quinta-feira, 31 de março de 2016

BOHUMIL HRABAL 1

 
 
 
 

FELIZ APRENDIZAGEM DA MORTE
 
  Prestem muita atenção ao que vos vou contar agora.”
 
Uma das mais fascinantes áreas de reflexão e estudo da historiografia recente é a que se tem definido pelo epíteto de “análise das imagens da História”. No essencial, esta debruça-se sobre as formas como se relaciona o percurso individual e a história colectiva e, em particular, pelas “imagens” ou “tratamentos” que a evolução social sofre no discurso pessoal. Tem-se assim conseguido sobressair, de forma metódica, as modalidades como ao nível do privado tem sido “vivida” a História. Nesta área de investigação, os grandes romances contemporâneos têm-se revelado como excelentes objectos de estudo. E, dentro desta ordem de ideias, a leitura de Eu Que Servi o Rei de Inglaterra, o primeiro romance de Bohumil Hrabal traduzido para português, faz-nos crer que, pela sua imaginação esfuziante e barroca, pela dimensão simbólica e metafórica das situações narradas, se conseguiria estabelecer um inesgotável manancial de recorrências generalizáveis que permitiria compreender como no foro privado se viveram os vinte anos (1930-1950) mais importantes da historia contemporânea da Checoslováquia.
 
Bohumil Hrabal é geralmente considerado, com Milan Kundera e Josef Skvorecky, um dos maiores escritores checos vivos. Começou a publicar já tarde, com perto de cinquenta anos, no início da década de sessenta, obtendo logo com o seu primeiro livro, Pequenas Pérolas do Fundo, um enorme sucesso e tornando-se, desde essa altura, um dos escritores mais populares do seu país natal. Na década de setenta, apos a passagem no circuito internacional do filme Trens Rigorosamente Vigiados de Jiri Menzel, retirado de uma sua novela homónima, começou a ser traduzido, adquirindo um amplo reconhecimento, sobretudo nos países anglo-saxónicos.
 
Entretanto, começaram os seus problemas com o poder político e a censura. Após a “Primavera de Praga”, Bohumil Hrabal foi impedido de publicar e, durante oito anos, não apareceu nenhuma obra sua nas livrarias (este romance, Eu Que Servi o Rei de Inglaterra, só circulou na Checoslováquia como “samizadt”). A partir daí, iniciou-se um jogo do gato e do rato ou de braço-de-ferro com o poder socialista checo, aqui e além ganho por Bohumil Hrabal, o que lhe tem permitido publicar mais alguns romances e novelas. Ultimamente, e dada a popularidade e o prestígio do autor entre a população, o poder político encontra-se indeciso entre seduzi-lo para a sua órbita ou, pura e simplesmente, tentar silenciá-lo através de interditos de publicação.
 
Contudo, não se pode afirmar que a obra de Bohumil Hrabal pretenda um deliberado e claro confronto com o poder socialista. De facto, ela coloca-se noutro registo, visto que reflecte um “olhar” que não é atravessado por nenhum “corpus” ideológico, um “olhar” que não pretende acusar mas compreender. E só por isso esta obra é incómoda para um poder que está convencido de que profetiza o futuro da História.
 
É habitual associar (como faz Jorge Listopad no “Prefácio” desta edição) a obra deste autor à de Jaroslav Hasek e de Franz Kafka e considerar que o grupo surrealista de Praga (esta cidade foi um dos centros mais profícuos deste movimento artístico) anda por perto. E referir também que ela articula, em profundidade, a tradição romanesca novecentista com as experiências da modernidade e que, por isso, é um dos exemplos mais acabados e perfeitos da ficção contemporânea da Europa Central. Cita-se ainda Rabelais, pelo humor e peio gosto do excesso. Mas, já agora, parece-me também importante salientar, tendo em consideração principalmente o romance agora publicado, o contributo da literatura tradicional. Confesso que pouco ou nada sei da literatura tradicional checa, mas, tendo em vista algumas características universais deste tipo de literatura, creio que deve ser de realçar a utilização permanente de “leitmotivs” (como aqueles com que iniciamos e acabamos este texto), técnica que remete para a base oral daquela literatura, a constância de certos ritmos frásicos que a tradução (segundo Jorge Listopad, “magnífica”) consegue deixar transparecer, o aparecimento de algumas imagens onde é bem manifesta a sua origem popular, etc.
 
