TRÁGICAS RURALIDADES
Um homem que passa os dias a limpar as capoeiras da merda
das galinhas e dos perus, que desinfecta as mãos com o seu próprio mijo, que
tem uma milhana como sua amiga mais íntima. Quando lhe quer agradar, ”vai
correr a coruja a montanha”, dá-lhe para comer um milhafre depenado. E ao
morrer-lhe a milhana, substitui-a, até arranjar outra, pela sua sobrinha, débil
mental, atrofiada, que ele leva ao colo para ver os pássaros e as árvores, e
que uiva durante a noite até deixar o pai impotente. Um “secretário de caça”
analfabeto que tem um faro mais apurado que um cão e que vive fascinado com os “caprichos”
das letras. Subserviente, arrasta-se atrás do patrão, maníaco da caça, que o
exibe entre ministros e “senhores” como se ele fosse um bicho de feira. Um
feitor que não consegue satisfazer os apetites sexuais e a ambição da mulher e
que, por isso, esta, com a maior das naturalidades, seduz na sua frente o patrão
e “foge” com ele, deixando-o a chorar pelos cantos como uma ave de asa derreada.
Uma adolescente que subsiste emaranhada entre o pudor e a descoberta tacteante
do sexo e do desejo. São estes os “santos inocentes” que um autor escolheu
entre os milhões de “santos inocentes” que existem neste mundo.
Comecei esta recensão da forma mais desaconselhada.
Parece-me, no entanto, uma maneira aliciante de cativar o leitor para um romance
fascinante e que nada perde por lhe descreverem as personagens de uma forma
linear: Os Santos Inocentes de Miguel Delibes.
Para quem acompanha o evoluir da literatura contemporânea,
torna-se evidente a escassez de ficção nos dias de hoje sobre temática rural.
Este facto é ainda mais notório se o compararmos com a ficção dos anos trinta e
quarenta, onde esta temática foi amplamente desenvolvida e tratada. É óbvio que
isto sucede por razões sociológicas e que é resultante da esmagadora supremacia
actual da cidade em relação ao campo. Mas, de qualquer modo, é sempre de lamentar
que exista uma vasta realidade social de que, de facto, a literatura se tem
estado a alhear.
É reveladora, por isso, de uma excepcional coerência a
atitude de um escritor, como Miguel Delibes, que continua a afirmar, em termos criativos,
o seu empenhamento por esta temática rural e que procura apresentá-la de uma
forma esteticamente inovadora, superando-se de um modo constante e adaptando-se
a novas técnicas narrativas. A sua obra de ficção (completada por volumes de
memórias, de viagens e sobre a actividade cinegética - uma das suas grandes
paixões) é sempre servida, nas diversas fases por que já passou, por um estilo
claro e conciso e por uma inegável maestria em elaborar personagens e situações
que, há muito, fizeram deste autor, em conjunto com Camilo José Cela e Gonzalo
Torrente Ballester, uma das figuras tutelares das letras espanholas do pós-guerra.
Os Santos Inocentes
pretende-se uma tragédia simples como o crescer das árvores. Talvez por isso
mesmo, como afirma J. J. Fernandez Delgado na introdução à presente edição, o
romance assuma uma configuração poética onde se entrecruzam o discurso directo
e indirecto, sem utilização de parágrafos. As personagens e as situações têm um
valor simbólico elementar, em perfeita adequação à sua psicologia e à ambiência
ancestral de toda a trama. Quando sucede o clímax, ele aparece tão óbvio e
natural como, para as personagens, vazar os olhos a um pássaro para ele servir
de chamariz. As relações maniqueístas entre “senhores” e “criados” nunca são
delineadas em excesso, mas como pertencentes a um tempo que se acreditava já devoluto.
Este romance prova que o essencial da tragédia humana não
se altera, que a única coisa que muda, como as moscas no conhecido adágio, é o
cenário. A identificação que o leitor é levado a fazer com as personagens
resulta do facto de que, para lá de toda a civilização urbana que lhe tatuou a
pele, elas representarem pulsões que continuam a significá-lo mais do que todas
as razões do saber. E é inevitavelmente doloroso rever-se como figura arqueológica
e milenar.
Publicado no Público em 1991.
Título: Os Santos Inocentes
Autor: Miguel Delibes
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Introdução: Juan José Fernandez Delgado
Editor: Teorema
Ano: 1991
132 págs., € 7,40
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