A SEDA SENSUAL
DA PALAVRA
Por vezes, “descobrir”
um autor é resultante da constatação de que ele está no centro ou, pelo menos, num
ponto de conexão de “afinidades electivas” de criadores (literários,
artísticos) que já foram por nós referenciados.
Foi assim que,
no meio do magma de informação em que vivemos mergulhados, o nome de Jacques
Abeille começou a evidenciar-se, nas minhas prospecções, como identificando
um narrador muito peculiar.
“Descobri” que Jacques
Abeille tinha sido amigo chegado de Pierre Molinier (1900-1976), um pintor e
fotógrafo surrealista um pouco obscuro (passou toda a sua vida em Bordéus, bem
longe dos círculos mundanos de produção artística) e que, como muitos outros de
orientação estética semelhante, imbricou profundamente a existência com a sua
produção artística. De facto, há muito que este artista era para mim uma figura
intrigante e fascinante, não só pela sua vida, mas em particular pela sua obra
(iniciada já tarde, com mais de cinquenta anos) obsessivamente erótica e
fetichista (raros sãos os seus quadros figurativos, ou, mais tarde, as suas
fotos, em que não surjam jogos de “entidades femininas”, vestidas apenas de
meias negras e cinto de ligas, constituindo, uma boa parte deles, auto-retratos
em que aparece “travestido”), sempre a questionar as fronteiras entre arte e
pornografia, que foi muito elogiada por André Breton e que é hoje considerada
como percursora da “body art”.
Mas foi devido a
Bernard Noël, um dos poetas contemporâneos franceses mais interessantes
e um intelectual que tem procurado articular uma exigente intervenção cívica
com uma contínua reflexão sobre o fenómeno artístico e sobre o efeito social e
histórico-literário do acto de escrever, e alguns dos seus textos de
louvor e entusiasmo pela narrativa de Jacques Abeille, em particular do seu
romance Les Jardins statuaires, que em definitivo fiquei interessado
por conhecer a sua obra.
Jacques Abeille é,
mesmo em França, muito pouco conhecido e referido: há poucas análises da sua
obra nos suplementos literários e nos espaços públicos dedicados à literatura
em França; é um autor que tem a sua narrativa dispersa em diversas chancelas
editoriais, todas elas pequenas; que nunca obteve nenhum importante prémio
literário, etc. Creio que o estatuto um pouco marginal de Jacques Abeille no
sistema literário francês se deve à sua proximidade ao universo surrealista
(ser próximo desta corrente estética e literária não é, hoje, grande referência
- e ainda muito menos se aparece com o estatuto de narrador) e ao facto da sua
obra ser apontada como obscena e erótica em excesso.
Qualquer uma destas etiquetas (obra surrealista,
obra obscena) exigiria, só por si, alguma reflexão no caso da produção
literária de Jacques Abeille. No entanto, tem de se concordar que o autor dá
muita importância ao elemento erótico, chegando mesmo ao ponto de, com o
pseudónimo de Léo Barthet, redigir romances e novelas onde assume abertamente
essa componente (e aí, sim, até a componente pornográfica), procurando conjugar
os efeitos – a nosso ver, inconciliáveis - da emoção pornográfica com a emoção
estética.
Pode dizer-se, procurando
definir uma geografia literária para Jacques Abeille, que o universo da sua narrativa
se encontra confinado (e contaminado) pela produção de Georges Bataille e André
Pieyre de Mandiargues (outro esquecido…), por um lado, e de Julien Gracq e Dino
Buzzati, por outro. O quadrilátero literário assim delimitado é ocupado por
cerca de duas dezenas de obras narrativas (a que se deve acrescentar alguns
títulos de colectâneas de poesia e de ensaios, estes últimos nos domínios das
artes plásticas e da história da arte, pois Jacques Abeille é também pintor),
onde se destaca o conjunto de romances e novelas que o autor intitulou Le
Cycle des contrées, composto pelo já referido Les Jardins statuaires
(1981), Le Veilleur du jour (1986), En mémoire morte (1992) e
Les
Carnets de l’explorateur perdu (1993), ou ainda alguns subscritos por
Léo Barthet, como Histoire de la bonne (2002) ou Camille (2005).
