UM ESCRITOR
DE OUTRO MUNDO
Costuma
afirmar-se que Francisco Coloane, o escritor que se tornou internacionalmente
conhecido com as suas histórias passadas no Chile austral, pertence à estirpe
de autores como Stevenson, Conrad, London ou até mesmo Hemingway. Quer isto
dizer, que se considera que integra uma linhagem de escritores com uma vida
aventurosa (e isto, pretende, por sua vez, caracterizar uma vida passada em
regiões inóspitas, onde os autores afrontaram situações mais ou menos duras e
violentas) e que essa vida serviu de fonte inspiradora à sua obra romanesca. De
uma forma mais analítica, poder-se-á tipificá-los como autores que reflectiram,
de um modo obsessivo, sobre o confronto homem/Natureza, uma vez que
consideravam que era desse confronto que irrompia a “força moral” que
personaliza o homem e lhe dá o conjunto de valores necessários para o
dignificar na sua relação com o seu semelhante e com o meio envolvente. Por
isso, a sua obra espelha uma visão passional, tingida de amor e ódio, pela
Natureza, habitualmente “coisificada” no mar ou na floresta. Neste sentido, por
exemplo, poderá classificar-se Francisco Coloane como um escritor do mar.
Porém,
quando se analisa a obra dos autores desta estirpe, à luz da actual literatura
mundial (e convém distinguir a obra destes escritores da presente literatura de
viagens, já que esta é desencadeada por um “acto voluntário” que, de imediato,
a coloca em parâmetros distintos), a sensação com que ficamos é que ela já
morreu. Provavelmente, porque comecem a rarear as tais regiões inóspitas, ou porque
o modelo de Natureza (associado ao Mal e à Morte), que lhes serviu de fonte
inspiradora, já não tenha sentido, ou ainda porque já não seja possível uma
vida aventurosa tal como eles a viveram. E, por isto mesmo, hoje, a formulação
da relação homem/Natureza em termos literários já está muito distante da obra
destes autores e só a reflecte como uma mediação referencial.
A obra de
Francisco Coloane teve o seu período de maior pujança criativa nas décadas de
quarenta e cinquenta. De facto, foi nessas décadas que publicou a sua trilogia
de colectâneas de contos (Cabo de Hornos, Golfo de Penas e Terra
do Fogo) que, no seu país natal, lhe granjeou o prestígio de exímio
escritor de narrativas breves. Porém, é só tardiamente, na década de noventa,
em consequência da acção generosa de divulgação da sua obra por parte do
escritor seu conterrâneo Luis Sepúlveda, que o trabalho de Francisco Coloane
começa a ser conhecido em termos internacionais. Para isso, muito deve também a
consagração que lhe foi realizada no Festival “Étonnants Voyageurs”, dirigido
por Michel Le Bris, em Saint-Malö, em 1995.
As memórias
agora publicadas no nosso país, com o título de Os Passos do Homem, têm o
principal mérito de ser um testemunho de um mundo que, por diversos motivos, já
não existe. De facto, os costumes e as gentes aqui retratados, das longínquas
terras de Chiloé, parecem vir de um “outro tempo”, em particular, pela forma
como vivem a sua relação com a Natureza: há um respeito temeroso, embebido ao
mesmo tempo de uma comovida ternura, e uma sintonia com o pulsar silencioso dos
amplos espaços que, nos dias de hoje, já pertencem quase apenas a uma
inevitável arqueologia dos sentimentos. Mesmo quando Francisco Coloane descreve
situações mais recentes, envolvendo intelectuais ou figuras de um universo
urbano, a memória, que os reconstrói e modela os seus intervenientes, vem da
sua infância e de um “teatro de sombras” de personagens (pastores, pescadores,
caçadores ou mesmo exploradores) que, ao transmitir-lhe os valores que
estruturaram o autor, o prenderam definitivamente a um mundo já extinto.
Deve-se,
por certo, a esta recorrência constante à infância, o carácter “desarrumado”
destas memórias, onde o único fio tenuemente condutor parece ser o gosto
particular do autor pelas viagens. Quem se habituou à fina arquitectura das
narrativas breves de Francisco Coloane ficará impressionado de um modo negativo
com o aspecto caótico de Os Passos do Homem. Além disso, o
pincel intenso, com que o autor conseguiu colorir as paisagens onde deambulavam
as personagens dos seus contos, parece ter perdido vigor, o que leva a
evidenciar-se uma adjectivação e uma imagética que sofrem de um gongorismo
excessivo. Restam, por isso, de Os Passos do Homem, algumas
passagens que fazem recordar o “antigo” Francisco Coloane: relembro, por
exemplo, a narração do momento de falecimento de seu pai e que aparece na obra
como motivo recorrente.
Publicado
no Público em 2001.
Título: Os Passos do Homem
Autor: Francisco Coloane
Editor: Teorema
Tradução: Serafim Ferreira
Ano: 2001
267 págs., €
15,90
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