O JOGO DE
MÁSCARAS
Um dos debates
que tem atravessado a história da literatura americana contemporânea, dando
origem a uma bibliografia extensíssima e que há-de continuar a desenvolver-se,
é a relativa à definição de escolas literárias, tentando associar uma área
geográfica ou um grupo sociocultural e/ou étnico a determinadas temáticas e a
um certo estilo narrativo. Nos casos que agora nos interessa, foi na década de
sessenta que, com mais rigor, se tipificou duas escolas ou grupos literários: a
escola narrativa novaiorquina e a ficção de autores de origem judaica. No
primeiro caso, procurava-se agregar a esta escola um conjunto de obras pautado
por uma temática com dominância urbana, uma inegável qualidade formal e
estilística e uma certa “modernidade” ética na análise comportamental das
personagens. No segundo, integrava-se obras que se desenvolviam em redor da
“problemática judaica” e onde eram visíveis os sinais da pesada tradição
cultural e religiosa do Sião.
Decerto, à
luz da actual evolução da literatura norte-americana, estas definições começam
a ter muito pouco sentido. Mas não há dúvida que, para o melhor e para o pior,
serviram para etiquetar e “arrumar” autores e, desse modo, dar-lhes um lugar no
“puzzle” desta vastíssima literatura. Foi o caso de um autor como Philip Roth,
que agora começa já a ser razoavelmente conhecido entre os leitores
portugueses.
Philip Roth
começou a publicar nos finais dos anos cinquenta e logo com a sua primeira obra,
uma colectânea intitulada Goodbye Columbus and Five Short Stories,
ganhou, pela primeira vez, o National Book Award (a segunda, foi com a obra,
agora publicada em português, Teatro de Sabbath). Porém, foi com a
sua terceira obra, Portnoy’s Complaint, que obteve notoriedade entre o grande
público, em particular por retratar, com um humor corrosivo, um judeu da classe
média nova-iorquina e as suas dificuldades de integração na sociedade
americana. Além disso, a forma um pouco crua como retratava a sexualidade e as
relações amorosas, “tingiu” esta obra de algum escândalo e provocou violentíssimas
críticas por parte da comunidade judaica que via em Philip Roth um escritor que
desrespeitava os costumes judaicos e que assumia uma atitude anti-semita. Depois,
foi publicando com uma inquebrável regularidade a sua obra narrativa, onde se
destaca o conjunto de romances em redor da personagem Nathan Zuckerman (My
Life As a Man, The Ghost Writer, Zuckerman
Unbound, The Amatomy Lesson e The Counterlife) e a série de obras
(The
Facts, Deception, Patrimony e Operation Shylock),
pretensamente autobiográficas, em redor de uma personagem chamada Philip
Roth... Nos últimos anos, veio a consagração definitiva: Pastoral Americana, a sua
antepenúltima obra, ganhou o Prémio Pulitzer, e a penúltima, I
Married a Comunist, foi - as voltas que a vida dá - finalista do
National Jewish Book Award.
É
inquestionável que existe uma presença forte da tradição cultural judaica
(assim como de figuras bem tipificáveis na população de Nova Iorque) na obra de
Philip Roth. E até é possível que algumas formas de perspectivar algumas das
constantes obsessões da sociedade contemporânea tenham uma fundamentação
matricial naquela cultura. Porém, torna-se cada vez mais nítido que esta
tradição cultural judaica permanece nesta obra como uma “pose”, já que os seus
objectivos orientam-se, de uma forma mais vasta, para uma espécie de exegese
“cartográfica” das complexidades emocionais do homem contemporâneo nas suas
dificuldades de sociabilidade e comunicação.