Entre os títulos
deste autor, é apontado, de forma consensual, pelos críticos e analistas da sua
produção literária, como a sua obra-prima, o seu romance inicial, Les Jardins
statuaires. E foi por ele que resolvi iniciar-me na leitura da sua obra.
Creio que já se percebeu
que uma outra etiqueta, com que é habitual classificar-se a obra de Jacques
Abeille, é o de “literatura fantástica”: de facto, como sucede neste tipo de
literatura, o autor procura, em Les Jardins statuaires, criar um
universo próprio, autónomo. Porém, a originalidade começa logo na forma como o
faz: depois de uma página inicial onde se explana uma reflexão sobre a forma do
espaço (uma árvore que expande os seus ramos pelo céu), aparece, de imediato,
um viajante/narrador que se encontra à entrada do “país dos jardins das
estátuas”…; nada se expõe sobre a forma como lá chegou, de onde veio, porque
motivos desconhece este país e os mundos limítrofes - simplesmente “aparece”. Depois,
o autor vai desenvolvendo e construindo Les Jardins statuaires em constante
“trompe l’oeil” entre o universo reconhecível pelo leitor e o universo
específico da obra, como se esta se procurasse a pouco e pouco libertar e
autonomizar. No fundo, parece que o próprio romance, no seu desenrolar, pretende
espelhar o seu esforço titânico para criar um universo próprio.
Não vou, como é
óbvio, nem perto nem de longe, desvendar a trama de Les Jardins statuaires.
Só quero referir, na coerência do que foi exposto no parágrafo anterior - e
para aguçar o apetite do leitor pela ambiência da obra -, que o
viajante/narrador, numa primeira parte, vai introduzindo-se cada vez mais no
interior deste país “gerador de estátuas”, revelando não só a estranha configuração
espacial desta terra, mas também a peculiar organização social dos seus
habitantes, assim como os seus invulgares hábitos; na segunda parte, o percurso
do viajante/narrador é em sentido inverso, deslocando-se para as fronteiras
deste “país” e desvendando como a sua relativa harmonia se encontra ameaçada
por “turbas bárbaras” que, com outros valores, poderão desfazer a frágil
imobilidade desta organização social.
Assim, o leitor
não só percebe que os “jardins” (com os seus áreas de produção, os seus
armazéns, as suas habitações - em particular, os gineceus, onde as mulheres
vivem em clausura e afastadas da “criação” de estátuas) estão no centro desta organização
social, como descobre que existem outras estruturas periféricas e
complementares, com funções de “descompressão” (é o caso das estalagens, com os
seus “patrões” e as suas “criadas”) ou de registo e memória (é o caso dos
homens-livros e as respectivas “bibliotecas”), etc.; e, por fim, como a própria
sociedade se modela em função do milagre da “criação” das estátuas e da sua
transcendente beleza ou, pelo contrário, das suas doenças e das suas perigosas aberrações…
Como se pode
perceber por aquilo que já foi referenciado, pouco ou quase nada se encontra de
descrições eróticas ou pornográficas em Les Jardins statuaires. Mas, de uma
forma estranha, perpassa nas suas páginas uma constante sensualidade que
contagia toda a narrativa (em particular, as descrições sobre a forma como se
vão gerando as estátuas e o seu aparecimento no granuloso chão dos jardins). E
é neste aspecto que se torna evidente a magnífica arte narrativa de Jacques Abeille:
de facto, deriva do seu próprio estilo a sensualidade constante de toda a sua
obra - mais do que das suas descrições eróticas ou pornográficas.
Porém, talvez seja
também resultante desta obsessão descritiva o principal defeito, a nosso ver,
de Les
Jardins statuaires: a sua dimensão. Por vezes, a necessidade de Jacques
Abeille em revelar de forma exaustiva este país e a sua ambiência peculiar
origina que o romance se torne, aqui e ali, um pouco repetitivo, justificando-se,
por razões de economia narrativa, algum trabalho editorial.
Publicado na web
em 2008.
Autor: Jacques Abeille
Título: Les Jardins statuaires
Editor: Joëlle Losfeld
Ano: 2004
398 págs., 23,00
€
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