segunda-feira, 21 de março de 2016

AMY TAN

 



UMA MÃE, UM PRINCÍPIO

 

Um dos mais expressivos sinais da existência de progressos de democracia sociocultural nos Estados Unidos manifesta-se na afirmação literária, nas últimas décadas do séc. XX, das minorias étnicas. De facto, só nas décadas de oitenta e noventa - se excluirmos o caso da minoria negra –, é que as diversas comunidades, do gigantesco mosaico étnico que constitui os Estados Unidos, conseguiram introduzir-se nos circuitos das grandes editoras americanas e, a partir daí, obter o reconhecimento da crítica e do público leitor. É o caso da minoria sino-americana, radicada principalmente na Califórnia, representada já hoje por diversos autores (saliento, a título de exemplo, os nomes de Maxine Hong Kingstom e Ha Jin), mas, entre os quais, sem sombra de dúvidas, se destacou, pelo seu sucesso nacional e internacional, a escritora Amy Tan.

 
Esta autora, filha de pais chineses que emigraram para os Estados Unidos após a II Guerra Mundial, nasceu na Califórnia, no início dos anos cinquenta. Como é natural, toda a formação da autora absorveu os códigos socioculturais das duas culturas (chinesa e americana), tendo tirado uma licenciatura em linguística e iniciado a sua actividade profissional a trabalhar com crianças deficientes. Foi já tardiamente, após a morte da mãe (e quando descobriu, por acaso, que a mãe tinha outro nome e outra identidade na China), que resolveu começar a escrever, publicando, só em 1989, o seu primeiro romance, O Clube da Sorte e da Alegria, que foi um tremendo sucesso público (mais de um milhão de exemplares vendidos) e da crítica (foi finalista do National Book Award e do National Book Critics Circle Award). Depois, publicou mais três romances (todos eles traduzidos e editados em Portugal, sendo o último, A Filha do Curandeiro, muito recentemente), sempre com enormes sucessos de vendas, ao ponto de transformar a autora numa figura mediática e popular nos Estados Unidos.

 
Toda a obra desta autora - funcionando cada romance como uma espécie de variante analítica - se tem centrado, por sistema, na mesma temática: a revalorização, sentimental e filosófica, da tradição cultural chinesa no contexto americano e a tentativa de evidenciar a importância da ancestralidade familiar – em particular, na relação mãe-filha – como pilar essencial na definição de um quadro de valores e, por consequência, como elemento orientador para o estabelecimento de um posicionamento específico no contexto mais amplo da cultura americana.


Neste sentido, A Filha do Curandeiro é bem exemplar. Basicamente, o romance centra-se numa mulher de meia-idade, filha de chineses, e com uma vida profissional e afectiva muito desgastante e absorvente, que, de súbito, percebe que a sua mãe começou a ter falhas de memória, a fazer confusões trágicas, tendo, por conseguinte, sintomas da doença de Alzheimer: ao tentar compreender melhor o passado da mãe, descobre então que desconhece o seu percurso, mesmo quem era de facto a sua família, tomando consciência - um pouco tarde de mais – das profundas motivações do seu comportamento na aparência estranho. É esta situação – resultante em grande parte, não só das dificuldades de relacionamento entre gerações, mas do próprio afastamento das suas raízes culturais – que vai obrigar a personagem principal a uma tentativa de reencontro com o passado familiar, conseguindo-o através da “tradução” de um manuscrito que a mãe lhe deixou, onde esta expõe a sua existência desde o nascimento até chegar aos Estados Unidos. A transcrição deste “manuscrito” constitui a componente central do romance (A Filha do Curandeiro dispõe-se na forma de um tríptico) e nele se espelha, através do trágico destino daquela figura feminina, a postura sociocultural de uma família de comerciantes da China na primeira metade do séc. XX e as vicissitudes que sofre em consequência das bruscas mutações políticas do país. No final, este mergulho numa cultura milenar, repleta de códigos e de ritos ancestrais, de todo alheios à pretensa racionalidade ocidental, transfigura a personagem central, serenando a sua relação com a mãe, e tornando-a mais disponível para compreender a dinâmica afectiva e intelectual que o modelo social americano lhe impõe.

 
Amy Tan revela, mais uma vez, que domina com profissionalismo os registos narrativos, conseguindo uma obra que associa uma certa densidade lírica e trágica com uma inegável capacidade de anotar comportamentos e situações pertencentes a uma sociedade bem distante, cultural e temporalmente. No entanto, a leitura de A Filha do Curandeiro leva, a qualquer leitor que tenha acompanhado a sua obra, a colocar uma questão: não será inevitável que a autora encaminhe a sua obra para outros registos e temáticas, sob pena – a manter-se a tendência actual – dos futuros romances se tornarem repetitivos e monótonos?

           

Publicado no Público em 2002.

 

 
Título: A Filha do Curandeiro
Autor: Amy Tan
Tradução: Ana Fonseca
Editor: Editorial Presença
Ano: 2002
340 págs, € 17, 62
 
 
 



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