quinta-feira, 17 de setembro de 2015

FRANCISCO COLOANE

 
 
 
UM ESCRITOR DE OUTRO MUNDO
 
Costuma afirmar-se que Francisco Coloane, o escritor que se tornou internacionalmente conhecido com as suas histórias passadas no Chile austral, pertence à estirpe de autores como Stevenson, Conrad, London ou até mesmo Hemingway. Quer isto dizer, que se considera que integra uma linhagem de escritores com uma vida aventurosa (e isto, pretende, por sua vez, caracterizar uma vida passada em regiões inóspitas, onde os autores afrontaram situações mais ou menos duras e violentas) e que essa vida serviu de fonte inspiradora à sua obra romanesca. De uma forma mais analítica, poder-se-á tipificá-los como autores que reflectiram, de um modo obsessivo, sobre o confronto homem/Natureza, uma vez que consideravam que era desse confronto que irrompia a “força moral” que personaliza o homem e lhe dá o conjunto de valores necessários para o dignificar na sua relação com o seu semelhante e com o meio envolvente. Por isso, a sua obra espelha uma visão passional, tingida de amor e ódio, pela Natureza, habitualmente “coisificada” no mar ou na floresta. Neste sentido, por exemplo, poderá classificar-se Francisco Coloane como um escritor do mar.
 
Porém, quando se analisa a obra dos autores desta estirpe, à luz da actual literatura mundial (e convém distinguir a obra destes escritores da presente literatura de viagens, já que esta é desencadeada por um “acto voluntário” que, de imediato, a coloca em parâmetros distintos), a sensação com que ficamos é que ela já morreu. Provavelmente, porque comecem a rarear as tais regiões inóspitas, ou porque o modelo de Natureza (associado ao Mal e à Morte), que lhes serviu de fonte inspiradora, já não tenha sentido, ou ainda porque já não seja possível uma vida aventurosa tal como eles a viveram. E, por isto mesmo, hoje, a formulação da relação homem/Natureza em termos literários já está muito distante da obra destes autores e só a reflecte como uma mediação referencial.
 
A obra de Francisco Coloane teve o seu período de maior pujança criativa nas décadas de quarenta e cinquenta. De facto, foi nessas décadas que publicou a sua trilogia de colectâneas de contos (Cabo de Hornos, Golfo de Penas e Terra do Fogo) que, no seu país natal, lhe granjeou o prestígio de exímio escritor de narrativas breves. Porém, é só tardiamente, na década de noventa, em consequência da acção generosa de divulgação da sua obra por parte do escritor seu conterrâneo Luis Sepúlveda, que o trabalho de Francisco Coloane começa a ser conhecido em termos internacionais. Para isso, muito deve também a consagração que lhe foi realizada no Festival “Étonnants Voyageurs”, dirigido por Michel Le Bris, em Saint-Malö, em 1995.
 
As memórias agora publicadas no nosso país, com o título de Os Passos do Homem, têm o principal mérito de ser um testemunho de um mundo que, por diversos motivos, já não existe. De facto, os costumes e as gentes aqui retratados, das longínquas terras de Chiloé, parecem vir de um “outro tempo”, em particular, pela forma como vivem a sua relação com a Natureza: há um respeito temeroso, embebido ao mesmo tempo de uma comovida ternura, e uma sintonia com o pulsar silencioso dos amplos espaços que, nos dias de hoje, já pertencem quase apenas a uma inevitável arqueologia dos sentimentos. Mesmo quando Francisco Coloane descreve situações mais recentes, envolvendo intelectuais ou figuras de um universo urbano, a memória, que os reconstrói e modela os seus intervenientes, vem da sua infância e de um “teatro de sombras” de personagens (pastores, pescadores, caçadores ou mesmo exploradores) que, ao transmitir-lhe os valores que estruturaram o autor, o prenderam definitivamente a um mundo já extinto.
 
Deve-se, por certo, a esta recorrência constante à infância, o carácter “desarrumado” destas memórias, onde o único fio tenuemente condutor parece ser o gosto particular do autor pelas viagens. Quem se habituou à fina arquitectura das narrativas breves de Francisco Coloane ficará impressionado de um modo negativo com o aspecto caótico de Os Passos do Homem. Além disso, o pincel intenso, com que o autor conseguiu colorir as paisagens onde deambulavam as personagens dos seus contos, parece ter perdido vigor, o que leva a evidenciar-se uma adjectivação e uma imagética que sofrem de um gongorismo excessivo. Restam, por isso, de Os Passos do Homem, algumas passagens que fazem recordar o “antigo” Francisco Coloane: relembro, por exemplo, a narração do momento de falecimento de seu pai e que aparece na obra como motivo recorrente.
 
Publicado no Público em 2001.
 
 
Título: Os Passos do Homem
Autor: Francisco Coloane
Editor: Teorema
Tradução: Serafim Ferreira
Ano: 2001
267 págs., € 15,90
 
   



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