A VORACIDADE
Em 1950, quando Françoise Mallet-Joris, com vinte anos,
publicou o seu primeiro romance, Le Rempart des Béguines, em que uma adolescente
se entregava aos prazeres culpabilizados de uma relação amorosa com a amante do
pai, entendeu-se em França que esta obra (como, alguns anos mais tarde, as de
Françoise Sagan) era exemplificativa do comportamento de uma geração que,
acordada do pesadelo da guerra, se sentia liberta para práticas afectivas e
sociais que entravam em confronto com certo convencionalismo hipócrita.
Divina, o último
romance de Françoise Mallet-Joris, agora traduzido, desenrola-se a partir de
uma destas situações do dia a dia: uma celibatária professora de liceu, em
consequência de uma avaria nos ascensores da torre onde mora, que a deixa
incapaz de sair, descobre que está pesada em excesso e decide fazer dieta. O
resultado desta opção vai, no entanto, desencadear um conjunto de situações
profissionais e pessoais que impelem a personagem principal, Joana/Divina, a
uma reflexão, com inúmeras derivações, sobre o papel que o corpo desempenha na
sociabilidade e no afecto e sobre o sentido último da fome e da saciedade.
Sempre Joana/Divina se tinha inclinado, na linha da tradição
gnóstica e judaico-cristã, para entender o corpo não como um lugar de passagem
para a convivialidade, mas como lugar de enclausuramento e de ofuscação do
olhar dos outros para a verdadeira realidade do ser: a experiência da dieta, ao
provocar alterações imprevisíveis no comportamento dos outros, vem
confirmar-lhe a justeza desta posição. Por outro lado, sempre sentira no corpo
uma volúpia, quase autónoma de si, sensitiva e cognitiva, como se procurasse,
pela voracidade, atingir a comunhão com o Todo. É por isso que entende que o
comportamento erótico provocará, de forma quase inevitável, logro e sofrimento
- que as experiências nefastas da avó e da mãe confirmam -, na medida em que a
efectiva posse (a deglutição do Todo) lhe está vedada: nesse sentido, mais vale
aceitar a intromissão brutal de um violador que, ciclicamente, a visita de
noite, porque este dá-lhe a ilusão de “tocar” a face anónima, universal e transparente
de Deus.
Esta reflexão permite Joana/Divina, no entanto, perceber
que o projecto de atingir a saciedade é absurdo: há sempre um excedente que oculta
o conhecimento de Deus. Por isso, convence-se, após a dieta, que o Todo está na
renúncia intencional da satisfação do desejo: essa “suspensão” preenche-a com
uma ausência que é, essa sim, absoluta.
Contudo, esta conclusão toma-se perigosíssima:
Joana/Divina sente que está prestes a ser devorada pelo Todo. E tem esta
derradeira constatação quando se revela a face de quem a viola e compreende o rísivel
de tentar encontrar sentidos para uma busca que tem o seu fim no princípio.
Por fim, saliente-se que nada disto se pode descobrir na
edição portuguesa de Divina. De facto, nem medíocre a
tradução chega a ser. E, quando se chega a este nível de qualidade, o problema
já não é de tradutor, mas, em específico, de editor: dá a ideia que nem chegou
a ler a tradução (como é que se compreende que o texto de contracapa da edição francesa
venha publicado, com o mesmo tipo de caracteres, na última página, sem nada o
demarcar do corpo do romance?). Francamente, só se pode dar um conselho ao
leitor: não gaste dinheiro em vão e compre a edição original.
Publicado no Público em 1993
Titulo: Divina
Autor: Françoise Mallet-Joris
Tradutor: Maria Carlota Alvares da Guerra
Editor: Bertrand Editora
Ano: 1993
259 págs., esg.
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