhecidos - mesmo nos seus países de origem - e que
se revelam como verdadeiras “descobertas” literárias.
É o caso do
romance O Tédio de Um Homem Ocupado de Michel Bonnefoy, um escritor
chileno que, até no seu próprio país, está longe de ser reconhecido como um
autor de primeiro plano. Confesso que, no trabalho de pesquisa que efectuei
sobre o autor, quase nada descobri: a acrescentar à ficha biográfica que vem na
contracapa da edição portuguesa, apenas fiquei a saber que a edição original do
romance agora traduzido é de 1998 (e não, como vem indicado na referida ficha,
provavelmente por gralha, de 1988) e que já no corrente ano, publicou um novo
romance, intitulado Vienen del Miedo. Porém, esta situação não é motivo de grande
admiração: deve ter-se presente que a literatura chilena é, nos dias de hoje,
uma das mais estimulantes e diversificadas da América do Sul e que, por isso
mesmo, um alfobre literário particularmente rico.
Não se quer
dizer com isto que O Tédio de Um Homem Ocupado seja uma obra-prima. Mas, sem
sombra de dúvida, é um romance bem interessante, com méritos estilísticos
inquestionáveis (a economia do estilo, onde cada palavra parece encaixar-se
como num “puzzle”, comprova existir um trabalho oficinal conseguido), com uma
ambiência e uma trama aliciantes, e uma visão peculiar (pressente-se que ainda
“em articulação”) da actual sociedade.
O romance constrói-se
em redor de um proprietário de uma “casa de prazer” de invulgares dimensões (e
onde é possível “adquirir” todo o tipo de prazeres, tanto intelectuais como
físicos), numa cidade indefinida (por pormenores civilizacionais que, de certo
modo, escaparam ao controle do autor, fica-se com a suposição de que está
situada na América do Sul), que espera, com alguma ansiedade, que o seu filho,
um jovem no final da adolescência, volte a aparecer, depois de dez dias sem
nada saber dele.
É evidente
que esta “casa de prazer” e a própria situação vivida pela personagem principal
têm o sentido de um “microcosmos”. Percebe-se, por conseguinte, que, nesta
visão do mundo, existe, por um lado, uma concepção das relações entre as
pessoas assente numa espécie de vínculo empático ou passional resultante de uma
busca conjugada de prazer (note-se que esta “busca conjugada de prazer” não
está estritamente confinada à sexualidade), associada a uma componente, mesmo
que de importância residual, de “troca material” (por exemplo, beleza física
por dinheiro ou estatuto social por sexo); por outro, que nada existe de
exercício intelectual que não tenha uma componente de gratuitidade lúdica.
De qualquer
modo, em todas as personagens do romance parece existir uma motivação
determinante: a de adquirir uma fatia do “bolo de prazer” que a vida traz; e
que essa conquista não só supera qualquer tipo de regras morais com que se
procura condicionar as relações de sociabilidade como sujeita toda a vivência
quotidiana. Nesta visão do mundo, nada existe de generosidade nem de motivação
que ultrapasse um prazer egocêntrico. A única excepção no romance parece ser a
inquietação expectante com que a personagem principal aguarda o filho: mas até
esta receberá como resposta um inebriante e brutal “fascínio pela morte”- que é
a prova mais cabal de que a “busca do prazer” já não tem limites.
Existe em O
Tédio de Um Homem Ocupado, como é óbvio, uma componente de denúncia,
hábil e elaborada, da sociedade contemporânea. Porém, - e este é o aspecto
menos conseguido da obra de Michel Bonnefoy - a visão da sociedade
contemporânea que se espelha nas suas páginas peca por excesso de estatismo e
por falta de tipificação. De facto, não se tem em consideração que essa “busca
de prazer” é, para o bem e para o mal, um elemento decisivo da dinâmica
dialéctica da actual sociedade; por outro, que essa mesma “busca do prazer” tem
sido uma constante de qualquer época e que, desde sempre, ela própria criou,
como roupagem envolvente, a sua teia de interditos.
Publicado no Público em 2000.
Título: O Tédio De Um Homem Ocupado
Autor: Michel Bonnefoy
Tradução: Luís Filipe Sarmento
Editor: Editorial Teorema
Ano: 2000
159 págs., esg.
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