terça-feira, 8 de setembro de 2015

ZOÉ VALDÉS



 
 


CUBA, ANOS NOVENTA
 
A Cuba pós-queda do Muro de Berlim é um dos casos que mais tem contribuído nos dias de hoje para uma certa turbulência nos campos ideológicos. Para alguns sectores de esquerda, representa o mais perfeito exemplo dos perigos sociais que pode originar a prática política de discursos utopistas, apontando-a como uma fortaleza de miséria, de repressão “popular”, de mediocridade quotidiana, de rasteirismo cultural. Por isso, é considerada uma criminosa aberração, só explicável pela obstinação tirânica de Fidel Castro e de alguns títeres que o apoiam. Paralelamente, certos sectores mais conservadores dessa mesma esquerda enaltecem Cuba pela sua fidelidade a um modelo social e político, pela sua resistência a uma “ordem universal” estabelecida pelos Estados Unidos, pela coragem e criatividade com que afronta um “bloqueio” que pretende vergá-la a aceitar a “normalidade” capitalista. Para cúmulo de hipocrisia, a própria situação de estagnação económica - que se considera resultante de um regime comunista imobilista - voltou a fazer de Cuba, entre o mundo ocidental, um dos locais importantes do circuito turístico internacional: hoje, procura-se nesta ilha, para além das praias tropicais, da sensualidade e da “salsa”, a Cuba de Hemingway que ainda, de um modo lamentável, subsiste. Além disso, o próprio mundo capitalista transformou o seu herói nacional, Che Guevara, que apenas pretendeu ser um obstinado guerrilheiro do comunismo internacional, numa figura de charme, numa espécie de mártir romântico e puro que dá, com a sua imagem, um suave toque “trágico” no universo sedutor da moda. No meio destas contradições, encontra-se um povo que é forçado a viver na total escassez, em nome de “futuros radiosos”, ou a fugir desesperadamente em balsas feitas de pneus e pedaços de madeira, vivendo décadas e décadas de exílio, mas sempre obcecado por esse “buraco negro” que é a “sua” Cuba.
 
E, entretanto, a literatura? Como se encontra a soberba literatura de Piñera, de Lezama Lima, de Carpentier? Ter-se-á tornado toda trânsfuga como a de Cabrera Infante e de Reinaldo Arenas? Por causa dos “bloqueios”, interiores ou exteriores, ou talvez não, muito pouco se conhece da literatura que hoje se faz em Cuba. Os poucos casos de autores que se conhecem no estrangeiro são os que, em confronto com o regime castrista, se exilaram. É o caso recente de Zoé Valdés, uma autora que obteve algum sucesso em França e, em particular, em Espanha (o seu último romance foi finalista do Prémio Planeta), e de quem agora a Ed. Teorema publicou o seu primeiro romance, O Nada Quotidiano.
 
Costuma dizer-se que, com bons sentimentos, não se faz boa literatura. É caso para se afirmar que também é muito difícil fazer boa literatura com maus sentimentos. E o que ressalta, de imediato, neste romance de Zoé Valdés é uma enorme amargura por partilhar o destino de um povo que, pelo menos parte dele, sente que foi condenado a viver abaixo dos limites mínimos da dignidade. É certo que também é esse sentimento que foi sobressaindo cada vez mais na obra de um Guillermo Cabrera Infante; mas, neste caso, estamos em presença de um genial malabarista da palavra que conseguiu “assimilar” em profundidade - e transfigurar em ambiências de uma magia desesperada - a tragédia de um povo que é castrado, dia após dia, na sua alegria e criatividade. Não é esse o caso, pelo menos nesta obra, de Zoé Valdés.
 
Não se entenda com isto que não existam méritos significativos em O Nada Quotidiano. A obra revela inegáveis potencialidades estilísticas da autora, principalmente pela capacidade de utilização de diversas matizes, que vão desde o aproveitamento de um registo muito oral, que consegue dar uma toada musical à frase, à manifestação, muitas vezes conseguida, de uma sentida exaltação lírica ou o uso do humor como forma de dissecação da mediocridade de situações tanto pessoais como sociais. Além disso, existe uma inequívoca coragem da autora em ultrapassar, com uma linguagem desempoeirada, mas bem ajustada ao clima da obra, a convencionalidade de certas situações, expondo-se de uma forma arrojada e íntegra. O Nada Quotidiano revela, portanto, fluidez de escrita; e a irregularidade, que a este nível também se detecta, é muito resultante daquilo que se chama uma “mão fácil” e à existência, em diversas passagens, de uma notória incontinência verbal. 
 
O romance, confessadamente autobiográfico, gira em redor dos amores e desamores de uma mulher - a quem o pai deu o nome de Pátria porque nasceu na sequência de um “meeting” do Primeiro de Maio - com o marido e o amante, o Traidor e o Niilista, e nas relações de cumplicidade com dois amigos exilados. Porém, muito mais importante do que esta trama, que é quase só esboçada no romance, é o retrato da presença abusiva do Estado num quotidiano já de si sofredor de enlouquecedoras carências de tudo. Um Estado que, em nome da justiça social, actua com uma arbitrária injustiça, reprimindo, espoliando, disseminando um medo larvar ou alimentando hipócritas cumplicidades em troca de medíocres benefícios, isto é, asfixiando de todas as formas a vida das populações. Um Estado que, além disso, nas áreas onde, de um modo legítimo deveria intervir, o não faz por estar totalmente depauperado, iludindo as pessoas com falsas expectativas ou com actividades de “fachada”. Neste aspecto, é bem exemplar a imagem que se transmite da Casa da Cultura, uma instituição que teve uma particular importância cultural em todo o mundo latino-americano nas décadas de sessenta e setenta, e que, hoje, parece só subsistir para dar no exterior uma ténue ideia de que o Estado cubano ainda tem algum respeito pela cultura.
 
Não ficam dúvidas de que existe uma dimensão tragicamente vivida nas inúmeras circunstâncias de uma miséria absurda em que as personagens de O Nada Quotidiano se enleiam. Mas talvez seja essa dimensão, ainda demasiado dolorosa na memória da autora, que a tenha condicionado a não superar a tónica de um simples libelo acusatório contra o regime castrista, a que se resume, de facto, este romance. No entanto, é justo afirmar-se que O Nada Quotidiano, sem ser uma grande obra literária, faz pressentir uma autora a quem será interessante observar o percurso.
 
Deve ser assinalada, por fim, a muito boa qualidade da tradução.
                                                                      
Publicado no Público em 1997
 
Título: O Nada Quotidiano
Autor: Zoé Valdés
Tradução: Serafim Ferreira
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1997
167 págs., esg.
 
 
    


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