O MEDO DO
MEDO
Quando se
procura situar, cultural e literariamente, um escritor como Stig Dagerman, é
forçoso esboçar uma geografia literária que não se tem muitas vezes em
consideração. É evidente que este autor, em termos de sensibilidade e
tipificação estilística, vai “beber” a uma tradição literária sueca que
desemboca no ponto de charneira que é a figura de August Strindberg. Porém,
esse caudal literário, em muitas das suas variantes, aparece como uma ponta
estrelar de uma constelação que tem o seu centro nas manifestações mais
salientes da cultura literária alemã, situadas entre os finais do séc. XIX e o
início da década de cinquenta do séc. XX - e que, de certo modo, vive sob ou em
redor da sombra tutelar dessa outra personagem determinante da cultura
ocidental contemporânea que é Friedrich Nietszche.
Situando-se
nesta tradição, deve ter-se também em consideração o perfil dos autores suecos
mais significativos pertencentes à geração anterior ou mesmo coevos de Stig
Dagerman (Pär Lagerkvist, Hjalmar Bergman, Agnes von Krusenstjerna, Arthur
Lundkvist, Harry Martinson, Eyvind Johnson e Gunnar Ekelöf), onde já perpassa
uma profunda inquietação com o sentido da condição humana, resultante quer da
angustiante confrontação com a morte e, por consequência, com a presença
ausente de Deus, quer na relação com o Outro, e com uma crescente preocupação
com a problemática social, para pereceber a experiência literária,
excepcionalmente radical, que é a obra deste autor.
Antes de se
avançar para a análise de A Serpente, a primeira obra de Stig
Dagerman, publicada em 1945, e a última a ser traduzida e editada no nosso
país, é de toda a justiça realçar o trabalho da editora “Antígona”. De facto,
não é vulgar no nosso meio observarmos o esforço de um editor em publicar a
obra ficcionista de um autor pouco conhecido de uma literatura periférica e,
ainda por cima, não só com traduções cuidadas, como é o caso da obra agora
publicada, mas também acompanhadas de estudos contextualizadores de inegável
qualidade (o Posfácio de C. G. Bjurström desta edição de A Serpente é um excelente
estudo interpretativo de toda a obra de Stig Dagerman, imprescindível para quem
por ela se interessa). É, sem dúvida, um caso de paixão - como deveria sempre
ser tudo o que é edição, se o mundo dos livros não fosse, helas!, também um
comércio. Mas, de qualquer modo, reflecte também um dado conhecido: a obra de
Stig Dagerman costuma originar estes casos de paixão, existindo quase um “clube
de iniciados” que a divulga aos amigos como se fizesse dessa informação um acto
de dádiva e afecto.
Um factor
que contribuiu para a auréola mítica de Stig Dagerman foi a
velocidade-relâmpago da sua carreira literária. De facto, com 22 anos, publicou
a sua primeira obra e, em 1950, o seu derradeiro livro. Depois de quatro anos
quase estéreis e improdutivos, suicidou-se. Tinha 31 anos. E, mal se começa a
ler a sua obra, percebe-se que existia qualquer coisa de irremediável neste
destino, dada a sua coerência radical.
A Serpente é uma obra
híbrida e um pouco inclassificável. Aparentemente, parece tratar-se de uma
colectânea de contos, iniciada com uma novela longa. Mas, na sequência da sua
leitura, percebe-se que algumas personagens, a ambiência e alguns elementos
simbólicos aparecem como obsessões recorrentes de narrativa para narrativa. Em
resumo, A Serpente é um romance que, aproveitando-se, da maleabilidade
do conto, permite fragmentar a unidade temporal, desenvolver personagens que
noutras histórias tinham um papel secundário ou elementos simbólicos que
apareciam primeiramente com uma importância lateral.
Esta
própria estrutura(?) romanesca permite evidenciar aquilo que parece ser uma
característica de toda a obra de Stig Dagerman: o seu carácter obsessivo. De
facto, quem já leu os romances e as peças de teatro deste autor percebe que a
culpa, a angústia, o desespero e - no caso concreto de A Serpente - o medo, como
manifestações da desagregação de sentido para a existência, aparecem como
destroços que emergem, de forma constante, na ondulada maré do(s) texto(s). Por
outro lado, as próprias características estilísticas do autor - bem
evidenciadas em A Serpente - reforçam esta componente obsessiva: o enfâse
constante no encadeamento das metáforas, criando uma ambiência fantasmagórica,
desfigurada, de intenso simbolismo, e anulando as fronteiras entre a realidade
e a subjectividade, permite tipificar o estilo de Stig Dagerman como uma
variante de “expressionismo tardio” e que ele “serve” para realçar a dimensão
trágica do deambular existencial das suas personagens.
É evidente
que a imediata tendência dos comentaristas foi associar o ambiente concentracionário
de caserna militar de A Serpente à II Guerra Mundial. No
entanto, é também claro que este motivo visa atingir um objectivo mais amplo: o
de transmitir uma imagem ontológica em que os contornos da existência aparecem
como um espaço fechado donde toda a fuga é efémera e ilusória. E para a
caraterização deste sentimento, decisivo para a cultura europeia contemporânea,
a obra de Stig Dagerman é um inquestionável marco.
Publicado
no Público em 2000.
Título: A Serpente
Autor : Stig Dagerman
Tradução: Ana Diniz
Editor: Antígona
Ano: 2000
332 págs., €
7,50
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