terça-feira, 29 de março de 2016

TERRY MCMILLAN


 
A VOLÁTIL ESPUMA DOS DIAS
 
 
É interessante constatar como a literatura afro-americana foi reflectindo a evolução da situação social, económica e política da comunidade que a criou. De uma forma necessariamente linear, e deixando de lado alguns exemplos com um valor “arqueológico” (quer isto dizer, com uma importância mais documental do que literária), pode afirmar-se que a narrativa afro-americana começou a ganhar visibilidade, mesmo ainda revelando certas fragilidades literárias, na década de cinquenta com a obra, muito comprometida com as concepções marxistas, de Richard Wright. Nas duas décadas seguintes, com as obras de James Baldwin, Ralph Waldo Ellison, Langston Hughes e LeRoi Jones, a tónica maior desta literatura passou a ser a denúncia inflamada das situações de segregação racial, com textos de variável cariz panfletário, mas onde a problemática da negritude era sempre crucial. Na década de oitenta, com as obras de Toni Morrison, Ernest J. Gaines, Alice Walker e Charles Johnson, a tónica deslocou-se para a análise do percurso doloroso da comunidade afro-americana, entre a saga histórica e a reflexão mais ou menos intimista dos traumas desse percurso, em particular das fases da escravatura e da posterior integração urbana.
 
Observando de uma forma retrospectiva, parece agora que esta progressão, na aparência inevitável, assume as feições de um processo de crescimento, tendo só, na década de noventa, atingido um estádio em que esta literatura não está, pelo menos de uma forma espartilhante, condicionada pelos problemas da segregação racial e da afirmação social de uma comunidade. Ou, por outras palavras, mesmo sabendo que são ainda inúmeras as situações que tornam crispada a coexistência das comunidades branca e negra nos Estados Unidos, parece que os autores afro-americanos se dispõem a debruçar-se de uma forma mais acentuada sobre os conflitos internos da sua própria comunidade, provavelmente estimulados por um público que procura compreender por que meandros afectivos e comportamentais se vão sedimentando o reforço da sua cidadania e a participação crescente da sua comunidade na vida social, económica e política americana.
 
Um exemplo esclarecedor desta opção mais recente da narrativa afro-americana é a obra de Terry McMillan. Esta autora, nascida, em 1951, numa família humilde e destroçada pelo álcool, teve uma infância difícil e foi apenas através de um emprego fortuito na adolescência (arrumadora de livros nas estantes de uma biblioteca) que descobriu a literatura e que a sua comunidade escrevia livros. Tirou um curso de jornalismo, alcoolizou-se e viciou-se em cocaína (como tantos outros membros da sua comunidade), desintoxicou-se, tirou um novo curso de “escrita criativa” e, no final da década de oitenta, conseguiu publicar o seu primeiro romance (Mama), recebido com reticências pela crítica, mas acolhido de forma muito favorável pela população afro-americana que se sentiu reflectida nas suas personagens. Porém, com o seu terceiro romance, Waiting for Exhale, Terry McMillan alcança a unanimidade, tanto da crítica como do público, e o sucesso foi tão estrondoso (quatro milhões de exemplares vendidos) que a autora passou a ser uma figura popular em todo os Estados Unidos. Saliente-se que a crítica reconheceu principalmente a boa caracterização das personagens, um eficaz sentido da dramaticidade narrativa, a argúcia em destacar certos pormenores, tanto comportamentais como sociais, dando vivacidade e realismo às situações, e a forma como conseguiu cadenciar os diálogos num ritmo entre o humorado e o enternecido. No fundo, Terry McMillan, explorando a sua própria experiência pessoal, é uma genuína seguidora da tradição realista americana, aqui utilizada de um modo inovador ao serviço das problemáticas específicas das mulheres afro-americanas, estando neste facto, decerto, uma das principais razões da enorme sedução que a sua obra exerce dentro da sua própria comunidade.
 
O seu quinto e último romance foi agora editado no nosso país com o título Tarde e a Más Horas. O romance desenrola-se em torno de uma sexagenária afro-americana, sofrendo gravemente de asma, e estrutura-se de uma forma muito simples: cada capítulo, “girando” entre a personagem principal e cada um dos seus familiares mais chegados (o marido, de quem está separada, três filhas e um filho, todos eles, por sua vez, já com família constituída), dá “voz” às suas adversidades afectivas, profissionais, de reconhecimento social, mas, em particular, às suas inquietações com a imagem que conseguem transmitir entre si e, em particular, àquela mulher que continua a funcionar como “trave mestra” de uma família cada vez mais fragmentada e com notórios problemas de identificação (pode dizer-se, neste sentido, que Tarde e a Más Horas confirma o império da raíz matronal na sociedade americana). Com esta simples estrutura, Terry McMillan consegue desdobrar um humorado e diversificado fresco que exemplifica bem, antes do mais, o complexo estatuto actual da população negra dentro do Estados Unidos e, por outro, como o seu processo de afirmação dentro do modelo socio-económico liberal motivou a presente forte instabilidade das famílias afro-americanas.
 
De facto, em Tarde e a Más Horas encontramos um quadro social que vai desde a personagem que, através de uma “nova” empresa e dos “media”, atinge sucesso profissional e financeiro ao “loser”, perdido entre álcool e prisões por pequenos delitos, ou à baixa funcionária de um serviço público que procura, à beira do desespero, “salvar” a sua numerosa família da ruína e da desagregação. Desde rupturas a reconstituições precárias em novas famílias, da solidão “workaholic” a abusos sexuais sobre menores, da dependência a drogas ou ao álcool a desintoxicações, da violência doméstica a frágeis momentos de comunicabilidade e compreensão, de tudo um pouco se encontra neste romance.
 
Porém, e este é sem dúvida o principal mérito desta obra, há um olhar afectivo sobre as fragilidades e imperfeições de todas estas personagens que envolve o leitor e estimula-o a seguir os seus esforços em resistir às tentaculares inseguranças e em procurar ver claro no novelo dos ressentimentos e das pequenas vitórias. No fundo, estas personagens aparecem ao olhar do leitor como seres que se desgastam numa ansiedade que, a cada curva do destino, perde a razão de ser como se mais não fosse do que a volátil “espuma dos dias”. E esta imagem (roubada a Boris Vian) transmite-nos bem um dos efeitos primordiais do estilo de Terry McMillan: uma leveza que transfigura as tragédias pessoais numa ténue bolha facilmente rebentável na superfície ondulada do tempo.
 
É evidente que o projecto literário de Terry McMillan corre um risco a cada virar de página: um sentimentalismo que pode destroçá-lo, tornando os seus romances insuportáveis. Não é o caso de Tarde e a Más Horas que, durante mais de quatrocentas páginas, resiste com humor e sabedoria a este percalço. Por isso mesmo, e esta é a grande falha desta obra, a situação narrativa com que arremata, de um modo artificioso e teatral, quase que faz soçobrar um romance que é, quase sempre, deliciosamente “humano” e de uma inteligência reconfortante.
 
Publicado no Público em 2002.
 
 
Título: Tarde e a Más Horas
Autor: Terry McMillan
Tradutor: Cláudia-Müller Porto
Editor: Gradiva
Ano: 2002
429 págs., esg.
 
 



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