quinta-feira, 31 de março de 2016

PRAMOEDYA ANANTA TOER

 
 
 
AS EXIGÊNCIAS DA TERRA
 
Uma das fases decisivas na afirmação literária dos povos do Terceiro Mundo, em particular nos domínios da narrativa escrita, está associada ao processo (por vezes longo) da sua luta activa pela independência política e de refutação dos sistemas de dominação colonial. Em muitos casos, foi este o período “fundador” da sua narrativa escrita, o que, mais uma vez, parece vir confirmar as velhas teorias luckasianas de associar o aparecimento desta expressão artística ao processo histórico de conquista do poder por parte das burguesias nacionais. É o caso da Indonésia, onde, com algumas antecedentes excepções, a narrativa literária escrita, como movimento de expressão artística, apareceu no período de repúdio do sistema colonial; e, nesse aspecto, a obra de Pramoedya Ananta Toer, como componente de proa desse movimento, é decisiva e, em muitos aspectos, exemplar.
 
Simplesmente, as circunstâncias históricas em que aparecem estas obras condicionam, muitas vezes, a sua temática e mesmo a concepção dos modelos narrativos. As exigências da luta política e a denúncia de estruturas socio-económicas acentuadamente injustas (para não dizer criminosas) das populações colonizadas levam estes autores à produção de obras com um grau de intervencionismo mais imediato ou, pelo menos, a inscrever-lhes, com preponderância, o objectivo de contribuirem - aproveitando os efeitos dramáticos do texto narrativo - para reforçar a formação da consciência cívica dos seus leitores. Esta opção, em si mesma positiva e louvável, pode, no entanto, originar uma maior “temporalização” das obras; isto é, agrilhoá-las a um circunstancialismo temporal que, de uma forma inevitável, condiciona a sua leitura noutro espaço e noutro tempo.
 
Creio que é este o caso do último romance editado no nosso país de Pramoedya Ananta Toer, intitulado Uma Estranha Terra. Este autor indonésio que, em consequência das suas posições políticas e da sua luta pela defesa dos direitos humanos, passou uma boa parte da vida preso ou em retenção domiciliária - chegando ao ponto de lhe retirarem os meios para escrever (como é referido na edição, Uma Estranha Terra foi, antes de ser redigido, “fixado” oralmente no Campo Prisional de Buru) – tornou-se um símbolo vivo, por um lado, da tentativa de criação de um imaginário literário nacional, por outro, do escritor que, por exigências cívicas inadiáveis, se viu obrigado a condicionar a criação desse imaginário a objectivos de intervenção política.
 
O facto de Uma Estranha Terra ser um romance histórico (a sua trama passa-se nos finais do séc. XIX) deve-se, com alguma probabilidade, a necessidades de fugir a uma contemporaneidade que, sem sombra de dúvidas, condicionaria a circulação da obra. É certo que a história deste jovem nativo que, ainda no liceu, revela aptidões intelectuais e literárias precoces a par de um enorme fascínio pela cultura europeia, é tingida com colorações de época. Mas o interesse fundamental da obra é demonstrar como essa cultura ocidental, mesmo embebida de humanismo, era um alicerce central dos impérios coloniais, visto que fundamentou um quadro legal muitíssimo discriminatório entre cidadãos de origem europeia, mestiços e nativos, ao ponto de, através de brutais arbitrariedades, coagir o seu destino, como – é o caso referido na obra - o de não reconhecer os direitos maternos a nativas que tivessem filhos de europeus ou o de considerar nulos os casamentos interraciais. Ora, este tema, pertinente até ao fim do “apartheid” e dos impérios coloniais, tem hoje, felizmente, uma dimensão em grande parte “histórica”: à excepção de certos movimentos grupusculares que perderam o sentido da História e que apenas procuram aproveitar-se das tensões socio-económicas para tentarem fazer renascer posições sociais segregativas, ninguém, com significativas responsabilidades, seja qual for a sua fundamentação política, assume hoje, em termos históricos, a defesa da existência de Estados que incorporem, no seu quadro legal, um tratamento discriminatório, com base na distinção étnica, dos seus cidadãos.
 
Por isso mesmo, as componentes mais interessantes deste romance estão hoje na sua galeria de personagens e no tratamento literário de alguma sabedoria tradicional indonésia. Em particular, destaca-se a figura feminina de Nyai Ontosoroh (a amante nativa, “comprada” aos pais, de um rico proprietário holandês) que, com uma invulgar força de carácter, e contra todos os interesses colonialistas, consegue não só gerir e fazer prosperar os negócios da família, mas também adquirir alguma educação europeia e transmitir essa formação aos seus filhos. Ou ainda a do pintor francês, alistado no exército colonial holandês, que, depois de ter participado em violentas operações de repressão das rebeliões dos indígenas de Aceh e ter ficado ferido, se apaixona por uma indígena e, atormentado pela desmesura criminosa dos seus actos passados, procura redimi-los através do afecto à filha mestiça. Ou, por fim, a assombrosa história de uma prostituta japonesa que, depois de ter percorrido os bordéis de diversos portos do Extremo Oriente, acaba vendida, já corroída de sífilis, por meia dúzia de tostões, a um proxeneta chinês, proprietário de uma “casa de prazer” em Java.
 
A personagem principal, o jovem estudante nativo em redor do qual vai aparecendo esta fascinante galeria de personagens de “Uma Estranha Terra”, é, em certa medida, um “alter-ego” do autor, principalmente no doloroso dilema que vive entre o fascínio da cultura europeia, a consciência crescente do carácter desumano do regime colonial e a necessidade de contribuir para revitalizar a tradição cultural indonésia. Hoje, em que se pode considerar que boa parte da obra de Pramoedya Ananta Toer já está concluída, pode afirmar-se que o seu prestígio literário – e sem menosprezo pela invulgar coragem cívica que revelou toda a sua vida – está, no fundamental, em dois aspectos da sua obra: a simbiose que conseguiu realizar entre duas tradições culturais que, em termos históricos, se opuseram e, sobretudo, na sua capacidade de transfigurar em personagens as inquietações e o sofrimento profundos de uma sociedade tão heteróclita e culturalmente rica como é a indonésia.
 
Publicado no Público em 2003.
 
 
Título: Esta Estranha Terra
Autor: Pramoedya Ananta Toer
Tradução (da versão inglesa): Daniela Garcia
Editor: Quetzal Editores
Ano: 2003
415 págs., esg.
 
 



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