AS MÁSCARAS DOS
DEUSES
Uma
das características de alguma da actual ficção (aquela que certos comentadores
ousam definir como pós-moderna) relaciona-se com uma nova análise da estrutura
dos mitos. De facto, um sintoma comum a escritores de origem e qualidade muito
diversa (lembro, a título de exemplo, John Barth, Michel Rio, Gesualdo Bufalino
e Christoph Ransmayr) é a tentativa de equacionar a funcionalidade do mito como
figura paradigmática, de modo a que as personagens (mesmo originais) se ajustem
com rigor às necessidades (narrativas, estéticas, epistemológicas) actuais.
É
óbvio que esta tendência não é só dos dias de hoje (não é a novidade o que aqui
se pretende), mas o seu carácter sintomático e deliberadamente intencional
talvez o seja. Esta atitude é resultante, também é óbvio, da generalizada e
forte consciência de que o real literário é sempre um simulacro de si próprio:
natural é, por isso, a reflexão sobre os mitos, dado o seu estatuto de fundadores
da narratividade e a sua capacidade de abrangente integração e interpretação.
Por outro lado, essa reflexão poderá libertar a ficção daquilo que, para alguns
autores, é um dos seus maiores perigos: a banalização das personagens e situações
(utilizando-se aqui o termo banalização no mesmo sentido em que alguns
cineastas falam, com riscos idênticos, de banalização da imagem).
É
neste contexto que se deve entender a obra de Roberto Calasso, As Núpcias
de Cadmo e Harmonia. Aqui o projecto é radical e simples: estabelecer,
em síntese global, um novo “olhar” sobre os mitos clássicos gregos.
Antes
de mais, convém salientar que esse olhar advém de um pressuposto determinado: o
de que toda a cultura grega (pelo menos até Platão) assume a sua mitologia como
uma hermenêutica. Quer isto dizer, que o comportamento humano é um tecido
forrado pelo comportamento divino: nada na existência se produz sem que a teia
de fios que conduz à divindade se faça sentir. Daí que a intensidade da vida
seja entendida, como Roberto Calasso várias vezes refere, como o excesso
resultante da imposição do divino no humano. Essa perturbação, resultante de
uma hierogamia, é aplacada pelo sacrifício, que satisfaz os deuses, não só porque
realça a sua qualidade excepcional (a imortalidade), mas porque, em contraste,
dá consciência aos homens da sua “culpa original”: serem mortais e o seu sangue
alimentar-se da morte para existir e circular. Por outro lado, toda a sabedoria
humana alvejada parte deste princípio (a presença constante do divino) e, por
isso, visa uma temperança que é, por dominância, estética, isto é, “morta”.
Repare-se
que esta hermenêutica tem origem num acto erótico (a hierogamia), numa posse
total. Daí que, para os Gregos, o acto erótico, entre deuses e homens ou entre homens,
fosse aquele que permitisse atingir o conhecimento perfeito; o acto erótico
transmite do amante ao amado a “graça” (a “charis”) que faz resplandecer o seu
olhar, aproximando-o da natureza divina: “luz
sobre luz”.
Mas,
ao mesmo tempo, o acto erótico revela aquilo que, para Roberto Calasso, é
fundamental no processo de conhecimento dos Gregos: o simulacro. O acto erótico
é um acto de si para si mesmo, simulado pelo objecto amado; é um re-conhecimento,
tornando-se a pupila do objecto amado na de Hades (a Morte), onde o amante se
reflecte e descobre a precaridade da sua existência, a sua diáfana aparição
entre o invisível e o invisível.
Percebe-se,
assim, porque é que a realidade é translúcida: ela é a simulação de uma outra
realidade, a dos deuses, dos heróis, de toda uma multidão de Seres onde de
facto se decide a realidade material que os “modernos” assumem como única. Daí
a “irresponsabilidade” e a ligeireza de toda a cultura grega, caracterizada
pelo relevo da determinante estética e o sub-lugar do ético. E, por outro lado,
a importância que nesta cultura tem a fatalidade, o complemento inevitável da
irresponsabilidade: Ananké, a única deusa que não vale a pena nomear, porque não
ouve.
O
que querem os homens dos deuses? Pouca coisa (na verdade, os homens vivem bem
sem os deuses porque estes vivem sempre com eles): uma certa beleza, distinta
daquela que, na vida, está contida no excesso fatal que é a morte. Por isso, os
Gregos foram, como se afirma em As Núpcias de Cadmo e Harmonia,
grandes criadores de moldes, de molduras: a arte é, por essência, a criação de
uma forma, de uma ordem, onde se procura “ocultar” o excesso natural através da
“techné”. Por outro lado, a retórica, refere o anónimo autor de A
Cerca do Sublime, citado por Roberto Calasso, é uma tentativa de
transmitir “luz” ao já iluminado, sendo esta habilidade, em exclusivo humana, aquela
que se aproxima mais das características demiúrgicas dos deuses.
A
arte, e principalmente a literatura, é, por conseguinte, uma narrativa onde se
procura envolver o mito. Esta simulação, procurando abranger, de forma fragmentária,
todas as variantes do mito, pretende atingir o conhecimento através de um artifício
de ofuscação, uma vez que o seu significado, para que seja perfeita, deverá ser
apenas “uma pequena tira oscilante de lã”,
presa a uma forma, que alude mais do que desvenda: “o primeiro inimigo do estético é o significado”, afirma-se a
determinado passo de As Núpcias de Cadmo e Harmonia.
Por
isso, quando os deuses e os heróis resolveram iludir a sua permanente presença
entre os homens (os últimos heróis foram Édipo e Odisseus, mestres da palavra),
quando os homens se afastaram dos deuses, dando sentido à sua existência através
da hipótese da “salvação” (e aqui tiveram um papel importante os órficos e Platão),
“o contacto com os seres e lugares
primordiais apenas poderá acontecer através da literatura”. As núpcias dos
heróis Cadmo e Harmonia foram o derradeiro momento da “máxima aproximação” entre os deuses e os homens; depois,
envelhecidos, expulsos de Tebas por Dionisos, Cadmo, o fenício, aquele que
espalhará pela terra grega as “pegadas de
mosca” do alfabeto, e Harmonia, “a
que concilia o oposto e o selvagem”, foram obrigados a continuar sua
errância e a dar início à História.
Convém
assinalar, a terminar, que a leitura aqui feita de As Núpcias de Cadmo e Harmonia
é só uma forma, retoricamente humilde, de caminhar pela beleza fulgurante desta
prosa pura (no sentido mais preciso que este termo deve ter - o de um texto que
vive da deriva permanente entre géneros). Impossível pretender acompanhar a sua
sinuosidade, colmatar a sua ilusória fragmentação. A justeza entre forma e
perspectiva (e esta é notoriamente pré-romântica) consegue que esta obra de
Roberto Calasso nunca se transforme num manual sobre a mitologia grega, mas antes
num tratado que parece que não o é; ou seja, onde os sentidos são, em permanência,
integrados e centrifugados. É desta justeza, resultante de uma reflexão
classicizante e inovadora sobre a cosmovisão homérica, que advém a imensa
importância desta obra: ninguém mais, depois da leitura de As Núpcias de Cadmo e Harmonia,
pode continuar ingenuamente convicto do estatuto irreversível da modernidade.
Publicado no Público em 1990
Título: As Núpcias de Cadmo e Harmonia
Autor: Roberto Calasso
Tradução: Maria Jorge Vilar de Figueiredo
Editor: Edições Cotovia
Ano: 1990
396 págs., € 5,00
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