O HÚMUS
DO MAL
Desde
a publicação de Os Buddenbrook, no início do século, que Thomas Mann foi encarado
como um dos mais genuínos representantes do “génio” literário alemão. Contudo,
este escritor teve sempre uma relação tempestuosa com o seu país,
principalmente com os aspectos mais salientes da sua evolução cultural e política:
lembremo-nos das críticas à política da República de Weimar e ao expressionismo
em Considerações
de um Apolítico, ou mais tarde, sob o nazismo, a atitude acusatória que
Thomas Mann, a partir do exílio, vai assumir perante aquele aberrante regime.
Doutor
Fausto (1947) é considerado um dos mais importantes romances da
primeira metade deste século, no quadro das literaturas da Europa Central, e
pode ser entendido como uma tentativa ficcionista
de compreender a evolução
cultural, a partir dos finais do séc. XIX, de uma “certa” Alemanha que permitiu
a ascensão ao poder de Adolfo Hitler.
Através
da biografia de um músico dodecafónico imaginário, Adrian Levekühn, feita por
um amigo deste, Thomas Mann vai retomar o velho mito do séc. XVI (e que já tinha
sido glorificado por Goethe, o intelectual alemão que ele mais admirava) do Dr.
Fausto. Mas aquela personagem, que tem, contudo, uma consistência psicológica
bem caracterizada, personaliza a Alemanha com o seu entrechocar de contradicções,
e o pacto diabólico, que efectua, simboliza o logro em que a nação alemã caiu
ao fascinar-se pelo canto de sereia da barbárie nazi.
É, portanto,
sobre a decadência colectiva que este romance se debruça ao analisar a ascensão
das tendências irracionalistas e vitalistas da cultura alemã (o seu
conservadorismo anti-humanista, o primado do estético sobre o ético, a sujeição
do Espírito ao sensorial e às pulsões de dominação e submissão, o pendor para o
sofrimento e para o isolamento, etc.) e que, nalguns aspectos, o próprio Thomas
Mann tinha perfilhado anteriormente.
É
por causa desta dimensão de confronto doutrinário consigo mesmo que Thomas Mann
fala do Doutor Fausto como de uma “autobiografia radical”. Mas, numa
perspectiva actual, o que mais se realça neste romance é o seu carácter de acto
de conhecimento e de saber (note-se que semelhante atitude perante o romance,
comum a Broch e a Musil, ao tentar fundir ficção e ensaio, pretende ser uma
ultrapassagem das limitações estéticas a que, segundo estes autores, o género
chegou no final do século), e, por outro lado, reflectir o empenho de Thomas Mann em elaborar urna retórica (é
esta, segundo ele, a tarefa fundamental da burguesia) que condicione e dê sentido
cultural aos impulsos e às energias vitais.
Publicado na revista Ler em 1996.
Título: Doutor Fausto
Autor: Thomas Mann
Tradutor: Herbert Caro
Revisor: José Jacinto da Silva Pereira
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1996
696 págs., € 25,00
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