terça-feira, 8 de março de 2016

NATALIA GINZBURG

 
 
 
 

DA NOSTALGIA
 
 
A leitura de Todos Os Nossos Ontens de Natalia Ginzburg transmite-nos a sensação, com reminiscências encantatórias na nossa memória, de vir de um tempo que se tornou arqueológico. E até mesmo a sua forma narrativa e o modo como caracteriza as personagens e as situações dramáticas se assemelham aos romances que devorámos na nossa adolescência… Só que temos que reconhecer que esses modelos hoje já estão próximos do banal estereótipo de muitas narrativas que se pretendem “desempoeiradamente” realistas.
 
No entanto, a leitura da sua ficha editorial esclarece que Todos Os Nossos Ontens foi publicado pela primeira vez em 1952 e, por conseguinte, aquilo que nele era inovador e criativo hoje já se tornou bem comum. Por isso, sem pretender afirmar que o interesse deste romance é apenas “histórico”, não admira que se vislumbre, aqui e além, as “rugas” de um texto que foi importante – assim como a restante obra narrativa que Natalia Ginzburg foi publicando desde os princípios dos anos quarenta – para o desbravar de caminhos na narrativa italiana contemporânea.
 
De facto, esta autora pertence a uma geração que, com Elsa Morante, Primo Levi e Leonardo Sciascia (para apenas falar de autores que há pouco tempo foram editados em português), se caracterizou por ter originado uma reavaliação dos princípios estéticos e literários do neo-realismo, propiciando, conforme os casos, ou a sua desagregação ou a sua revitalização. Natalia Ginzburg, com as suas crónicas familiares intimistas e de uma atenta observação do quotidiano, foi uma das escritoras que concorreu significativamente para o segundo caso.
 
Todos os Nossos Ontens narra a existência de duas famílias pequeno-burguesas do Norte de Itália durante a ascensão e queda do fascismo. Mas, em contraste com o neo-realismo, nada existe neste conjunto de personagens de epicidade ou positividade em relação à classe que representa. Se, na narrativa, continua a existir uma caracterização classista, esta é, contudo, perspectivada a partir da experiência e da sensibilidade individual (e não ao contrário, como acontece, a maior parte das vezes, no neo-realismo): tudo se passa como se as prepotências do fascismo, a guerra, a fome e a ocupação alemã só tivessem existência real no privado de cada personagem. As grandes perturbações, que abalaram a história colectiva da Itália durante os anos vinte e o final da década de quarenta, são, assim, dimensionadas ao mesmo nível que os acontecimentos marcantes da história individual (a amizade, o amor, o casamento, a viagem, etc.), fazendo um todo indissociável. É por isso que, dessa realidade evenemencial, o que sobressai é o discorrer inexorável do tempo (de facto, a figura central de Todos os Nossos Ontens) que, consumindo a existência das diversas personagens, as obscureceu na mediocridade, deixando-as, como elas próprias reconhecem no final do livro, inteiramente impreparadas em relação ao futuro.
 
Por isso, estas personagens (como, no essencial, a geração a que pertence a autora) só podem ter, no final da guerra, como seu património, uma intensa nostalgia por todos esses “ontens” que são, no seu presente, representações depositárias dos dramas do passado filtradas pela memória e pelo esquecimento. É dessa tonalidade nostálgica, que perpassa por toda a narrativa, elaborada num ritmo frásico longo e encadeado, em estreita consonância com o fluir do tempo, que advêm a qualidade estética de Todos os Nossos Ontens e o seu, ainda actual, poder de fascinação.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Todos os Nossos Ontens
Autor: Natalia Ginzburg
Tradutor: Anna Auba Caruso
Editora: Edições Cotovia
Ano: 1990
332 págs., € 1,00
 
 


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