A VOLÁTIL ESPUMA DOS DIAS
É interessante constatar como a literatura
afro-americana foi reflectindo a evolução da situação social, económica e
política da comunidade que a criou. De uma forma necessariamente linear, e
deixando de lado alguns exemplos com um valor “arqueológico” (quer isto dizer,
com uma importância mais documental do que literária), pode afirmar-se que a
narrativa afro-americana começou a ganhar visibilidade, mesmo ainda revelando
certas fragilidades literárias, na década de cinquenta com a obra, muito
comprometida com as concepções marxistas, de Richard Wright. Nas duas décadas
seguintes, com as obras de James Baldwin, Ralph Waldo Ellison, Langston Hughes
e LeRoi Jones, a tónica maior desta literatura passou a ser a denúncia
inflamada das situações de segregação racial, com textos de variável cariz
panfletário, mas onde a problemática da negritude era sempre crucial. Na década
de oitenta, com as obras de Toni Morrison, Ernest J. Gaines, Alice Walker e
Charles Johnson, a tónica deslocou-se para a análise do percurso doloroso da
comunidade afro-americana, entre a saga histórica e a reflexão mais ou menos
intimista dos traumas desse percurso, em particular das fases da escravatura e
da posterior integração urbana.
Observando de uma forma retrospectiva, parece
agora que esta progressão, na aparência inevitável, assume as feições de um
processo de crescimento, tendo só, na década de noventa, atingido um estádio em
que esta literatura não está, pelo menos de uma forma espartilhante,
condicionada pelos problemas da segregação racial e da afirmação social de uma
comunidade. Ou, por outras palavras, mesmo sabendo que são ainda inúmeras as
situações que tornam crispada a coexistência das comunidades branca e negra nos
Estados Unidos, parece que os autores afro-americanos se dispõem a debruçar-se
de uma forma mais acentuada sobre os conflitos internos da sua própria
comunidade, provavelmente estimulados por um público que procura compreender
por que meandros afectivos e comportamentais se vão sedimentando o reforço da
sua cidadania e a participação crescente da sua comunidade na vida social,
económica e política americana.
Um exemplo esclarecedor desta opção mais recente
da narrativa afro-americana é a obra de Terry McMillan. Esta autora, nascida,
em 1951, numa família humilde e destroçada pelo álcool, teve uma infância
difícil e foi apenas através de um emprego fortuito na adolescência (arrumadora
de livros nas estantes de uma biblioteca) que descobriu a literatura e que a
sua comunidade escrevia livros. Tirou um curso de jornalismo, alcoolizou-se e
viciou-se em cocaína (como tantos outros membros da sua comunidade), desintoxicou-se,
tirou um novo curso de “escrita criativa” e, no final da década de oitenta,
conseguiu publicar o seu primeiro romance (Mama), recebido com reticências pela
crítica, mas acolhido de forma muito favorável pela população afro-americana
que se sentiu reflectida nas suas personagens. Porém, com o seu terceiro
romance, Waiting for Exhale, Terry McMillan alcança a unanimidade, tanto
da crítica como do público, e o sucesso foi tão estrondoso (quatro milhões de
exemplares vendidos) que a autora passou a ser uma figura popular em todo os
Estados Unidos. Saliente-se que a crítica reconheceu principalmente a boa
caracterização das personagens, um eficaz sentido da dramaticidade narrativa, a
argúcia em destacar certos pormenores, tanto comportamentais como sociais,
dando vivacidade e realismo às situações, e a forma como conseguiu cadenciar os
diálogos num ritmo entre o humorado e o enternecido. No fundo, Terry McMillan,
explorando a sua própria experiência pessoal, é uma genuína seguidora da
tradição realista americana, aqui utilizada de um modo inovador ao serviço das
problemáticas específicas das mulheres afro-americanas, estando neste facto, decerto,
uma das principais razões da enorme sedução que a sua obra exerce dentro da sua
própria comunidade.
O seu quinto e último romance foi agora editado no
nosso país com o título Tarde e a Más Horas. O romance
desenrola-se em torno de uma sexagenária afro-americana, sofrendo gravemente de
asma, e estrutura-se de uma forma muito simples: cada capítulo, “girando” entre
a personagem principal e cada um dos seus familiares mais chegados (o marido,
de quem está separada, três filhas e um filho, todos eles, por sua vez, já com
família constituída), dá “voz” às suas adversidades afectivas, profissionais,
de reconhecimento social, mas, em particular, às suas inquietações com a imagem
que conseguem transmitir entre si e, em particular, àquela mulher que continua
a funcionar como “trave mestra” de uma família cada vez mais fragmentada e com
notórios problemas de identificação (pode dizer-se, neste sentido, que Tarde
e a Más Horas confirma o império da raíz matronal na sociedade
americana). Com esta simples estrutura, Terry McMillan consegue desdobrar um
humorado e diversificado fresco que exemplifica bem, antes do mais, o complexo
estatuto actual da população negra dentro do Estados Unidos e, por outro, como
o seu processo de afirmação dentro do modelo socio-económico liberal motivou a
presente forte instabilidade das famílias afro-americanas.
De facto, em Tarde e a Más Horas encontramos um
quadro social que vai desde a personagem que, através de uma “nova” empresa e
dos “media”, atinge sucesso profissional e financeiro ao “loser”, perdido entre
álcool e prisões por pequenos delitos, ou à baixa funcionária de um serviço
público que procura, à beira do desespero, “salvar” a sua numerosa família da
ruína e da desagregação. Desde rupturas a reconstituições precárias em novas
famílias, da solidão “workaholic” a abusos sexuais sobre menores, da
dependência a drogas ou ao álcool a desintoxicações, da violência doméstica a
frágeis momentos de comunicabilidade e compreensão, de tudo um pouco se
encontra neste romance.
Porém, e este é sem dúvida o principal mérito desta
obra, há um olhar afectivo sobre as fragilidades e imperfeições de todas estas
personagens que envolve o leitor e estimula-o a seguir os seus esforços em
resistir às tentaculares inseguranças e em procurar ver claro no novelo dos
ressentimentos e das pequenas vitórias. No fundo, estas personagens aparecem ao
olhar do leitor como seres que se desgastam numa ansiedade que, a cada curva do
destino, perde a razão de ser como se mais não fosse do que a volátil “espuma
dos dias”. E esta imagem (roubada a Boris Vian) transmite-nos bem um dos
efeitos primordiais do estilo de Terry McMillan: uma leveza que transfigura as
tragédias pessoais numa ténue bolha facilmente rebentável na superfície
ondulada do tempo.
É evidente que o projecto literário de Terry
McMillan corre um risco a cada virar de página: um sentimentalismo que pode
destroçá-lo, tornando os seus romances insuportáveis. Não é o caso de Tarde
e a Más Horas que, durante mais de quatrocentas páginas, resiste com
humor e sabedoria a este percalço. Por isso mesmo, e esta é a grande falha
desta obra, a situação narrativa com que arremata, de um modo artificioso e
teatral, quase que faz soçobrar um romance que é, quase sempre, deliciosamente
“humano” e de uma inteligência reconfortante.
Publicado no Público
em 2002.
Título: Tarde e a Más Horas
Autor: Terry McMillan
Tradutor: Cláudia-Müller Porto
Editor: Gradiva
Ano: 2002
429 págs., esg.
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