O TRAVESTISMO DA REALIDADE
Durante a ditadura de Fulgêncio Batista,
fortemente sustentada pelos Estados Unidos, Cuba viveu um período de grande
efervescência intelectual. Como aconteceu em tantas outras regiões e países, o
descontentamento com a situação socio-económica e com a exploração desenfreada
norte-americana impeliu os intelectuais cubanos para um intenso debate
ideológico, com inevitáveis reflexos políticos e estéticos. A revolução
castrista - que, na sua fase inicial, foi bastante apoiada pelas massas
populares e pelos intelectuais - permitiu o pleno florescimento deste viveiro,
com manifestações significativas nos campos da música, das artes plásticas e da
literatura. Foi nesta altura que, no domínio da narrativa, se afirmaram, com as
suas obras-mestras, autores que já antes tinham publicado, como é o caso de
Virgilio Piñera, Alejo Carpentier e José Lezama Lima, marcando de um modo decisivo
a posterior produção literária cubana, e desabrochou uma nova geração de
ficcionistas em que se destacaram autores como Guillermo Cabrera Infante,
Reinaldo Arenas e Severo Sarduy.
Severo Sarduy nasce em 1937, em Camarguey. É nesta
cidade que faz os seus primeiros estudos e, ainda muito novo, publica os
primeiros poemas. Em 1956, desloca-se para Havana, para estudar Medicina.
Porém, o ditador Fulgêncio Batista, em consequência da contestação estudantil,
resolve encerrar a Universidade, e Severo Sarduy aproveita esta circunstância
para se dedicar à actividade literária com mais intensidade, colaborando em
diversas revistas, e ao estudo da arte cubana e latino-americana.
Com o triunfo da revolução, Severo Sarduy
participa activamente na vida intelectual, colaborando nos jornais “Diario
Libre” e “Lunes de Revolucion” e publicando os seus primeiros contos. Em 1960,
ganha uma bolsa para vir estudar História de Arte para a Europa, fixando-se de
início em Madrid. Passados poucos meses, no entanto, vai para Paris, para
estudar na Escola do Louvre e na Sorbonne. Integra-se rapidamente na vida
intelectual francesa, estabelecendo relações de amizade com François Wahl,
Roland Barthes, Jacques Lacan e Philippe Sollers. Em 1965, participa como colaborador
na prestigiada revista “Tel Quel”. Ao mesmo tempo, desenvolve uma ampla
colaboração em alguns dos jornais e revistas literárias latino-americanas
(“Mundo Nuevo”, “Plural”, “Sur”, etc.), e integra, como conselheiro editorial,
a equipa de Editions du Seuil, contribuindo, dessa forma, para o “boom” da
literatura latino-americana em França (segundo consta, foi por sua indicação
que se publicou Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquez naquela editora).
Em 1963, em Barcelona, é editado a sua primeira
narrativa, Gestos, onde já se tornavam visíveis alguns aspectos
característicos da sua obra: uma forte componente experimental, um enorme
interesse por ambiências marginais (para o que não deve ser estranho a sua
mestiçagem chino-afro-ameríndia) e um acentuado fascínio pelo “kitsch”. É,
contudo, com a sua segunda obra narrativa, De donde son los cantantes, que
obtem reconhecimento como narrador nos meios intelectuais latino-americano e
francês (no próprio ano da sua edição em castelhano, 1967, é traduzida para
francês e editada). De seguida, Severo Sarduy orienta-se para a poesia,
publicando três livros. Mas é com a publicação da sua terceira narrativa, Cobra
(1972), agora editada no nosso país, e com o ensaio intitulado Barroco
(1974), que ficam definidos com rigor os parâmetros estéticos e teóricos da
obra de Severo Sarduy. As suas obras posteriores (onde se destaca La simulacion,
Colibri
e Cocuyo)
vão meramente aprofundar e desenvolver os parâmetros já definidos. Em 1993,
morre em Paris com a peste do nosso tempo, a SIDA.
Pode considerar-se que um dos objectivos
fundamentais da obra de Severo Sarduy é a tentativa de reabilitação na
contemporâneidade dos princípios estéticos do barroco, respeitando uma tradição
que vem de Quevedo e Gongora até aos seus conterrâneos (e predecessores)
Carpentier e Lezama Lima. Mas, ao mesmo tempo, o autor, como expõe na sua obra Barroco,
procura amplificar o sentido desta corrente estética, redefinindo-a como uma
cosmologia “artística”, isto é, um simulacro do cosmos. Não admira, por isso,
que nas suas obras narrativas não exista uma intenção de se aproximar a
qualquer real, mas a sua ocultação por um outro que pretende ser a transfiguração
do anterior (saliente-se que é esta postura que origina o seu fascínio erótico,
bem espelhado em toda a sua obra, pela transsexualidade, as “drag queens” e o
travestismo): a narrativa torna-se, assim, uma “mecânica”, controlada pelo
homem, que “mascara” e, dessa forma, ao mesmo tempo desvenda, recria e interpreta
a realidade. Neste sentido, Severo Sarduy preocupa-se em instaurar uma nova
unicidade interpretativa, o que determina, segundo ele, a desconstrução da
presente retórica discursiva e, em paralelo, a fusão de todas as tradições
doutrinais e/ou cosmológicas. Por fim, as suas personagens afirmam-se sempre
como arquétipos, mitos, encarnações de valores e doutrinas, duplos metamorfoseados,
na aparência etéreos e intemporais, de quaisquer eventuais personagens que,
retiradas do quotidiano, não passam de simples larvas das que a produção
narrativa revela.
Publicado como introdução à edição portuguesa de Cobra em 2004.
Título: Cobra
Autor: Severo
Sarduy
Tradutores: Margarida
Amado e Pedro Santa María de Abreu
Editor: Assírio
& Alvim
Ano: 2004
240 págs., 15,00 €
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