UM
SURREALISTA (POUCO) EXEMPLAR
Porém, hoje
é inquestionável que foi esta refutação e a necessidade de conceber um modelo
narrativo alternativo que originaram a introdução de elementos que tornaram a
narrativa muito mais maleável e adequada à sensibilidade contemporânea
(recordo, por exemplo, a introdução do absurdo e do “non-sense” ou a exaustiva
utilização da metáfora e da metonímia como meios de reforçar a intensidade
poética da narrativa). E, se, actualmente, parece evidente o papel desempenhado
pelo surrealismo para revolucionar os modelos da narrativa, e se, por outro
lado, ao longo do séc. XX, não poucos escritores reconheceram a importância do
seu legado estético, numa primeira fase, a relação entre surrealistas e
romancistas assentou bastante em acusações mútuas, desconfiança e “partis
pris”.
Nem que
fosse pela circunstância histórica de ser um dos poucos surrealistas que
utilizou quase exclusivamente o romance como expressão artística, a figura de
René Crevel merece e deve ser lembrada. Mas, para além disso, pela sua atitude
de afrontamento das convenções burguesas e pela coragem interior com que
assumiu e procurou superar as contradições ideológicas da sua geração, foi um
caso invulgar de coerência revolucionária (no sentido mais genuíno - e
surrealista - do termo). A sua vida breve e acidentada e, até mesmo, a sua
morte foram, para lá das motivações subjectivas e da doença, o resultado
dramático de uma busca incessante por viver de acordo com uma nova ética que
libertasse o homem e respeitasse os seus desejos e natureza.
René Crevel
nasceu, com o século XX, em Paris e teve uma adolescência relativamente
desafogada. Em 1920, ao entrar na Sorbonne, conhece alguns colegas que se vão
tornar figuras importantes do meio literário francês (Marcel Arland, Georges
Limbour, mas, muito em especial, o futuro dramaturgo Roger Vitrac, seu parceiro
no movimento surrealista). Só no ano seguinte é que Crevel conhece os
dadaistas, em particular, Tristan Tzara, de quem se tornou grande amigo, Louis
Aragon e André Breton. A partir desse momento, passa a participar no movimento
surrealista, colaborando nas suas revistas e tomando parte activa nas inúmeras
querelas que, de um modo constante, dividiram os seus membros. Em 1924, publica
o seu primeiro livro (Détours) e, nos anos seguintes desta
década, edita à média de uma obra por ano. Porém, as suas relações com o grupo
surrealista não são fáceis: primeiro, porque manifesta, em termos públicos, as
suas dúvidas em relação à importância da “escrita automática”; segundo, porque
são conhecidas as suas relações homossexuais (que André Breton condena
expressamente em 1927). Em 1926 e 27, conhece e convive com Gertrud Stein e H.
G. Wells (por ocasião de uma viagem a Inglaterra, onde se fascina pela obra das
irmãs Brontë, sobre as quais escreveu), que o estimulam a continuar a sua obra romanesca.
Entretanto,
é-lhe diagnosticado uma tuberculose pulmonar. Começa a passar algumas
temporadas em sanatórios e a sua saúde nunca mais se irá recompor. No entanto,
uma enorme ansiedade de viver leva-o a não ficar parado, desdobrando-se em
projectos e numa vida amorosa e social frenética. Projecta ir a Marrocos, mas
desloca-se para Berlim, onde inicia uma relação amorosa com uma alemã, Théa
Sternheim (e com quem, mais tarde, iniciará uma relação a três, uma vez que
ambos se apaixonam por um pintor austríaco, Rudolf Ripper).
Em 1929, os
surrealistas, a pedido de André Breton, resolvem tomar posição sobre o exílio
de Léon Trotsky. René Crevel subscreve a posição dos surrealistas e, a partir
deste momento, ainda se empenha mais nas suas actividades (participa em
reuniões, dirige revistas, com Paul Éluard e René Char, redige artigos sobre
psicanálise e sobre Salvador Dali). Em 1932, em conjunto com Breton, Éluard e
Char, adere à AEAR (Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários),
organização intelectual próxima do PCF. Porém, ao participar em reuniões e
assembleias, desilude-se com a falta de abertura da organização. No ano
seguinte, por ocasião de uma posição crítica relativamente à U.R.S.S.,
desencadeia-se a ruptura entre os surrealistas e os comunistas e Crevel, em
parte também por razões amorosas e de saúde, não só se afasta da organização
pró-comunista como dos surrealistas. Mas, ao mesmo tempo, tenta sensibilizar
Tzara e Char para a necessidade do movimento surrealista se empenhar mais em termos
políticos.
