FELIZ APRENDIZAGEM DA
MORTE
Uma das mais fascinantes áreas de reflexão e estudo da
historiografia recente é a que se tem definido pelo epíteto de “análise das imagens
da História”. No essencial, esta debruça-se sobre as formas como se relaciona o
percurso individual e a história colectiva e, em particular, pelas “imagens” ou
“tratamentos” que a evolução social sofre no discurso pessoal. Tem-se assim conseguido
sobressair, de forma metódica, as modalidades como ao nível do privado tem sido
“vivida” a História. Nesta área de investigação, os grandes romances contemporâneos
têm-se revelado como excelentes objectos de estudo. E, dentro desta ordem de
ideias, a leitura de Eu Que Servi o Rei de Inglaterra, o
primeiro romance de Bohumil Hrabal traduzido para português, faz-nos crer que,
pela sua imaginação esfuziante e barroca, pela dimensão simbólica e metafórica
das situações narradas, se conseguiria estabelecer um inesgotável manancial de
recorrências generalizáveis que permitiria compreender como no foro privado se
viveram os vinte anos (1930-1950) mais importantes da historia contemporânea da
Checoslováquia.
Bohumil Hrabal é geralmente considerado, com Milan
Kundera e Josef Skvorecky, um dos maiores escritores checos vivos. Começou a publicar
já tarde, com perto de cinquenta anos, no início da década de sessenta, obtendo
logo com o seu primeiro livro, Pequenas Pérolas do Fundo, um enorme
sucesso e tornando-se, desde essa altura, um dos escritores mais populares do seu
país natal. Na década de setenta, apos a passagem no circuito internacional do
filme Trens Rigorosamente Vigiados de Jiri Menzel, retirado de uma sua
novela homónima, começou a ser traduzido, adquirindo um amplo reconhecimento, sobretudo
nos países anglo-saxónicos.
Entretanto, começaram os seus problemas com o poder político
e a censura. Após a “Primavera de Praga”, Bohumil Hrabal foi impedido de
publicar e, durante oito anos, não apareceu nenhuma obra sua nas livrarias (este
romance, Eu Que Servi o Rei de Inglaterra, só circulou na Checoslováquia
como “samizadt”). A partir daí, iniciou-se um jogo do gato e do rato ou de braço-de-ferro
com o poder socialista checo, aqui e além ganho por Bohumil Hrabal, o que lhe tem
permitido publicar mais alguns romances e novelas. Ultimamente, e dada a
popularidade e o prestígio do autor entre a população, o poder político
encontra-se indeciso entre seduzi-lo para a sua órbita ou, pura e simplesmente,
tentar silenciá-lo através de interditos de publicação.
Contudo, não se pode afirmar que a obra de Bohumil Hrabal
pretenda um deliberado e claro confronto com o poder socialista. De facto, ela
coloca-se noutro registo, visto que reflecte um “olhar” que não é atravessado
por nenhum “corpus” ideológico, um “olhar” que não pretende acusar mas compreender.
E só por isso esta obra é incómoda para um poder que está convencido de que
profetiza o futuro da História.
É habitual associar (como faz Jorge Listopad no “Prefácio”
desta edição) a obra deste autor à de Jaroslav Hasek e de Franz Kafka e considerar
que o grupo surrealista de Praga (esta cidade foi um dos centros mais profícuos
deste movimento artístico) anda por perto. E referir também que ela articula, em
profundidade, a tradição romanesca novecentista com as experiências da modernidade
e que, por isso, é um dos exemplos mais acabados e perfeitos da ficção contemporânea
da Europa Central. Cita-se ainda Rabelais, pelo humor e peio gosto do excesso. Mas,
já agora, parece-me também importante salientar, tendo em consideração principalmente
o romance agora publicado, o contributo da literatura tradicional. Confesso que
pouco ou nada sei da literatura tradicional checa, mas, tendo em vista algumas
características universais deste tipo de literatura, creio que deve ser de realçar
a utilização permanente de “leitmotivs” (como aqueles com que iniciamos e
acabamos este texto), técnica que remete para a base oral daquela literatura, a
constância de certos ritmos frásicos que a tradução (segundo Jorge Listopad,
“magnífica”) consegue deixar transparecer, o aparecimento de algumas imagens onde
é bem manifesta a sua origem popular, etc.
