DA NOSTALGIA
A leitura
de Todos
Os Nossos Ontens de Natalia Ginzburg transmite-nos a sensação, com
reminiscências encantatórias na nossa memória, de vir de um tempo que se tornou
arqueológico. E até mesmo a sua forma narrativa e o modo como caracteriza as personagens
e as situações dramáticas se assemelham aos romances que devorámos na nossa
adolescência… Só que temos que reconhecer que esses modelos hoje já estão
próximos do banal estereótipo de muitas narrativas que se pretendem “desempoeiradamente”
realistas.
No
entanto, a leitura da sua ficha editorial esclarece que Todos Os Nossos Ontens
foi publicado pela primeira vez em 1952 e, por conseguinte, aquilo que nele era
inovador e criativo hoje já se tornou bem comum. Por isso, sem pretender
afirmar que o interesse deste romance é apenas “histórico”, não admira que se
vislumbre, aqui e além, as “rugas” de um texto que foi importante – assim como
a restante obra narrativa que Natalia Ginzburg foi publicando desde os
princípios dos anos quarenta – para o desbravar de caminhos na narrativa
italiana contemporânea.
De
facto, esta autora pertence a uma geração que, com Elsa Morante, Primo Levi e
Leonardo Sciascia (para apenas falar de autores que há pouco tempo foram
editados em português), se caracterizou por ter originado uma reavaliação dos
princípios estéticos e literários do neo-realismo, propiciando, conforme os
casos, ou a sua desagregação ou a sua revitalização. Natalia Ginzburg, com as
suas crónicas familiares intimistas e de uma atenta observação do quotidiano,
foi uma das escritoras que concorreu significativamente para o segundo caso.
Todos
os Nossos Ontens narra a existência de duas famílias pequeno-burguesas
do Norte de Itália
durante a ascensão e queda do fascismo. Mas,
em
contraste com o neo-realismo, nada existe neste conjunto de personagens de epicidade
ou positividade em relação à classe que representa. Se, na narrativa, continua
a existir uma caracterização classista, esta é, contudo, perspectivada a partir
da experiência e da sensibilidade individual (e não ao contrário, como
acontece, a maior parte das vezes, no neo-realismo): tudo se passa como se as prepotências
do fascismo, a guerra, a fome e a ocupação alemã só tivessem existência real no
privado de cada personagem. As grandes perturbações, que abalaram a história
colectiva da Itália durante os anos vinte e o final da década de quarenta, são,
assim, dimensionadas ao mesmo nível que os acontecimentos marcantes da história
individual (a amizade, o amor, o casamento, a viagem, etc.), fazendo um todo indissociável.
É por isso que, dessa realidade evenemencial, o que sobressai é o discorrer inexorável
do tempo (de facto, a figura central de Todos os Nossos Ontens) que,
consumindo a existência das diversas personagens, as obscureceu na mediocridade,
deixando-as, como elas próprias reconhecem no final do livro, inteiramente impreparadas
em relação ao futuro.
Por
isso, estas personagens (como, no essencial, a geração a que pertence a autora)
só podem ter, no final da guerra, como seu património, uma intensa nostalgia
por todos esses “ontens” que são, no seu presente, representações depositárias
dos dramas do passado filtradas pela memória e pelo esquecimento. É dessa
tonalidade nostálgica, que perpassa por toda a narrativa, elaborada num ritmo
frásico longo e encadeado, em estreita consonância com o fluir do tempo, que advêm
a qualidade estética de Todos os Nossos Ontens e o seu,
ainda actual, poder de fascinação.
Publicado no Público em 1990.
Título: Todos os Nossos Ontens
Autor: Natalia Ginzburg
Tradutor: Anna Auba Caruso
Editora: Edições Cotovia
Ano: 1990
332 págs., € 1,00
Sem comentários:
Enviar um comentário