FALA E MORRE
O
silêncio é a morte
E
tu, se falas, morres
Se
te calas, morres
Então,
fala e morre.
Tahar
Djaout
Como é bem conhecido, os tempos, nestes últimos cinquenta
anos, têm sido dolorosamente difíceis para a nação argelina. Depois de uma
Guerra de Independência, que foi precursora e modelar para inúmeros países
africanos que iniciaram a sua luta pela libertação colonial na década de
sessenta, mas que também ficou tingida pela utilização sistemática da tortura e
por sangrentos massacres - mais de meio milhão de mortos entre a população
islâmica - que ensombraram a imagem de “farol” dos direitos humanos que a
França sempre procurou assumir no mundo, a Argélia encontrou-se, à data da sua
independência (1962), numa situação de total depauperação de meios técnicos e
financeiros: de facto, a debandada da comunidade “pied-noir”, que durante mais
de cem anos explorara a comunidade autóctone, deixou o país num estado exangue.
Esta realidade obrigou a elite política argelina a proceder a uma estatização
dos meios de produção que, na circunstância, revelou-se o modelo estratégico
possível de desenvolvimento, mas que, por sua vez, originou um enorme mal-estar
social, principalmente entre a população rural, e fomentou uma asfixiante
burocracia e uma situação quase endémica de corrupção entre os seus quadros
político-administrativos. Como reacção a este processo, assim como, é bem provável,
a uma desadequada, em termos culturais, laicização de um Estado tutelar em
excesso aos níveis económico e ideológico, a Argélia viu surgir, no seio da sua
tradicional comunidade islâmica, manifestações de fundamentalismo religioso,
muito activas e violentas, que deram origem a um ambiente de guerra civil, com
novos massacres das populações indefesas, ficando - o que numa visão
prospectiva pode ser muito grave - os seus autores quase sempre impunes, devido
a um jogo de informação e contra-informação que, por sistema, obscurece se estas acções foram perpetradas
pelos movimentos integristas armados ou pelas forças militares e paramilitares
pró-governamentais. Tudo isto tem encaminhado a Argélia, desde os inícios da
década de noventa, para uma fase bem sombria e trágica da sua história de onde,
de certo modo, ainda não conseguiu sair.
Não admira, portanto, que a literatura argelina
contemporânea tenha sido estigmatizada por esta realidade social, cultural e
política tão violenta e dolorosa. Assim, durante a década de cinquenta - a fase
mais intensa da luta de libertação -, o empenho dos romancistas argelinos de
expressão francesa (esquece-se muitas vezes, de modo lamentável, que existe uma
literatura argelina de expressão árabe), tais como Mouloud Feraoun, Mouloud
Mammeri, Malek Haddad, Assia Djebar, mas, em particular, Mohammed Dib e Kateb
Yacine (o seu romance Nedjma é considerado uma das
“narrativas fundadoras” da literatura argelina), centrou-se, no essencial, na
tentativa de demonstrar, perante o “humanismo francês”, os direitos óbvios da
sua comunidade à independência política e económica, assim como em dissecar a
forma como uma sociedade de raíz tradicional se estava a transformar.
Nas décadas seguintes, após a independência, os
problemas sociais e políticos da sociedade argelina mudaram de fisionomia. Face
à desilusão de largos sectores sociais perante a incapacidade do poder político
em satisfazer ancestrais necessidades e revindicações e, por outro lado,
perante um discurso político que procurava fundamentar-se numa ortodoxia
ideológica hegemónica e uniforme, recusando quaisquer variantes ou sinais de
contestação, os escritores argelinos viram-se na obrigação de afirmar a sua
independência através de rupturas de discurso. É este o sentido principal das
narrativas de autores que surgiram nesta altura, tais como Rachid Boudjedra e
Nabile Farès, e também de outros da anterior geração (relembro, por exemplo, os
romances desta época de Mohammed Dib).
O agravamento das tensões sociais entre um poder
político-administrativo corrupto e largos sectores sociais (uma classe média
empobrecida, um proletariado suburbano sem perspectivas de emprego nem de
possíveis melhorias de condição de vida, uma população rural desapossada das
suas terras e sem trabalho) e o ressurgimento de manisfestações religiosas
fundamentalistas, em confronto com todo o tipo de tentativas de abertura social
ou de ocidentalização, deram fermento ao trabalho criador de escritores que
iniciram a sua produção na década seguinte, em particular, Rachid Mimouni e
Tahar Djaout.
