O CONTINENTE DA PELE
- Quando me tocavas a princípio (e ela pegava-lhe
na mão e espalmava-a na anca), isto era uma luva. Verdade. A cor negra era uma
luva. E por toda a parte, pelo teu corpo todo, a cor negra era como um manto. Uma
coisa que Deus te deu para te vestires. Por baixo, tinhas que ser como eu (...).Branco
como eu; porque foi isso que me ensinaram, quando me quiseram
ensinar a não ter preconceitos: por baixo são tal e qual como nós. Ninguém dizia
que nós eramos tal e qual como tu.
O
sorriso tornou-se mais acentuado.-
Também não seria verdade. Serias tu que ficavas com uma pele a menos.
- Se se é branco, falta sempre uma pele. Coisa que
eles nunca dizem.
Agora, porém, ela diz tudo. - Quando estamos
juntos, quando tu estás dentro de mim, então, nada falta. Nadine Gordimer, Um
Capricho da Natureza.
Um
amigo meu, que concebe as sociedades como uma espécie de circuito viário, entende
que, sempre que se fala de liberdade, está-se a falar de “liberdade de circulação”.
Nesse sentido, a sociedade sul-africana é provavelmente uma das que impõe mais
atrito: ao crispar-se numa hierarquização segregativa, esta sociedade imobiliza,
impossibilitando o jogo fascinante dos disfarces, das transfigurações, do desvio
à norma. E tal sucede, porque obriga a que todos os seus membros se definam, inequívoca
e definitivamente, perante o colectivo, perante “aquele real”. Nada circula e não
há fuga possível - é esta a grande vitória do apartheid: nenhum gesto pode ser
exterior à presença ofuscante dessa realidade imposta.
Por
isso, a literatura sul-africana, de origem branca ou negra, afirma, de forma
constante, a sua impossibilidade em se esquivar ao empenhamento social e político.
Por outro lado, devido a essa mesma dificuldade de circulação, a literatura vê-se
obrigada a enfrentar o código condicionante da realidade, necessitando, por
conseguinte, na maior parte das vezes, de assumir uma configuração realista. Bem
exemplar disto é a obra de Nadine Gordimer, a ficcionista mais prestigiada da
Africa do Sul.
Se outros
méritos não tivesse, a obra de Nadine Gordimer tem o de não corresponder ao
maniqueísmo social com um outro literário e de procurar, não abandonando um
acentuado empenhamento anti-apartheid, libertar-se de uma tipologia redutora de
caracteres e revelar as tensões e as emoções, isto é, a vitalidade, de uma
realidade que se quer morta. Em resumo, e com alguma (má) ironia, pode
afirmar-se que o retrato de Nadine Gordimer
da sociedade sul-africana não é tanto a preto e branco mas a preto “no” branco.
O último
romance da autora, Um Capricho da Natureza, manifesta algumas inovações no quadro
habitual da sua produção literária, em particular pela sua maior abrangência de
intenções, por um maior rigor e concentração no que é fundamental para a
caracterização da realidade africana e pelo recurso a certas formulações
narrativas que pretendem ascender à dimensão mítica.
O romance
resume-se à biografia de Hillela - uma belíssima mulher branca nascida na África
do Sul - desde a sua infância, em casa de duas tias com posições na aparência
opostas em relação à sociedade sul-africana (a sua mãe fugiu com um português,
fadista e “bailarino”, para Moçambique e o pai, caixeiro-viajante na Rodésia do
Norte, não tem modo de vida para manter a filha), até adulta e casada com um
Chefe de Estado africano. A narração da sua vida vai permitir à autora encenar os
conflitos dilacerantes que, não só a África
do Sul, mas todo o continente africano, viveu nas últimas décadas (o colonialismo
e a má consciência disfarçada do colono, as primeiras reacções contra a segregação
racial e a respectiva repressão, as ambiguidades do liberalismo branco e o início
da luta armada, a prisão ou o exílio e os atentados contra os líderes africanos,
as independências e o pan-africanismo, as atribulações
tribais e ideológicas dos Novos Estados, o auxílio
inconsequente ou oportunista do “bloco socialista” e dos E.U.A., etc.), chegando
mesmo a assumir como real algum devir, tal como
a extinção do apartheid e o aparecimento de uma maioria regra na África do Sul.
Mas o
que caracteriza sobretudo Um Capricho da Natureza é facto de
ser um romance sobre a “pele”. A pele como lugar nevrálgico de aproximação ou
afastamento dos outros. E, acima de tudo, a pele como meio particular de conhecimento,
não só porque determina, em primeira instância, o modo de olhar dos outros e
para os outros, mas também porque, sensorialmente encaminha para o lugar justo.
De
facto, é
a
pele que estabelece a memorável evolução de Hillela. Ela aproxima-se ou implacavelmente
se afasta, motivada por um furor sexual que a obstina em desconhecer tudo o que
não sente através da pele, quando o seu corpo ama. O desejo e o prazer são o
seu fundamental método de aprendizagem e o sexo é a energia motriz que a desloca.
Vai
ser a sua paixão por Whaila, o militante revolucionário da África do Sul, que
lhe dará
consciência
do sentido do seu percurso: a necessidade de “completar” a sua pele branca,
através de uma junção de pigmentações, criando uma unidade mítica prenunciadora
de uma nova humanidade, onde cada homem e cada mulher, com as suas
especificidades e as suas “colorações”, fossem inteiramente soberanos (não será
o “capricho da natureza”, que alude o título e a epígrafe, essa capacidade trópica
de Hillela em assumir o olhar e a estar da negritude?).
Mas
essa unidade, essa fusão de dois seres míticos, é, a seu modo, uma irrealidade neste
mundo: o atentado, em que morre Whaila e Hillela se salva por um acaso, é a
consumação desta verdade. O que vai restar desta relação “arco-íris” é uma
filha, Nomzano (a homónima de Winnie Mandela), modelo internacional expondo a sua
pele exótica de cidade em cidade, e a absoluta
convicção de Hillela de que tudo terá de fazer para acabar com o mundo que
tornara a sua relação com Whaila impossível.
Percebe-se
então que o percurso de Hillela se identifica com o percurso de África. É, por
isso, que aquela unidade mítica que ela sempre procurou se irá reencarnar numa
relação com um Chefe de Estado africano; e ainda que, com ele, irá regressar à
terra de Whaila, expurgada do apartheid e governada por uma maioria negra. Mas
aqui sabemos nós que, por muito plausível e real que a arte de Nadine Gordimer
pretenda configurar esse tempo, entrámos no registo do puro desejo da autora e
que aquela só serve para exorcizar uma realidade que há muito já devia
ter desaparecido.
Publicado
no Expresso em 1989.
(Foto da Autora de Guillermo Arias).
Título:
Um Capricho da Natureza
Autor:
Nadine Gordimer
Tradutor:
Miguel Serras Pereira
Editor:
Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
460 págs.,
€ 4,90
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