sábado, 2 de julho de 2016

MIGUEL DELIBES

 
 
 
TRÁGICAS RURALIDADES
 
Um homem que passa os dias a limpar as capoeiras da merda das galinhas e dos perus, que desinfecta as mãos com o seu próprio mijo, que tem uma milhana como sua amiga mais íntima. Quando lhe quer agradar, ”vai correr a coruja a montanha”, dá-lhe para comer um milhafre depenado. E ao morrer-lhe a milhana, substitui-a, até arranjar outra, pela sua sobrinha, débil mental, atrofiada, que ele leva ao colo para ver os pássaros e as árvores, e que uiva durante a noite até deixar o pai impotente. Um “secretário de caça” analfabeto que tem um faro mais apurado que um cão e que vive fascinado com os “caprichos” das letras. Subserviente, arrasta-se atrás do patrão, maníaco da caça, que o exibe entre ministros e “senhores” como se ele fosse um bicho de feira. Um feitor que não consegue satisfazer os apetites sexuais e a ambição da mulher e que, por isso, esta, com a maior das naturalidades, seduz na sua frente o patrão e “foge” com ele, deixando-o a chorar pelos cantos como uma ave de asa derreada. Uma adolescente que subsiste emaranhada entre o pudor e a descoberta tacteante do sexo e do desejo. São estes os “santos inocentes” que um autor escolheu entre os milhões de “santos inocentes” que existem neste mundo.
 
Comecei esta recensão da forma mais desaconselhada. Parece-me, no entanto, uma maneira aliciante de cativar o leitor para um romance fascinante e que nada perde por lhe descreverem as personagens de uma forma linear: Os Santos Inocentes de Miguel Delibes.
 
Para quem acompanha o evoluir da literatura contemporânea, torna-se evidente a escassez de ficção nos dias de hoje sobre temática rural. Este facto é ainda mais notório se o compararmos com a ficção dos anos trinta e quarenta, onde esta temática foi amplamente desenvolvida e tratada. É óbvio que isto sucede por razões sociológicas e que é resultante da esmagadora supremacia actual da cidade em relação ao campo. Mas, de qualquer modo, é sempre de lamentar que exista uma vasta realidade social de que, de facto, a literatura se tem estado a alhear.
 
É reveladora, por isso, de uma excepcional coerência a atitude de um escritor, como Miguel Delibes, que continua a afirmar, em termos criativos, o seu empenhamento por esta temática rural e que procura apresentá-la de uma forma esteticamente inovadora, superando-se de um modo constante e adaptando-se a novas técnicas narrativas. A sua obra de ficção (completada por volumes de memórias, de viagens e sobre a actividade cinegética - uma das suas grandes paixões) é sempre servida, nas diversas fases por que já passou, por um estilo claro e conciso e por uma inegável maestria em elaborar personagens e situações que, há muito, fizeram deste autor, em conjunto com Camilo José Cela e Gonzalo Torrente Ballester, uma das figuras tutelares das letras espanholas do pós-guerra.
 
Os Santos Inocentes pretende-se uma tragédia simples como o crescer das árvores. Talvez por isso mesmo, como afirma J. J. Fernandez Delgado na introdução à presente edição, o romance assuma uma configuração poética onde se entrecruzam o discurso directo e indirecto, sem utilização de parágrafos. As personagens e as situações têm um valor simbólico elementar, em perfeita adequação à sua psicologia e à ambiência ancestral de toda a trama. Quando sucede o clímax, ele aparece tão óbvio e natural como, para as personagens, vazar os olhos a um pássaro para ele servir de chamariz. As relações maniqueístas entre “senhores” e “criados” nunca são delineadas em excesso, mas como pertencentes a um tempo que se acreditava já devoluto.
 
Este romance prova que o essencial da tragédia humana não se altera, que a única coisa que muda, como as moscas no conhecido adágio, é o cenário. A identificação que o leitor é levado a fazer com as personagens resulta do facto de que, para lá de toda a civilização urbana que lhe tatuou a pele, elas representarem pulsões que continuam a significá-lo mais do que todas as razões do saber. E é inevitavelmente doloroso rever-se como figura arqueológica e milenar.
 
Publicado no Público em 1991.
 
Título: Os Santos Inocentes
Autor: Miguel Delibes
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Introdução: Juan José Fernandez Delgado
Editor: Teorema
Ano: 1991
132 págs.,  € 7,40
 
 



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