Tahar Djaout nasceu em 1954, em Azeffoun, na
Cabília marítima, e estudou matemáticas na Universidade de Argel e, mais tarde,
ciências da informação e da comunicação na Universidade de Paris-II. Em 1976,
iniciou-se na actividade jornalística, profissão que se tornou, durante a sua
curta vida, uma dos meios fundamentais da sua intervenção na sociedade
argelina: primeiro, integrou os quadros do jornal “Moudjahid”, passando depois
para o hebdomadário “Algérie-Actualité”, onde foi, durante vários anos,
editorialista e editor do sector cultural. Em Janeiro de 1993, com outros
colegas do “Algérie-Actualité”, resolveu fundar um novo jornal, “Ruptures”, em
que passou a ser chefe de redacção. Esta decisão foi-lhe fatal: em 26 de Maio
desse mesmo ano, quando se preparava de manhã para ir trabalhar, um jovem
aproximou-se da sua viatura e deu-lhe três tiros da cabeça. Tahar Djaout ficou
ainda durante oito dias em coma profundo e morreu no hospital a 2 de Junho.
Para se compreender a importância deste brutal
assassínio, saliento apenas três notas que são, ao mesmo tempo, bem reveladoras
da encruzilhada social e política que a Argélia nos dias de hoje vive. A
primeira, é que, face a efervescência social que o atentado sobre Tahar Djaout
provocou, apareceu na televisão argelina, quatro dias depois, um jovem a
“confessar” quem tinha sido os executantes do assassinato (cujos corpos
apareceram mais tarde abatidos pelas forças da ordem) e a mando de quem (um
chefe bem conhecido das GIA, as forças integristas argelinas); porém, em
tribunal, o jovem declarou que a sua “confissão” tinha sido obtida sob tortura
policial, ficando, portanto, sem efeito e, por consequência, o crime impune. A
segunda, é que o jornal “Ruptures”, que Tahar Djaout ajudara a fundar,
desapareceu das bancas em Agosto de 1993, devido a constantes ameaças de morte
sobre outros membros da equipa jornalística – que os obrigou a refugiarem-se em
Paris - e a conflitos constantes com a empresa gráfica onde o jornal era
impresso (saliente-se que o jornal era rentável e tinha uma tiragem média de 70
000 exemplares). Por fim, a nota mais sinistra: o assassinato de Tahar Djaout
foi o primeiro de várias dezenas de atentados a jornalistas na Argélia que têm
ficado, na sua maior parte, como o seu, na total impunidade.
Ao nível literário, Tahar Djaout deixou-nos uma
obra que integra cinco colectâneas de poesia, uma de contos e cinco romances.
Foi em 1975 que publicou o seu primeiro livro de poesia, Solstice barbelé, e em
1981, o seu primeiro romance, L’Exproprié. De seguida, publica a
sua colectâna de contos, Les Rets de l’oiseleur, e três
romances: Les Chercheurs d’os (1984), L’Invention du desert
(1987) e, por último, o romance que agora se publica, Os Vigilantes.
A obra narrativa de Tahar Djaout – como a maior
parte dos autores argelinos aqui referidos – procura conciliar a análise das
conjunturas socio-históricas argelinas com um trabalho de reflexão e de
experimentação da matéria narrativa, conseguindo, dessa forma, conferir-lhe uma
importância literária que supera uma postura estrita de denúncia ou de mero
“documento histórico”. Por outro lado, - e esse foi, provavelmente, uma das
razões que motivaram o atentado que o silenciou – o autor procura esquivar-se a
uma visão maniqueísta da sociedade, tentando compreender como os bons e os maus
estão em cada lado da trincheira e como todos os comportamentos, mesmo os mais
repugnantes, ao mesmo tempo que tem de ser denunciados, devem ser inteligidos
no contexto das motivações ancestrais que vão moldando (e desfigurando) o barro
humano que lhes subjaz. Para atingir estes objectivos, o autor serve-se da
ironia e de um certo folgo lírico que transfigura não só as situações absurdas
e/ou trágicas narradas, mas, em particular, consegue dar uma densidade
inusitada às personagens nelas envolvidas.
Esta perspectiva narrativa possibilita que possam
confluir nas obras romanescas de Tahar Djaout diversos níveis de leitura,
podendo ser entendidas como parábolas que
reflectem uma determinada problemática conjuntural da Argélia, mas
também podem ser “desterritorializadas” e integráveis em qualquer outro
contexto sociocultural que propicie situações semelhantes.
Por fim, deve ser salientado que, na sua tentativa
de compreender as motivações ancestrais que determinam o comportamento das suas
personagens, Tahar Djaout rememora, com um olhar nostálgico, os universos
“solares” da infância e de um passado rural, onde os reinos da morte eram
simples, distintos e cristalinos, dando uma tonalidade “mediterrânica” muito
peculiar aos seus romances.
Os Vigilantes é considerado, por unanimidade, em particular
pela articulação harmónica dos seus elementos, um romance exemplar no conjunto
da obra de Tahar Djaout e, por conseguinte, a melhor forma de introduzir o
leitor de língua portuguesa na produção narrativa deste malogrado
escritor.
Publicado como introdução à edição portuguesa de Os Vigilantes em 2004.
Título: Os
Vigilantes
Autor: Tahar
Djaout
Tradução: Armando
Silva Carvalho
Editor: Assírio
& Alvim
Ano: 2004
171 págs., € 13,00
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