A ARTE COMO BLOQUEIO
SUÍCIDA
O
autor alemão Patrick Süskind tornou-se um dos mais recentes mitos do mundo literário, não só pelo
enorme sucesso editorial que obteve, em toda a Europa, com o seu romance O
Perfume, mas também pelo seu comportamento misantropo e avesso à comunicação
social. Naturalmente, o destino das suas obras transformou-se de um modo radical,
e daí que O Contrabaixo, anterior à publicação daquele romance, fosse depois
editado em diversos países, e que a encenação deste monólogo dramático, como
refere Anabela Mendes, a tradutora e apresentadora da versão portuguesa,
resultasse num expressivo êxito teatral nas duas Alemanhas.
O Contrabaixo é unicamente
constituído pela alocução de um contrabaixista, feita no seu quarto a um
público imaginário, e por algumas indicações cénicas sobre a acção da
personagem ou sobre a música que ouve ou toca. Nessa alocução, que se inicia
por um elogio às virtualidades musicais do seu instrumento, o que se vai espelhar,
é a intensa solidão do contrabaixista por se dedicar à execução
de um instrumento tão grande e produtor de tão estranhas sonoridades. E, além
disso, como a sua execução o obriga a um esforço físico que lhe deforma o corpo,
como os seus hábitos se tiveram de condicionar àquela presença imensa e como os
seus desejos ficaram bloqueados com as notas de um instrumento que afasta automaticamente
a musicalidade dos outros para o seu polo oposto.
O
contrabaixista vive, por isso, com o seu instrumento, uma relação de exclusividade,
obcecante e frustrante, porque, dadas as características do contrabaixo (e também
por ser terceiro nível de uma orquestra nacional), nunca poderá ter o reconhecimento
público pelo seu esforço, nem receberá um olhar empolgado pela sua música. Percebemos,
assim, que todo o enaltecimento minucioso do músico no início do monólogo,
sobre a importância do contrabaixo na história da música, não passa de uma forma
de tentar escamotear, perante si e os outros, a esmagadora depressão que a sua
existência lhe provoca por estar na dependência daquele instrumento. E o monólogo atinge a tonalidade
do desespero, quando o contrabaixista
confessa a sua paixão por uma soprano de quem sabe que não se poderá aproximar,
visto que, em consequência da posição subalterna do seu instrumento na orquestra,
ela nunca
reparará nele e sentir-se-á sempre solicitada por outros músicos, tocando instrumentos
de musicalidade mais fascinante.
A relação do contrabaixista com o
seu instrumento é, por isso, dúplice de amor e ódio: tanto a sua violência como
o seu erotismo têm que se resolver com o contrabaixo. E, dada a estabilidade
que lhe concede o seu cargo de membro vitalício da orquestra e da impossibilidade
de se dedicar a outra actividade, o contrabaixista percebe que a sua relação é definitiva
e angustiantemente suicida.
Este texto
de Patrick Süskind é, por isso, uma parábola sobre as dificuldades comunicantes
de quem se dedica a um instrumento de comunicação que, impondo uma exigente e
constante presença, lhe envolve a vida e a transforma num inferno de solidão.
No fundo, a arte aparece, não tanto como um veículo de comunicação e de busca
de afecto, mas, pelo contrário, como uma redoma inibidora, dado o seu carácter
absorvente e radicalmente existencial.
Convém,
por
fim,
referir, para melhor o situar, que existem notórias semelhanças,
pela sua temática e pelo seu carácter de monólogo dramático, entre O Contrabaixo
e algumas obras de Samuel Beckett e Thomas Bernhard, sem, contudo, atingir a
concisão estilística e o rigor verbal da produção destes autores.
Saliente-se
ainda a boa qualidade da transcrição para
português
feita
por Anabela Mendes.
Publicado
no Expresso em 1987.
(Foto do Autor de Philipp Keel)
Título:
O Contrabaixo
Autor:
Patrick Süskind
Editor:
Difel
Tradutor:
Anabela Mendes
Ano: 1987
66
págs., esg.
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