segunda-feira, 7 de setembro de 2015

MICHAEL COLLINS

 
 
 
 
 
 

NENHURES
 
Uma das vertentes mais destacáveis da literatura norte-americana do último século caracteriza-se por espelhar uma atitude radicalmente crítica (para não afirmar de quase rejeição) da sociedade que a viu nascer. Esse “olhar” devastador sobre a sociedade americana, na maioria dos casos, tem origem numa concepção de vida obcecadamente individualista e num repúdio da massificação social, na denúncia de uma estratégia de resignação a uma existência devorada pelo “sentido” do todo social, eliminante das diferenças, que as instituições com papel na formação ideológica (a família, a escola, as “igrejas”, a comunicação social, o Estado) têm incutido na população. De facto, o que une escritores tão díspares como Thomas Wolfe ou John dos Passos, Henry Miller ou Nelson Algren, Jack Kerouac ou James Baldwin, ou, para nos aproximarmos das gerações mais recentes, Don DeLillo e Philip Roth, é esta visão da sociedade americana como um imenso deserto urbano, ácido e poluido, onde parece que só por milagre é possível irromper a “flor” da criatividade e da inovação.
 
É na continuidade desta tradição literária que Michael Collins, um recente autor, de origem irlandesa (será por mero acaso que este autor assina de forma homónima a um grande herói nacional irlandês?), mas radicado há muitos anos nos Estados Unidos, escreve o seu romance, agora traduzido no nosso país, intitulado Os Guardiões da Verdade. E a tradição é tão fortemente assumida que algumas páginas deste livro parecem reproduzir, como autêntico “pastiche”, a visão apocalíptica dos Estados Unidos que encontramos em obras, por exemplo, dos autores acima citados.
 
Numa primeira leitura, este obra retoma os ingredientes do romance negro. De facto, toda a trama se desenrola a partir de um caso sinistro de possível parricídio, que sucede numa diminuta povoação do “Middle West”, e que a personagem principal, um jovem redactor trabalhando num pequeno diário local, começa a investigar. E, despoletado por este brutal incidente, lá vão aparecendo – como já se tornou tradicional na literatura e cinematografia americanas que utilizam este tipo de ingredientes - todas as perturbações que, de uma forma larvar, minam aquela reduzida comunidade que, no momento em que se desencadeia a acção narrativa, está a viver um período marcadamente post-industrial (alguns dos trechos mais interessantes de Os Guardiões da Verdade são as descrições da cintura de fábricas abandonadas que rodeiam a cidade e que criam uma peculiar ambiência fantasmagórica) e que, por isso mesmo, segundo a personagem principal, de uma intensa abulia e desnorteio. É sobre essa pacata comunidade que tomba uma tétrica visibilidade (é necessário referir que o corpo da vítima, à excepção de um dedo, e algumas semanas depois, a cabeça, nunca chega a aparecer) com a chegada de equipas de televisão regionais e nacionais, fazendo não só que as suas perturbações assumam a desproporção dada pelos holofotes, mas também que pressione a personagem principal a uma obsessiva reflexão sobre o carácter ultrapassado e envelhecido da sua profissão.
 
Mas numa segunda leitura, introduzida pela análise constante que a personagem principal efectua do seu percurso e do momento que vive, percebe-se que Os Guardiões da Verdade pretende ser uma espécie de alegoria sobre a actual realidade americana. De facto, a personagem principal começa a encaixar, como num “puzzle”, a vivência pessoal (ele é filho de um industrial falido que, ao descobrir que a sua empresa não tem condições de competir com as congéneres que, no Terceiro Mundo, exploram uma mão de obra miserável, se suicida), a vivência dos seus vizinhos (que, embrutecidos pelo consumo e pelo espectáculo, navegam, entre os destroços das suas famílias, numa permanente deriva afectiva e sexual) e o estádio socioeconómico dos Estados Unidos. Neste cenário, todas as personagens começam a assumir um valor simbólico, em particular, as fulcrais da tragédia: o pai/vitíma, com o seu corpo desaparecido, transfigura-se numa realidade, diacronicamente sedimentada por valores de produtividade e de trabalho, mas violenta e rude, que foi desagregada por uma “outra” realidade, personalizada pelo indiciado/filho (traumatizado pelas mortes do irmão no Vietname e da mãe - abandonada em termos afectivos até à desistência de viver - e com os abusos sexuais perpetrados sobre a sua idiotizada mulher), construida pela actual geração americana, que se encontra afundada no meio de uma panóplia de solicitações e instrumentos de fascínio, a impingir-lhe códigos de conduta estereotipados, e se autodestrói, sem conseguir descobrir qualquer sentido harmónico para a existência. É, no fundo, esta a “mensagem” da tatuagem dos dedos do pretenso assassino: numa mão tem inscrita a palavra “Now”, noutra a palavra “Here”, e juntas escrevem a palavra “Nowhere”.
 
Mas este acontecimento horrendo, e a forma como é enquadrado pela comunicação social, vai servir também para que a personagem principal reflita, de um modo questionável, sobre o conflito imprensa escrita/imprensa televisiva. De facto, a personagem principal de Os Guardiões da Verdade entende que, perante uma realidade concreta e física decomposta (o corpo do cadáver que nunca aparece), o jornalismo impresso ainda poderá funcionar, através da interpretação, como instrumento de integração, de reconstrução da “verdade” (repare-se que o jornal local se chama “Truth”), enquanto a outra imprensa (a televisiva) oculta o vazio da realidade concreta através do “fabrico”, com um enorme poder de sedução, de uma outra realidade, transformando os seus consumidores em “zombies”, sem espaço nem lugar, perdidos numa éterea neblina, mas convencidos que estão a presenciar a “verdadeira” realidade. No entanto, este papel da imprensa escrita é também entendido como uma peça arqueológica e condenada ao fracasso: não é por acaso que o proprietário do jornal, por fim, se suicida e que o outro membro da redacção, o fotógrafo, é, de certo modo, parcial cúmplice do assassínio perpetrado. Resta à personagem principal (o redactor), entre dois infernos reais, o caminho da fuga – seguindo as pegadas de muitos outros homens de letras, ao longo da história da cultura americana, que se sentiram impelidos a afastar-se de uma realidade inóspita e que os repudia.
 
Creio que se torna evidente que Michael Collins pretendeu escrever com Os Guaridões da Verdade uma obra ambiciosa e, ao mesmo tempo, pessimista em relação à realidade americana. Como todas as obras deste género, é muito polémica – o que traz sempre a vantagem de contribuir para que o leitor reflita sobre os tempos que passam e os caminhos que se avizinham. Só é pena que, nalguns aspectos, este romance ainda revele algumas fragilidades na arquitectura das personagens e na consistência e verosimilhança das situações.
                                                                                        
Publicado no Público em 2001.
 
Título: Os Guardiões da Verdade
Autor: Michael Collins
Tradução: Alda Balsa Rodrigues
Editor: Gradiva
Ano: 2001
313 págs., € 5,00
 
 


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