Teatro de
Sabbath centra-se em Mickey Sabbath (repare-se como este nome, por
si só, define um “território” de confluência de perspectivas culturais e
civilizacionais), um ex-fantocheiro (e, como a própria personagem comenta, esta
actividade artística, em comparação com a de marionetista - que facilmente
poderia associar-se a uma visão metafísica da condição humana -, tem outro
valor, uma vez que reforça o sentido de “jogo de máscaras” que a vida vai
assumindo) a entrar na terceira idade, sofrendo de artrose nas mãos, e que, em
consequência de algumas mortes próximas (a amante, um dos seus melhores
amigos), se sente impelido a reflectir sobre o seu percurso falhado, a
abandonar o seu medíocre quotidiano e, numa viagem de iniciático retorno a Nova
Iorque, descer aos infernos da sua memória, confrontando-se com os “diabos” que
a povoam (quer se goste ou não, a capa da edição portuguesa é bem ajustada à
ambiência do romance).
Mickey
Sabbath sempre foi um homem muito fascinado pelas mulheres e pelo sexo. É claro
que, o que aqui o motiva, é o poder da sedução, de se transfigurar pela
capacidade encantatória de atrair o outro para dentro do manto do seu desejo;
mas é também o anseio de desvendar a sua peculiar vibração, de lhe descobrir na
luz do olhar, o lodo profundo, barrento de vida, onde esbracejam as fantasias e
as obsessões eróticas, que, como imagens, se “roubou” de um não-lugar (o
momento civilizacional? a espécie?), se transporta na carne e com que se
reveste o objecto amado. O sentido do sexo está na cumplicidade que o orgasmo
produz, levando o outro, na demência da sua procura, a despojar-se dos códigos
que a si próprio se impõe para obter a aceitação social e a esquecer as
amputações emocionais que, na maior parte das vezes, a família lhe provocou. É
este lado obscuro que encanta e hipnotiza Mickey Sabbath, levando-o a saltitar
de amante em amante até tentar descobrir aquela que, pela capacidade de atingir
os esplendores da plena afirmação erótica, dá a ilusão de conter a diversidade
amorosa de todas as outras (e que ele está convencido de ter descoberto em
Drenka, a sua amante croata). Simplesmente, esta pulsão legítima de
“conhecimento libidinal” não só é utópica (e metafísica) como entra em conflito
com a fidelidade que o afecto exige.
Porque
todas as personagens de Philip Roth - e, em particular neste romance, as
personagens femininas - são uma espécie de Jobs emocionais, dilaceradas pelas
tensões entre o desejo e a transferência para o amante do reconhecimento que
lhes faltou ao nível paterno/materno. Porém, o próprio Mickey Sabbath se sente
amortalhado na sua “história” de mortes e fiascos afectivos (o desaparecimento
do irmão na II Guerra Mundial, a apatia da mãe após a morte deste) e, por isso
mesmo, incapaz de se “abrir” à sua necessidade de amor: ele e as suas mulheres
transformam-se em “casulos” da dor que transportam na memória, crispando-se em
incomunicabilidades destrutivas e que mais os aproxima da velhice e da morte
que a sua própria apetência de afecto procura “adiar”.
Mickey
Sabbath sente-se velho. Quer isto dizer, que não só se sente incapaz em termos físicos
de continuar a sua vida no trilho em que sempre a encaminhou (incapaz de
seduzir, de trabalhar, de acreditar) como se sente “absorvido” pela própria
memória: tudo o leva a fechar-se ao exterior e o único sentido que encontra na
existência é o de ser o depositário testemunhante dessa memória. Mas para quê? Percebe
que a sua vida, como todas as outras, não passou de um palco onde, como único
actor, apareceu, colocando as inúmeras máscaras das personagens que
representava, até que, enredado no drama das suas apetências, pulsões e
necessidades, nada mais ficou sob elas: quando essas máscaras se começaram a
esgarçar de uso, descobriu apenas, dentro de si, o frio esquálido da morte.
Publicado no Público em 2000.
Título: Teatro de Sabbath
Autor: Philip Roth
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2000
483 págs.,
€ 19,90
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