Em 1935,
Crevel afasta-se em definitivo do movimento surrealista, por reacção à exclusão
de Dali, proposta por Breton, e volta a aderir à AEAR. Inicia então um período
de grande militância na organização, preparando o Congresso Internacional de
Escritores em Defesa da Cultura, e procurando, por todas as vias, que este
integre os surrealistas. Mas as crispações entre comunistas e surrealistas são
muito violentas, e o Comité organizador, tendo autorizado a sua participação,
não permite que os surrealistas possam nele ter palavra. Esta decisão foi
tomada no dia 17 de Junho; entretanto, no dia anterior, Crevel tomou
conhecimento que tinha contraído uma tuberculose renal. Na noite de 17 para 18,
Crevel suicidou-se com gaz.
Pode dizer-se
que a obra de Crevel, no curto período de pouco mais de dez anos de produção,
dividiu-se em três fases, correspondentes a diversas obsessões e problemáticas
nucleares na reflexão do autor.
Numa
primeira fase (correspondente às obras Détours, Mon Corps et moi e La
Mort difficile), num esforço de autoconhecimento, de exorcizar alguns
fantasmas e de compreender a sua atracção homossexual, Crevel centra-se na
infância, através da invenção de personagens que são verdadeiros “alter-egos”
do autor, procurando perceber até que ponto a sua família (e, em particular, a
mãe) afectou a sua sensibilidade (convém recordar que o seu pai enforcou-se
quando ele tinha 14 anos e que a mãe o obrigou a ver o pai enforcado, ao mesmo
tempo que imprecava contra o cadáver, acusando-o de cobarde e de dissoluto; o
que é certo, é que esta situação terá, talvez, originado em Crevel uma
acentuada propensão suicida, espelhada na sua obra e em diversos depoimentos,
ao ponto de, no seu primeiro romance, descrever, como a forma mais “decente e limpa”
de morrer, aquela por que vai optar dez anos mais tarde).
Numa
segunda fase (correspondente às obras Babylone e Etes-vous fous? e ao
período de maior empenhamento no movimento surrealista), procura responder a
certas questões levantadas pelo surrealismo nas suas tentativas de conseguir
exprimir as manifestações do inconsciente. De facto, Crevel tinha criticado a
“escrita automática” e as sessões de “sono hipnótico” (protagonizadas em
particular por Robert Desnos, com quem Crevel teve várias polémicas ao longo da
sua curta vida) como veículos de expressão fiel do inconsciente, considerando
mesmo que a consciencialização dessas manifestações (e, por consequência, a sua
transmissão “artística”) as deformava e deturpava. Por isso mesmo, estas obras
de Crevel são verdadeiros “pastiches” da actividade onírica, construindo,
através de imagens que se encavalitam de forma ininterrupta, personagens que
aparecem e desaparecem, objectos que se humanizam e lideram a acção, saltos
bruscos no espaço ou descaracterização integral deste, numa verdadeira torrente
verbal que não só rompe de todo com a narrativa convencional, como pretende, em
particular, “revelar” a dinâmica conflituosa e dilacerante das pulsões oriundas
do inconsciente.
Numa
terceira fase (correspondente às obras Les Pieds dans le plat e Le
Roman cassé e a um período de maior empenhamento político e social), o
trabalho narrativo de Crevel tem menor interesse artístico. No entanto, a
radicalidade e a ombridade com que afronta o capital, e o modelo social que o
sustenta, tem origem numa atitude ideológica consistente e vigilante, sem
pactuações, e é expressa numa retórica panfletária de modelar qualidade
literária.
Para o
leitor actual, os textos de René Crevel poderão parecer demasiado experimentais
e envolvidos nas contradições estéticas, éticas e políticas da época que os viu
nascer. Porém, sobre este facto, nada pode ser apontado (nem exigido) a René
Crevel e à sua obra como a nenhum outro autor que pretende ser genuinamente
criativo e empenhado: a resistência do cristal que fica - o rasto de textos que
se desprendem das mãos – vai-se configurando ou desfigurando pela acção
devastadora do tempo. E, sobre este, o estatuto demiúrgico do autor pouco
pode.
Por fim, a
título de informação, saliento que só tenho conhecimento da existência em
língua portuguesa de duas obras de René Crevel: O Meu Corpo e Eu (Hiena)
e Filhas
do Vento (& Etc.). Na língua original, a maioria das suas obras
encontra-se publicada em edição de bolso (Le Livre de Poche/Col. Biblio ou
Gallimard/Col. L’Imaginaire) ou nas edições Pauvert.
Redigido em
2004 para uma edição comemorativa do Público
da publicação de Os Manifestos Surrealistas que não se chegou a concretizar.
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