Eu Que Servi o Rei de Inglaterra é um longo monólogo biográfico de um jovem que iniciou a
sua carreira profissional na indústria hoteleira como “groom” e que, passo a
passo, e após ter casado com uma sudeta nazi e herdado uma valiosíssima colecção
de selos apreendida aos judeus, torna-se milionário e dono de um dos hotéis
mais luxuosos de Praga, para, por fim, depois da ascensão do socialismo ao poder,
ver os seus bens confiscados e ser retido num alucinante campo de reeducação.
Todo o romance é um frenético repositório de peripécias resultantes das relações
que a personagem principal vai estabelecendo com os clientes, os colegas (em
particular, os mordomos) e os patrões.
Mas esta sinopse nada reflecte da extrema originalidade
desta obra. Porque ela é, antes de mais, estilística: o doseamento explosivo de
um humor soberbo com uma ternura, que sabe aceitar, mesmo nas figuras mais medíocres
e pobres, os seus defeitos e fraquezas, dá uma dimensão estética inconfundível
a este romance. É como se este estilo fosse a sedimentação do olhar de uma
criança truculenta e sábia que conseguisse, com a sua clareza, tornar translúcido
o mundo e o comportamento dos homens. Situações como a do vendedor-ambulante
que se sente realizado ao ladrilhar o chão do quarto com as notas que ganha, ou
àquela em que a personagem principal desiste “in extremis” de se enforcar
porque embate nos sapatos de um enforcado, ou ainda a cena de amor do
Presidente checo com a sua amante numa casa de bonecas, como tantas outras que
se poderiam referir, são não só inesquecíveis, como, na sua dimensão pícara,
exemplares na representação do carácter, por natureza, “impuro” (para louvor
dos Deuses, note-se) da condição humana.
Eu Que Servi o Rei de Inglaterra é um típico romance de aprendizagem e formação. Cada capítulo
e cada fase do “trabalho hoteleiro” da personagem principal são não só a caracterização,
num espaço fechado, da ambiência social e cultural porque a Checoslováquia
passou no período já referido, mas um estádio da aprendizagem de vida de um homem
que pouco mais tem de seu do que a memória de uma infância habituada a
desenrascar-se e a sobreviver (e estão lá todas as aprendizagens possíveis: do
sexo, do amor, do dinheiro, do prestígio, da amizade, das limitações de si próprio
e dos outros, etc.).
Mas, e principalmente, como revela o belíssimo capítulo
final, aprender a viver é fazer una intensa aprendizagem da morte. É a própria
personagem principal que o refere: “(...) cheguei
à conclusão que a essência da vida está na interrogação sobre a morte: como me
vou comportar quando chegar a minha hora? Na verdade, a morte, ou melhor, aquela
interrogação de si próprio, é uma conversa colocada no ângulo de visão do
infinito e da eternidade, a solução da morte é o começo do pensamento sobre a beleza,
porque saborear o absurdo deste nosso caminho que, afinal, sempre acabará por
um fim precoce, esse prazer e vivência do seu próprio aniquilamento é o que enche
o homem de amargura, por consequência, de beleza.” É assim que ela aprende
que “o inacreditável se torna realidade”
e que, por tão inacreditável, se torna insustentável sabê-lo sem o partilhar com
os outros. Daí a necessidade da escrita. Da escrita que deu origem a este Eu
Que Servi o Rei de Inglaterra.
Depois de ler este romance, temos que ter uma outra atenção
para quem nos serve no restaurante ou no hotel. Nunca se sabe se quem nos serve
também já não serviu o rei de Inglaterra e, por isso, tem a irónica sabedoria
de nos conhecer melhor do que nos próprios e estarmos, sob esse olhar, mais nus
e expostos do que sob o olhar da nossa mãe quando nascemos…
“Já chega? Por hoje, é
tudo.”
Publicado no Expresso em 1889.
Título: Eu Que Servi o Rei de Inglaterra
Autor: Bohumil Hrabal
Tradução: Ludmila Dismanová e Mário Gomes
Prefácio: Jorge Listopad
Editor: Ed. Afrontamento
Ano: 1989
199 págs., € 8,91
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