Eu Que Servi o Rei de Inglaterra é um longo monólogo biográfico de um jovem que iniciou a sua carreira profissional na indústria hoteleira como “groom” e que, passo a passo, e após ter casado com uma sudeta nazi e herdado uma valiosíssima colecção de selos apreendida aos judeus, torna-se milionário e dono de um dos hotéis mais luxuosos de Praga, para, por fim, depois da ascensão do socialismo ao poder, ver os seus bens confiscados e ser retido num alucinante campo de reeducação. Todo o romance é um frenético repositório de peripécias resultantes das relações que a personagem principal vai estabelecendo com os clientes, os colegas (em particular, os mordomos) e os patrões.
 
Mas esta sinopse nada reflecte da extrema originalidade desta obra. Porque ela é, antes de mais, estilística: o doseamento explosivo de um humor soberbo com uma ternura, que sabe aceitar, mesmo nas figuras mais medíocres e pobres, os seus defeitos e fraquezas, dá uma dimensão estética inconfundível a este romance. É como se este estilo fosse a sedimentação do olhar de uma criança truculenta e sábia que conseguisse, com a sua clareza, tornar translúcido o mundo e o comportamento dos homens. Situações como a do vendedor-ambulante que se sente realizado ao ladrilhar o chão do quarto com as notas que ganha, ou àquela em que a personagem principal desiste “in extremis” de se enforcar porque embate nos sapatos de um enforcado, ou ainda a cena de amor do Presidente checo com a sua amante numa casa de bonecas, como tantas outras que se poderiam referir, são não só inesquecíveis, como, na sua dimensão pícara, exemplares na representação do carácter, por natureza, “impuro” (para louvor dos Deuses, note-se) da condição humana.
 
Eu Que Servi o Rei de Inglaterra é um típico romance de aprendizagem e formação. Cada capítulo e cada fase do “trabalho hoteleiro” da personagem principal são não só a caracterização, num espaço fechado, da ambiência social e cultural porque a Checoslováquia passou no período já referido, mas um estádio da aprendizagem de vida de um homem que pouco mais tem de seu do que a memória de uma infância habituada a desenrascar-se e a sobreviver (e estão lá todas as aprendizagens possíveis: do sexo, do amor, do dinheiro, do prestígio, da amizade, das limitações de si próprio e dos outros, etc.).
 
Mas, e principalmente, como revela o belíssimo capítulo final, aprender a viver é fazer una intensa aprendizagem da morte. É a própria personagem principal que o refere: “(...) cheguei à conclusão que a essência da vida está na interrogação sobre a morte: como me vou comportar quando chegar a minha hora? Na verdade, a morte, ou melhor, aquela interrogação de si próprio, é uma conversa colocada no ângulo de visão do infinito e da eternidade, a solução da morte é o começo do pensamento sobre a beleza, porque saborear o absurdo deste nosso caminho que, afinal, sempre acabará por um fim precoce, esse prazer e vivência do seu próprio aniquilamento é o que enche o homem de amargura, por consequência, de beleza.” É assim que ela aprende que “o inacreditável se torna realidade” e que, por tão inacreditável, se torna insustentável sabê-lo sem o partilhar com os outros. Daí a necessidade da escrita. Da escrita que deu origem a este Eu Que Servi o Rei de Inglaterra.
 
Depois de ler este romance, temos que ter uma outra atenção para quem nos serve no restaurante ou no hotel. Nunca se sabe se quem nos serve também já não serviu o rei de Inglaterra e, por isso, tem a irónica sabedoria de nos conhecer melhor do que nos próprios e estarmos, sob esse olhar, mais nus e expostos do que sob o olhar da nossa mãe quando nascemos…
 
“Já chega? Por hoje, é tudo.
 
Publicado no Expresso em 1889.
 
  
Título: Eu Que Servi o Rei de Inglaterra
Autor: Bohumil Hrabal
Tradução: Ludmila Dismanová e Mário Gomes
Prefácio: Jorge Listopad
Editor: Ed. Afrontamento
Ano: 1989
199 págs., € 8,91
 
 


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