AS EXIGÊNCIAS DA TERRA
Uma das fases decisivas na afirmação literária dos povos
do Terceiro Mundo, em particular nos domínios da narrativa escrita, está
associada ao processo (por vezes longo) da sua luta activa pela independência
política e de refutação dos sistemas de dominação colonial. Em muitos casos,
foi este o período “fundador” da sua narrativa escrita, o que, mais uma vez,
parece vir confirmar as velhas teorias luckasianas de associar o aparecimento
desta expressão artística ao processo histórico de conquista do poder por parte
das burguesias nacionais. É o caso da Indonésia, onde, com algumas antecedentes
excepções, a narrativa literária escrita, como movimento de expressão
artística, apareceu no período de repúdio do sistema colonial; e, nesse aspecto,
a obra de Pramoedya Ananta Toer, como componente de proa desse movimento, é
decisiva e, em muitos aspectos, exemplar.
Simplesmente, as circunstâncias históricas em que aparecem
estas obras condicionam, muitas vezes, a sua temática e mesmo a concepção dos
modelos narrativos. As exigências da luta política e a denúncia de estruturas
socio-económicas acentuadamente injustas (para não dizer criminosas) das
populações colonizadas levam estes autores à produção de obras com um grau de
intervencionismo mais imediato ou, pelo menos, a inscrever-lhes, com
preponderância, o objectivo de contribuirem - aproveitando os efeitos
dramáticos do texto narrativo - para reforçar a formação da consciência cívica
dos seus leitores. Esta opção, em si mesma positiva e louvável, pode, no
entanto, originar uma maior “temporalização” das obras; isto é, agrilhoá-las a
um circunstancialismo temporal que, de uma forma inevitável, condiciona a sua
leitura noutro espaço e noutro tempo.
Creio que é este o caso do último romance editado no nosso
país de Pramoedya Ananta Toer, intitulado Uma Estranha Terra. Este autor
indonésio que, em consequência das suas posições políticas e da sua luta pela
defesa dos direitos humanos, passou uma boa parte da vida preso ou em retenção
domiciliária - chegando ao ponto de lhe retirarem os meios para escrever (como
é referido na edição, Uma Estranha Terra foi, antes de ser
redigido, “fixado” oralmente no Campo Prisional de Buru) – tornou-se um símbolo
vivo, por um lado, da tentativa de criação de um imaginário literário nacional,
por outro, do escritor que, por exigências cívicas inadiáveis, se viu obrigado
a condicionar a criação desse imaginário a objectivos de intervenção política.
O facto de Uma Estranha Terra ser um romance
histórico (a sua trama passa-se nos finais do séc. XIX) deve-se, com alguma
probabilidade, a necessidades de fugir a uma contemporaneidade que, sem sombra
de dúvidas, condicionaria a circulação da obra. É certo que a história deste
jovem nativo que, ainda no liceu, revela aptidões intelectuais e literárias
precoces a par de um enorme fascínio pela cultura europeia, é tingida com
colorações de época. Mas o interesse fundamental da obra é demonstrar como essa
cultura ocidental, mesmo embebida de humanismo, era um alicerce central dos
impérios coloniais, visto que fundamentou um quadro legal muitíssimo discriminatório
entre cidadãos de origem europeia, mestiços e nativos, ao ponto de, através de
brutais arbitrariedades, coagir o seu destino, como – é o caso referido na obra
- o de não reconhecer os direitos maternos a nativas que tivessem filhos de
europeus ou o de considerar nulos os casamentos interraciais. Ora, este tema,
pertinente até ao fim do “apartheid” e dos impérios coloniais, tem hoje,
felizmente, uma dimensão em grande parte “histórica”: à excepção de certos
movimentos grupusculares que perderam o sentido da História e que apenas
procuram aproveitar-se das tensões socio-económicas para tentarem fazer
renascer posições sociais segregativas, ninguém, com significativas responsabilidades,
seja qual for a sua fundamentação política, assume hoje, em termos históricos,
a defesa da existência de Estados que incorporem, no seu quadro legal, um
tratamento discriminatório, com base na distinção étnica, dos seus cidadãos.
Por isso mesmo, as componentes mais interessantes deste
romance estão hoje na sua galeria de personagens e no tratamento literário de
alguma sabedoria tradicional indonésia. Em particular, destaca-se a figura
feminina de Nyai Ontosoroh (a amante nativa, “comprada” aos pais, de um rico
proprietário holandês) que, com uma invulgar força de carácter, e contra todos
os interesses colonialistas, consegue não só gerir e fazer prosperar os
negócios da família, mas também adquirir alguma educação europeia e transmitir
essa formação aos seus filhos. Ou ainda a do pintor francês, alistado no
exército colonial holandês, que, depois de ter participado em violentas
operações de repressão das rebeliões dos indígenas de Aceh e ter ficado ferido,
se apaixona por uma indígena e, atormentado pela desmesura criminosa dos seus
actos passados, procura redimi-los através do afecto à filha mestiça. Ou, por
fim, a assombrosa história de uma prostituta japonesa que, depois de ter
percorrido os bordéis de diversos portos do Extremo Oriente, acaba vendida, já
corroída de sífilis, por meia dúzia de tostões, a um proxeneta chinês,
proprietário de uma “casa de prazer” em Java.
A personagem principal, o jovem estudante nativo em redor
do qual vai aparecendo esta fascinante galeria de personagens de “Uma Estranha
Terra”, é, em certa medida, um “alter-ego” do autor, principalmente no doloroso
dilema que vive entre o fascínio da cultura europeia, a consciência crescente
do carácter desumano do regime colonial e a necessidade de contribuir para
revitalizar a tradição cultural indonésia. Hoje, em que se pode considerar que
boa parte da obra de Pramoedya Ananta Toer já está concluída, pode afirmar-se
que o seu prestígio literário – e sem menosprezo pela invulgar coragem cívica
que revelou toda a sua vida – está, no fundamental, em dois aspectos da sua
obra: a simbiose que conseguiu realizar entre duas tradições culturais que, em
termos históricos, se opuseram e, sobretudo, na sua capacidade de transfigurar
em personagens as inquietações e o sofrimento profundos de uma sociedade tão
heteróclita e culturalmente rica como é a indonésia.
Publicado no Público em 2003.
Título: Esta Estranha Terra
Autor: Pramoedya Ananta Toer
Tradução (da versão inglesa): Daniela Garcia
Editor: Quetzal Editores
Ano: 2003
415 págs., esg.