A CONTAMINAÇÃO DOS AFECTOS
Um dos factos literários mais expressivos da última década relaciona-se com
o número avassalador de obras e de autores que se podem considerar enquadráveis
numa estética realista. É certo que esses autores, na generalidade dos casos,
recusam esses parâmetros e não assumem que, de forma intencional, tenham
resolvido repegar em qualquer “fio” - as tendências realistas das décadas de
quarenta e cinquenta, por exemplo - que tenha ficado, solto e perdido, nas
brumas da história literária. Pelo contrário, parece que é o mais singelo e
puro prazer de contar histórias, de testemunhar (mas testemunhar “mesmo”, isto
é, sem nenhum objectivo exemplar ou programático) sobre experiências e vidas
que levou os escritores a aproximarem-se da estética realista.
Por isso, nunca a crítica literária ousou correlacionar os actuais
escritores ingleses de obras realistas com a corrente do chamado “realismo
britânico” (haverá, de facto, alguma relação entre a presente produção
literária inglesa e as obras de um John Braine ou de um Allan Sillitoe?).
Porém, devia-se também considerar que é um pouco ilusório crer que esse desejo
de contar histórias de vidas baste para definir uma estética e que seja
possível fazer “tábua rasa” de contributos - assentes num desejo muito similar
- que, no fundo, já estão diluídos no próprio fluir literário.
Estas considerações tornam-se particularmente oportunas na leitura de uma
obra como Últimas Vontades, o mais recente romance de Graham Swift,
vencedora do último Booker Prize. Autor com uma meia dúzia de títulos
publicados (dos quais as Publicações Dom Quixote editou alguns em Portugal),
Graham Swift já tinha sido finalista do mesmo prémio literário com O
País das Águas e foi considerado, há alguns anos, pela prestigiada
revista “Granta”, como um dos vinte
mais importantes escritores vivos em Inglaterra. O que é certo é que este
estatuto não o livrou de uma acusação de plágio feita por um professor de
Literatura australiano que considerou que o tema e a estrutura narrativa de Últimas
Vontades eram decalcados de As I Lay Dying de William Faulkner, o que originou uma tremenda polémica sobre o
que é na verdade plágio e obrigou autores, como Malcolm Bradbury, Julian Barnes
e Salman Rushdie, a virem em defesa do acusado.
De facto, a acção de Últimas Vontades é, de certo modo,
pouco original e simples: quatro velhos amigos, cumprindo as indicações
deixadas à hora da morte por outro amigo, viajam pelo Kent até à povoação de
Margate para lançarem as cinzas dele ao mar. Esse grupo de amigos, vizinhos num
bairro popular londrino, é gente absolutamente vulgar: um talhante, um
cangalheiro, um vendedor de legumes, um mecânico de automóveis e um empregado
de seguros que equilibra o seu orçamento, apostando nas corridas de cavalos.
Pode afirmar-se, por conseguinte, que existe, de forma intencional, uma
opção estratégica de “banalização” como ponto de partida romanesco. Como se a
aposta do escritor fosse arrancar de um nível bem “incaracterístico” e
conseguir, a partir daí, elaborar uma obra que “personalize” as personagens (passe a redundância),
que lhes dê espessura e dimensão.
Enquanto a viagem decorre, os quatro amigos (e a viúva do defunto que, não
viajando com eles, é uma espécie de “presença circulante” na sua consciência)
vão rememorando as relações entre si e com o amigo falecido, começando,
gradualmente, a sobressair os conflitos e as pequenas perfídias, e, por
consequência, as contradições entre as cumplicidades veladas e as manifestações
públicas de afecto que atravessam sempre as longas relações de amizade. De
capítulo em capítulo, numa espécie de movimento sinusoidal das palavras e da
memória, vão erguendo-se Ray, Jack, Amy, Vince e Vic, com as suas tragédias
familiares silenciadas, as opções que perderam no emaranhado dos sentimentos,
as fragilidades caracteriais que as situações de tensão e bloqueio fizeram
desabrochar, as hipóteses de vida que só foram isso e que, por conseguinte, se
transformaram em arquétipos norteando os afectos durante toda a existência. A
vida aparece resumida a uma espécie de jogo, onde se fazem apostas, em que se
perde e ganha, e as relações entre as pessoas não passam de “visitas” à
irremediável solidão de cada um, aproximações que transfiguram ou massacram,
deixando sempre a nostalgia do que escapou: como afirma Jack, o talhante
falecido, a sobrevivência é o simples resultado - como na sua profissão - da
gestão do desperdício.
Será fácil, e não de todo incorrecto, afirmar que esta viagem é encarada
como um processo de aprendizagem. E, naturalmente, da morte. Mas será? Estas
rememorações parecem, de facto, convencer as diversas personagens de uma vaga “certeza” que dão os balanços feitos nas
proximidades da morte; mas para que servem os balanços de vida se neles se
memoriza principalmente as percas?
O que é certo, leitor, é que com os seus silêncios, com os seus desgostos
que atravessam uma vida, com a alegria das suas descobertas contingentes, estas
personagens revelar-se-ão inesquecíveis companheiros de “viagem”. E, para isso,
em muito contribuirá o estilo adoptado por Graham Swift nesta obra, marcadamente
despojado, eliminando qualquer efeito literário e “colando-se” ao humor e ao
carácter abrupto da coloquialidade popular londrina; no essencial, percebe-se
que, em termos estilísticos, se procura estabelecer uma perfeita consonância
com a despretensão do “olhar” das personagens do romance.
Últimas Vontades é um excelente romance sobre a “contaminação” dos afectos, de como estes não se
constroem através da irradiação de uma “pureza” nuclear, mas como um rizoma de contingências, boas e nefastas, que
enleia em cumplicidades antagónicas as pessoas. De um modo inequívoco, é um
romance que consegue satisfazer o leitor naquilo que ele mais legitimamente
procura na ficção: interrogar-se com o autor e com as personagens, fazendo-o
lembrar-se que a vida há-de sempre confinar-se a “cinzas lançadas ao vento diante da terra dos sonhos”.
Publicado no Público em 1997.
Título: Últimas Vontades
Autor: Graham Swift
Tradutor: Maria João Delgado e Luísa
Feijó
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1997
314 págs., € 17,16
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