UMA MÃE, UM PRINCÍPIO
Um dos mais expressivos sinais da existência de
progressos de democracia sociocultural nos Estados Unidos manifesta-se na
afirmação literária, nas últimas décadas do séc. XX, das minorias étnicas. De
facto, só nas décadas de oitenta e noventa - se excluirmos o caso da minoria
negra –, é que as diversas comunidades, do gigantesco mosaico étnico que constitui
os Estados Unidos, conseguiram introduzir-se nos circuitos das grandes editoras
americanas e, a partir daí, obter o reconhecimento da crítica e do público
leitor. É o caso da minoria sino-americana, radicada principalmente na
Califórnia, representada já hoje por diversos autores (saliento, a título de
exemplo, os nomes de Maxine Hong Kingstom e Ha Jin), mas, entre os quais, sem
sombra de dúvidas, se destacou, pelo seu sucesso nacional e internacional, a
escritora Amy Tan.
Esta autora, filha de pais chineses que emigraram
para os Estados Unidos após a II Guerra Mundial, nasceu na Califórnia, no
início dos anos cinquenta. Como é natural, toda a formação da autora absorveu
os códigos socioculturais das duas culturas (chinesa e americana), tendo tirado
uma licenciatura em linguística e iniciado a sua actividade profissional a
trabalhar com crianças deficientes. Foi já tardiamente, após a morte da mãe (e quando
descobriu, por acaso, que a mãe tinha outro nome e outra identidade na China),
que resolveu começar a escrever, publicando, só em 1989, o seu primeiro
romance, O Clube da Sorte e da Alegria, que foi um tremendo sucesso
público (mais de um milhão de exemplares vendidos) e da crítica (foi finalista
do National Book Award e do National Book Critics Circle Award). Depois,
publicou mais três romances (todos eles traduzidos e editados em Portugal,
sendo o último, A Filha do Curandeiro, muito recentemente), sempre com enormes
sucessos de vendas, ao ponto de transformar a autora numa figura mediática e
popular nos Estados Unidos.
Toda a obra desta autora - funcionando cada
romance como uma espécie de variante analítica - se tem centrado, por sistema, na
mesma temática: a revalorização, sentimental e filosófica, da tradição cultural
chinesa no contexto americano e a tentativa de evidenciar a importância da
ancestralidade familiar – em particular, na relação mãe-filha – como pilar
essencial na definição de um quadro de valores e, por consequência, como
elemento orientador para o estabelecimento de um posicionamento específico no
contexto mais amplo da cultura americana.
Neste sentido, A Filha do Curandeiro é
bem exemplar. Basicamente, o romance centra-se numa mulher de meia-idade, filha
de chineses, e com uma vida profissional e afectiva muito desgastante e
absorvente, que, de súbito, percebe que a sua mãe começou a ter falhas de
memória, a fazer confusões trágicas, tendo, por conseguinte, sintomas da doença
de Alzheimer: ao tentar compreender melhor o passado da mãe, descobre então que
desconhece o seu percurso, mesmo quem era de facto a sua família, tomando
consciência - um pouco tarde de mais – das profundas motivações do seu
comportamento na aparência estranho. É esta situação – resultante em grande
parte, não só das dificuldades de relacionamento entre gerações, mas do próprio
afastamento das suas raízes culturais – que vai obrigar a personagem principal
a uma tentativa de reencontro com o passado familiar, conseguindo-o através da
“tradução” de um manuscrito que a mãe lhe deixou, onde esta expõe a sua existência
desde o nascimento até chegar aos Estados Unidos. A transcrição deste
“manuscrito” constitui a componente central do romance (A Filha do Curandeiro
dispõe-se na forma de um tríptico) e nele se espelha, através do trágico
destino daquela figura feminina, a postura sociocultural de uma família de
comerciantes da China na primeira metade do séc. XX e as vicissitudes que sofre
em consequência das bruscas mutações políticas do país. No final, este mergulho
numa cultura milenar, repleta de códigos e de ritos ancestrais, de todo alheios
à pretensa racionalidade ocidental, transfigura a personagem central, serenando
a sua relação com a mãe, e tornando-a mais disponível para compreender a
dinâmica afectiva e intelectual que o modelo social americano lhe impõe.
Amy Tan revela, mais uma vez, que domina com
profissionalismo os registos narrativos, conseguindo uma obra que associa uma
certa densidade lírica e trágica com uma inegável capacidade de anotar
comportamentos e situações pertencentes a uma sociedade bem distante, cultural
e temporalmente. No entanto, a leitura de A Filha do Curandeiro leva, a qualquer
leitor que tenha acompanhado a sua obra, a colocar uma questão: não será
inevitável que a autora encaminhe a sua obra para outros registos e temáticas,
sob pena – a manter-se a tendência actual – dos futuros romances se tornarem
repetitivos e monótonos?
Publicado no Público
em 2002.
Título: A Filha do Curandeiro
Autor: Amy TanTradução: Ana Fonseca
Editor: Editorial Presença
Ano: 2002
340 págs, € 17, 62
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