A ORDEM AFECTIVA
No final dos anos vinte, revelou-se em Inglaterra um
conjunto significativo de escritoras (Ivy Compton-Burnett, Rebecca West, Rosamond
Lehmann e Elizabeth Bowen) que, de forma diversa, vai contribuir para uma
inflexão na produção romanesca, ao abandonar certas técnicas narrativas mais
“experimentais” - características do trabalho literário da geração anterior,
como, por exemplo e ainda dentro do universo feminino, o de Virginia Woolf -,
para, no quadro do romance realista, dar-lhe um registo mais intimista,
centrando a sua temática nos conflitos e pulsões que aparecem dentro da
instituição familiar.
Talvez, entre elas, a que mais próximo ficou da
linearidade diegética e da omnisciência do narrador, típicas das construções romanescas
tradicionais, foi a irlandesa Elizabeth Bowen. Porém, a coesão temática, a argúcia
e a complexidade no tratamento psicológico das personagens, a constante utilização
de um humor subtil, como forma de contenção à propensão lírica, dão uma inegável
qualidade literária à sua obra. Do seu conjunto, que se diversifica pelo
romance, a colectânea de contos e o ensaio, destacam-se os romances publicados
antes da II Guerra Mundial, The House in Paris e o que agora foi
traduzido e editado com o título de A Morte do Coração.
Como é habitual na ficção de Elizabeth Bowen, a personagem
central desta obra é uma figura feminina com uma sensibilidade desajustada aos
comportamentos sociais da alta burguesia inglesa. Neste caso, é uma
adolescente, Portia Quayne, oriunda de uma família com um modo de vida
incaracterístico e marginalizado em relação aos valores da sociedade
eduardiana; quando fica órfã, vai viver com a família de um meio-irmão, mais
velho, que nunca perdoou ao pai o abandono da mãe e que, por isso mesmo, se
sente incomodado com a presença imposta da irmã, filha do segundo casamento.
A necessidade de afecto e de ser reconhecida por este
mundo, antevisto como perfeito, leva Portia Quayne a ser particularmente
atenta, descrevendo num diário pessoal, com a objectividade resultante de lhe
ser “exterior”, o modo de ser daqueles que a rodeiam. Porém, esse olhar “transcrito”,
quando descoberto pela sua cunhada, Anne, que o lê de um modo furtivo,
revela-se insuportável para os seus familiares e amigos: aquela sociedade não
resiste a um olhar “exterior”, porque este irá confrontá-la com a imagem que
faz de si mesma, provocando nela nebulosidades e perturbações.
A Morte do Coração
parece, portanto, centrar-se no tema trivial da “educação sentimental” de uma
adolescente e das dificuldades da sua integração no universo adulto. No
entanto, a forma como é tratado este tema revela, ao mesmo tempo, um dos
limites e uma das características fascinantes da obra de Elizabeth Bowen: é que
os comportamentos sofisticadamente hipócritas destas personagens sâo encarados
como consequências defensivas das tensões provocadas pelos mecanismos sociais
e, por isso, a “realidade” com que qualquer adolescente terá obrigatoriamente
de se confrontar.
De facto, não cabem na sociedade institucional as
intensidades afectivas: é o conhecimento “experimentado” desta certeza que
determina o comportamento, repleto de “esquecimentos” e “fugas”, da cunhada de Portia
Quayne. Por isso, a personagem principal vai perceber que, se os afectos, e até
o próprio desejo, a impelirem a rebelar-se contra os códigos da sociabilidade, irá
ter, de forma inevitável, que caminhar por uma “via sacra” que culminará numa
desagregação emocional (bem caracterizada pela figura de Eddie, o rapaz por
quem Portia Quayne se apaixona) ou numa situação de repúdio social que originará,
em contrapartida, um maior desejo de integração e de submissão. É esta “via sacra”
que Portia Quayne descobre nas suas férias em Seale-on-Sea, quando o seu amado
corresponde as solicitações fáceis de uma sua amiga, ou, mais tarde, quando
percebe que este comenta, na mais natural das cumplicidades, o seu “diário” com
os seus familiares.
É evidente que esta “ordem afectiva” está muito confinada
a um quadro de valores sociais que Elizabeth Bowen parece encarar como imutáveis
e que, contudo, a II Guerra Mundial destroçaria por completo (o que
justificava, eventualmente, uma introdução situante da obra na edição portuguesa).
Porém, a visão lúcida e pessimista que A Morte do Coração transmite da
impossibilidade de afirmação dos afectos no exterior dos circuitos e códigos
sociais mantem-se, como não poderia deixar de ser, ainda de todo actual.
Publicado no Público em 1993.
Título: A Morte Do Coração
Autor: Elizabeth Bowen
Tradutor: Isabel Braga
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1993
373 págs.,€ 13,75
Sem comentários:
Enviar um comentário