UMA PUNIÇÃO DA INFÂNCIA
As circunstâncias que envolvem o caso literário de John
Kennedy Toole transformam-no, pela sua radicalidade, num facto sintomático, até
em termos sociais, de um país como os Estados Unidos. Como se poderá ler na
introdução que acompanha a recente edição portuguesa de A Bíblia de Neón, este
autor sulista, nascido em New Orleans no final da década de trinta, tentou,
durante vários anos e em diversas editoras, publicar um romance, A
Confederacy of Dunces, que escreveu durante a tropa em Porto Rico.
Totalmente desanimado com as rejeições sucessivas, resolveu, mergulhado no mais
profundo desespero, por fim a vida. É a sua mãe, convencida do mérito do livro
e do talento do filho, que vai continuar a saga de o tentar publicar. Por fim,
consegue persuadir um importante escritor sulista, Walker Percy, a lê-lo, e
este, extasiado, resolve propôr a sua impressão na editora da universidade onde
ensina. É assim que, em 1981, vinte anos depois de ter sido escrito, o romance é
galardoado com o mais famoso prémio literário americano, o Pulitzer.
A Confederacy of Dunces, escrito em registos estilísticos que vão desde a mais
pura coloquialidade a uma retórica arcaica e desajustada, é uma truculenta e
barroca sátira sobre as dificuldades de comunicabilidade, onde uma grotesca
personagem, o obeso Ignatius J. Rilley, que sempre tinha vivido na dependência
de uma mãe absorvente, procura interpretar, munido com uma ética de todo incongruente,
um conjunto de peripécias cada vez mais absurdas que lhe sucedem. O resultado é
um retrato alucinado e pícaro da sociedade sulista, em particular dessa cidade
que mais se assemelha a um cenário de filme: New Orleans.
Parecia, no entanto, que John Kennedy Toole era mais um
caso de um escritor de um só livro. Porém, a sua infatigável mãe resolve procurar,
no espólio do filho, alguma coisa mais com interesse literário e descobre um
romance que ele tinha escrito na adolescência: aparece, desta forma, A Bíblia
de Néon, o romance que agora foi traduzido.
A Bíblia de Néon é,
como é evidente, uma obra de formação e, por conseguinte, bem longe da versatilidade
e originalidade de A Confederacy of Dunces. O livro narra a infância do filho único
de uma família, vivendo numa pequena cidade de província do Sul dos Estados Unidos,
com enormes dificuldades financeiras, esmagada pela recessão económica dos anos
trinta e pelas “lesões” que a II Guerra Mundial provocou na rectaguarda
americana. Escrito em frases curtas e concisas, eminentemente descritivas e
conotativas, e, dessa forma, compensando (ou talvez não) a insuportabilidade trágica
das situações, A Bíblia de Néon corresponde no seu estilo e na sua estrutura,
de um modo quase tipificado, ao “mainstream” da literatura americana - o que já
não é pequeno mérito, quando se tem em conta a idade com que o escritor redigiu
este romance (apenas dezasseis anos…).
Por isso, provavelmente, o interesse maior de A Bíblia
de Néon reside no seu efeito exorcista. De facto, parece que o autor
sente necessidade, pela escrita e pela ficção, de “eliminar” a sua infância. Na
sua estrutura cíclica, o romance começa e acaba com a fuga da personagem
principal (mais uma na literatura americana), depois da total devastação dos
lugares e dos afectos da infância: a figura violenta e desesperada do pai morre
na guerra em Itália, a mãe, incapaz de se recuperar desta perca, enlouquece e
extingue-se, esvaida em sangue, a tia Mae, com a sua sexualidade exuberante,
compensadora das suas frustrações financeiras e “artísticas” e reveladora da
hipocrisia de uma sociedade puritana, desaparece, prostituindo-se numa relação medíocre
e arrastada pela muito efémera hipótese de conseguir, por fim, satisfazer as
ambições da sua vida.
O desaparecimento desta tia - que personalizava, apesar
de tudo, a possibilidade da alegria e do prazer - e a tentativa de eliminação
da sua inofensiva mãe são golpes insustentáveis para a personagem principal: à sua
frente só uma sociedade castrante e dominadora, encabeçada pelas figuras
sinistras dos professores e do pregador. O inevitável final de A Bíblia
de Néon toma evidente a necessidade compulsiva que levou John Kennedy
Toole à sua elaboração: segregar a amargura venenosa que lhe foram depositando
na alma e renascer.
Publicado no Público em 1992.
Título: A Bíblia de Néon
Autor: John Kennedy Toole
Tradutor: Ana Barradas
Editor: Terramar
Ano: 1992
198 págs., € 7,93
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