CUBA, ANOS
NOVENTA
A Cuba pós-queda
do Muro de Berlim é um dos casos que mais tem contribuído nos dias de hoje para
uma certa turbulência nos campos ideológicos. Para alguns sectores de esquerda,
representa o mais perfeito exemplo dos perigos sociais que pode originar a
prática política de discursos utopistas, apontando-a como uma fortaleza de
miséria, de repressão “popular”, de mediocridade quotidiana, de rasteirismo
cultural. Por isso, é considerada uma criminosa aberração, só explicável pela
obstinação tirânica de Fidel Castro e de alguns títeres que o apoiam.
Paralelamente, certos sectores mais conservadores dessa mesma esquerda enaltecem
Cuba pela sua fidelidade a um modelo social e político, pela sua resistência a
uma “ordem universal” estabelecida pelos Estados Unidos, pela coragem e
criatividade com que afronta um “bloqueio” que pretende vergá-la a aceitar a
“normalidade” capitalista. Para cúmulo de hipocrisia, a própria situação de
estagnação económica - que se considera resultante de um regime comunista
imobilista - voltou a fazer de Cuba, entre o mundo ocidental, um dos locais
importantes do circuito turístico internacional: hoje, procura-se nesta ilha,
para além das praias tropicais, da sensualidade e da “salsa”, a Cuba de
Hemingway que ainda, de um modo lamentável, subsiste. Além disso, o próprio
mundo capitalista transformou o seu herói nacional, Che Guevara, que apenas pretendeu
ser um obstinado guerrilheiro do comunismo internacional, numa figura de
charme, numa espécie de mártir romântico e puro que dá, com a sua imagem, um
suave toque “trágico” no universo sedutor da moda. No meio destas contradições,
encontra-se um povo que é forçado a viver na total escassez, em nome de
“futuros radiosos”, ou a fugir desesperadamente em balsas feitas de pneus e pedaços de madeira, vivendo décadas e
décadas de exílio, mas sempre obcecado por esse “buraco negro” que é a “sua”
Cuba.
E, entretanto, a
literatura? Como se encontra a soberba literatura de Piñera, de Lezama Lima, de
Carpentier? Ter-se-á tornado toda trânsfuga como a de Cabrera Infante e de
Reinaldo Arenas? Por causa dos “bloqueios”, interiores ou exteriores, ou talvez
não, muito pouco se conhece da literatura que hoje se faz em Cuba. Os poucos
casos de autores que se conhecem no estrangeiro são os que, em confronto com o
regime castrista, se exilaram. É o caso recente de Zoé Valdés, uma autora que
obteve algum sucesso em França e, em particular, em Espanha (o seu último
romance foi finalista do Prémio Planeta), e de quem agora a Ed. Teorema
publicou o seu primeiro romance, O Nada Quotidiano.
Costuma dizer-se
que, com bons sentimentos, não se faz boa literatura. É caso para se afirmar
que também é muito difícil fazer boa literatura com maus sentimentos. E o que
ressalta, de imediato, neste romance de Zoé Valdés é uma enorme amargura por
partilhar o destino de um povo que, pelo menos parte dele, sente que foi
condenado a viver abaixo dos limites mínimos da dignidade. É certo que também é
esse sentimento que foi sobressaindo cada vez mais na obra de um Guillermo
Cabrera Infante; mas, neste caso, estamos em presença de um genial malabarista
da palavra que conseguiu “assimilar” em profundidade - e transfigurar em
ambiências de uma magia desesperada - a tragédia de um povo que é castrado, dia
após dia, na sua alegria e criatividade. Não é esse o caso, pelo menos nesta
obra, de Zoé Valdés.
Não se entenda
com isto que não existam méritos significativos em O Nada Quotidiano. A obra
revela inegáveis potencialidades estilísticas da autora, principalmente pela
capacidade de utilização de diversas matizes, que vão desde o aproveitamento de
um registo muito oral, que consegue dar uma toada musical à frase, à manifestação,
muitas vezes conseguida, de uma sentida exaltação lírica ou o uso do humor como
forma de dissecação da mediocridade de situações tanto pessoais como sociais.
Além disso, existe uma inequívoca coragem da autora em ultrapassar, com uma
linguagem desempoeirada, mas bem ajustada ao clima da obra, a convencionalidade
de certas situações, expondo-se de uma forma arrojada e íntegra. O
Nada Quotidiano revela, portanto, fluidez de escrita; e a
irregularidade, que a este nível também se detecta, é muito resultante daquilo
que se chama uma “mão fácil” e à existência, em diversas passagens, de uma
notória incontinência verbal.
O romance,
confessadamente autobiográfico, gira em redor dos amores e desamores de uma
mulher - a quem o pai deu o nome de Pátria porque nasceu na sequência de um “meeting”
do Primeiro de Maio - com o marido e o amante, o Traidor e o Niilista, e nas
relações de cumplicidade com dois amigos exilados. Porém, muito mais importante
do que esta trama, que é quase só esboçada no romance, é o retrato da presença
abusiva do Estado num quotidiano já de si sofredor de enlouquecedoras carências
de tudo. Um Estado que, em nome da justiça social, actua com uma arbitrária
injustiça, reprimindo, espoliando, disseminando um medo larvar ou alimentando
hipócritas cumplicidades em troca de medíocres benefícios, isto é, asfixiando
de todas as formas a vida das populações. Um Estado que, além disso, nas áreas
onde, de um modo legítimo deveria intervir, o não faz por estar totalmente
depauperado, iludindo as pessoas com falsas expectativas ou com actividades de
“fachada”. Neste aspecto, é bem exemplar a imagem que se transmite da Casa da
Cultura, uma instituição que teve uma particular importância cultural em todo o
mundo latino-americano nas décadas de sessenta e setenta, e que, hoje, parece
só subsistir para dar no exterior uma ténue ideia de que o Estado cubano ainda
tem algum respeito pela cultura.
Não ficam
dúvidas de que existe uma dimensão tragicamente vivida nas inúmeras
circunstâncias de uma miséria absurda em que as personagens de O
Nada Quotidiano se enleiam. Mas talvez seja essa dimensão, ainda demasiado
dolorosa na memória da autora, que a tenha condicionado a não superar a tónica
de um simples libelo acusatório contra o regime castrista, a que se resume, de
facto, este romance. No entanto, é justo afirmar-se que O Nada Quotidiano, sem
ser uma grande obra literária, faz pressentir uma autora a quem será
interessante observar o percurso.
Deve ser
assinalada, por fim, a muito boa qualidade da tradução.
Publicado no Público em 1997
Título: O Nada Quotidiano
Autor: Zoé Valdés
Tradução: Serafim Ferreira
Editor: Ed. Teorema
167 págs., esg.
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