quarta-feira, 26 de agosto de 2015

NADINE GORDIMER 2

 
 



 
O CONTINENTE DA PELE
 
- Quando me tocavas a princípio (e ela pegava-lhe na mão e espalmava-a na anca), isto era uma luva. Verdade. A cor negra era uma luva. E por toda a parte, pelo teu corpo todo, a cor negra era como um manto. Uma coisa que Deus te deu para te vestires. Por baixo, tinhas que ser como eu (...).Branco como eu; porque foi isso que me ensinaram, quando me quiseram ensinar a não ter preconceitos: por baixo são tal e qual como nós. Ninguém dizia que nós eramos tal e qual como tu.
 
O sorriso tornou-se mais acentuado.- Também não seria verdade. Serias tu que ficavas com uma pele a menos.
 
- Se se é branco, falta sempre uma pele. Coisa que eles nunca dizem.
 
Agora, porém, ela diz tudo. - Quando estamos juntos, quando tu estás dentro de mim, então, nada falta. Nadine Gordimer, Um Capricho da Natureza.
 
Um amigo meu, que concebe as sociedades como uma espécie de circuito viário, entende que, sempre que se fala de liberdade, está-se a falar de “liberdade de circulação”. Nesse sentido, a sociedade sul-africana é provavelmente uma das que impõe mais atrito: ao crispar-se numa hierarquização segregativa, esta sociedade imobiliza, impossibilitando o jogo fascinante dos disfarces, das transfigurações, do desvio à norma. E tal sucede, porque obriga a que todos os seus membros se definam, inequívoca e definitivamente, perante o colectivo, perante “aquele real”. Nada circula e não há fuga possível - é esta a grande vitória do apartheid: nenhum gesto pode ser exterior à presença ofuscante dessa realidade imposta.
 
Por isso, a literatura sul-africana, de origem branca ou negra, afirma, de forma constante, a sua impossibilidade em se esquivar ao empenhamento social e político. Por outro lado, devido a essa mesma dificuldade de circulação, a literatura vê-se obrigada a enfrentar o código condicionante da realidade, necessitando, por conseguinte, na maior parte das vezes, de assumir uma configuração realista. Bem exemplar disto é a obra de Nadine Gordimer, a ficcionista mais prestigiada da Africa do Sul.
 
Se outros méritos não tivesse, a obra de Nadine Gordimer tem o de não corresponder ao maniqueísmo social com um outro literário e de procurar, não abandonando um acentuado empenhamento anti-apartheid, libertar-se de uma tipologia redutora de caracteres e revelar as tensões e as emoções, isto é, a vitalidade, de uma realidade que se quer morta. Em resumo, e com alguma (má) ironia, pode afirmar-se que o retrato de Nadine Gordimer da sociedade sul-africana não é tanto a preto e branco mas a preto “no” branco.
 
O último romance da autora, Um Capricho da Natureza, manifesta algumas inovações no quadro habitual da sua produção literária, em particular pela sua maior abrangência de intenções, por um maior rigor e concentração no que é fundamental para a caracterização da realidade africana e pelo recurso a certas formulações narrativas que pretendem ascender à dimensão mítica.
 
O romance resume-se à biografia de Hillela - uma belíssima mulher branca nascida na África do Sul - desde a sua infância, em casa de duas tias com posições na aparência opostas em relação à sociedade sul-africana (a sua mãe fugiu com um português, fadista e “bailarino”, para Moçambique e o pai, caixeiro-viajante na Rodésia do Norte, não tem modo de vida para manter a filha), até adulta e casada com um Chefe de Estado africano. A narração da sua vida vai permitir à autora encenar os conflitos dilacerantes que, não só a África do Sul, mas todo o continente africano, viveu nas últimas décadas (o colonialismo e a má consciência disfarçada do colono, as primeiras reacções contra a segregação racial e a respectiva repressão, as ambiguidades do liberalismo branco e o início da luta armada, a prisão ou o exílio e os atentados contra os líderes africanos, as independências e o pan-africanismo, as atribulações tribais e ideológicas dos Novos Estados, o auxílio inconsequente ou oportunista do “bloco socialista” e dos E.U.A., etc.), chegando mesmo a assumir como real algum devir, tal como a extinção do apartheid e o aparecimento de uma maioria regra na África do Sul.
 
Mas o que caracteriza sobretudo Um Capricho da Natureza é facto de ser um romance sobre a “pele”. A pele como lugar nevrálgico de aproximação ou afastamento dos outros. E, acima de tudo, a pele como meio particular de conhecimento, não só porque determina, em primeira instância, o modo de olhar dos outros e para os outros, mas também porque, sensorialmente encaminha para o lugar justo.
 
De facto, é a pele que estabelece a memorável evolução de Hillela. Ela aproxima-se ou implacavelmente se afasta, motivada por um furor sexual que a obstina em desconhecer tudo o que não sente através da pele, quando o seu corpo ama. O desejo e o prazer são o seu fundamental método de aprendizagem e o sexo é a energia motriz que a desloca.
 
Vai ser a sua paixão por Whaila, o militante revolucionário da África do Sul, que lhe dará consciência do sentido do seu percurso: a necessidade de “completar” a sua pele branca, através de uma junção de pigmentações, criando uma unidade mítica prenunciadora de uma nova humanidade, onde cada homem e cada mulher, com as suas especificidades e as suas “colorações”, fossem inteiramente soberanos (não será o “capricho da natureza”, que alude o título e a epígrafe, essa capacidade trópica de Hillela em assumir o olhar e a estar da negritude?).
 
Mas essa unidade, essa fusão de dois seres míticos, é, a seu modo, uma irrealidade neste mundo: o atentado, em que morre Whaila e Hillela se salva por um acaso, é a consumação desta verdade. O que vai restar desta relação “arco-íris” é uma filha, Nomzano (a homónima de Winnie Mandela), modelo internacional expondo a sua pele exótica de cidade em cidade, e a absoluta convicção de Hillela de que tudo terá de fazer para acabar com o mundo que tornara a sua relação com Whaila impossível.
 
Percebe-se então que o percurso de Hillela se identifica com o percurso de África. É, por isso, que aquela unidade mítica que ela sempre procurou se irá reencarnar numa relação com um Chefe de Estado africano; e ainda que, com ele, irá regressar à terra de Whaila, expurgada do apartheid e governada por uma maioria negra. Mas aqui sabemos nós que, por muito plausível e real que a arte de Nadine Gordimer pretenda configurar esse tempo, entrámos no registo do puro desejo da autora e que aquela só serve para exorcizar uma realidade que há muito já devia ter desaparecido.
 
Publicado no Expresso em 1989.
 
(Foto da Autora de Guillermo Arias).
 
 
Título: Um Capricho da Natureza
Autor: Nadine Gordimer
Tradutor: Miguel Serras Pereira
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
460 págs., € 4,90



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