HISTÓRIAS SENTIMENTAIS
Quem tem acompanhado o percurso no último século da
literatura sueca sabe que a sua narrativa, durante os anos cinquenta a setenta,
foi dominada por preocupações sociais e políticas. Essa corrente, habitualmente
conhecida, talvez com um pouco de ironia, com o nome de “literatura
proletária”, teve tal ascendente neste país (pode dizer-se que não houve
literatura de nenhum outro país do Ocidente onde estas preocupações fossem tão
hegemónicas) que levou, os mais pessimistas, a recear que a literatura, na sua
concepção mais abrangente, tivesse definhado de todo na Suécia. É evidente que
esta obsessão literária com as questões sociais e políticas tem razões
culturais e geoestratégicas; porém, deixando de lado a questão falaciosa de
compreender a motivação desta atitude ideológica e estética, é inquestionável
que corresponde à generosidade e abertura que o povo sueco tem revelado, na
segunda metade do séc. XX, em favor dos que, por razões políticas, têm sido
oprimidos e perseguidos em todo o mundo. De qualquer modo, foi só a partir dos
finais da década de setenta que apareceu uma geração literária com outros
interesses temáticos, retomando a tónica de uma maior reflexão sobre as
especificidades do discurso literário e mais empenhada na compreensão das
complexidades dos universos sensíveis do homem contemporâneo.
Marianne Fredriksson, a autora de Duas
Mulheres, Um Destino (versão portuguesa, francamente banal, de um
título, cuja tradução literal teria, na nossa opinião, mais intensidade poética),
pertence - a autora começou já tarde, com perto de sessenta anos, a sua
actividade literária - à transição entre as duas gerações referidas. Depois de
uma vida dedicada ao jornalismo, Marianne Fredriksson conseguiu obter na última
década um inegável sucesso popular e crítico com a sua produção romanesca. Hoje,
com mais de doze títulos publicados, a autora não só é considerada uma das
figuras de maior relevo editorial e literário no seu país, como a que tem maior
projecção internacional, estando já traduzida e publicada em cerca de 150
países.
Este enquadramento talvez ajude a compreender a
obra desta autora, em particular o seu interesse pelo percurso histórico das
mulheres na sua luta pela emancipação e pela afirmação cultural, social e
política: saliento, por exemplo, o seu romance mais conhecido (e também já
editado pela Presença), As Filhas de Hannah. O presente
romance, Duas Mulheres, Um Destino, apresenta-se, de certo modo, como
uma pequena variante à problemática do anterior. Aqui, as personagens centrais
são duas mulheres, já na terceira idade, vivendo sozinhas na Suécia, mas que
têm uma origem geográfica e um universo cultural bem distintos: uma, como a
autora, é sueca, vivendo da sua produção literária; a outra, chilena, exilada,
depois de ter fugido às perseguições políticas perpetradas no seu país após o
golpe militar que derrubou Salvador Allende.
Este esquema narrativo, simples e já muito visto,
permite a autora demonstrar duas coisas na aparência contraditórias: por um
lado, revelar que existe uma certa “malaise de vivre”, resultante do actual
estatuto da condição feminina, seja quais forem as circunstâncias históricas,
económicas e culturais que condicionam as experiências de vida e as atitudes
comportamentais; por outro, que a História, de forma inevitável, irrompe na
esfera do privado, condicionando afectos, originando obsessões e fobias,
arrastando para profundas mágoas ou propiciando comoventes alegrias. No fundo,
é como se os fluxos da história social e da história pessoal fossem as duas
faces do mesmo manto de água, correndo para a inevitável foz da morte e
tornando qualquer existência ao mesmo tempo única e irrelevante.
Aparentemente, portanto, parece que a obra de
Marianne Fredriksson se enquadra na chamada literatura feminina (ou, aceitando
um jargão demasiado conotado, femininista). Porém, creio que não é neste facto
que assenta o sucesso editorial desta autora. Os motivos deste sucesso
prendem-se, a nosso ver, com a tentativa da autora em definir as suas
personagens, numa perspectiva estritamente emotiva e sentimental, apegada à sua
experiência privada e como, nesta esfera, se “defendem” dos condicionalismos,
mais ou menos violentos, da História, soberanizando-se em termos emocionais. No
fundo, a escritora parte da convicção – bastante generalizada na sua geração –
de que só existe progresso social resultante do conjunto das “libertações
individuais” e do afrouxamento das diversas dependências pessoais, num quadro
ideológico que é uma resultante hibrida de progressismo social e político e de
ética cristã.
É inquestionável que Marianne Fredriksson consegue
transmitir alguma convicção romanesca nesta sua tentativa de “olhar” a
História, sem nunca abandonar o nível das histórias pessoais. Simplesmente,
nesta tónica de definir as suas personagens pelos seus contornos sentimentais e
emotivos existe o perigo da sua produção narrativa resvalar para uma “pieguice”
ludibriante (em Duas Mulheres, Um Destino, sem dúvida um dos menos conseguidos
desta autora, há, por vezes, algumas situações que raiam o mau-gosto e que
parecem entrar nos parâmetros do subproduto narrativo a que os norte-americanos
chamam as “romance novels”). Daí, o esforço da autora, nas suas melhores
páginas, em conter-se, em termos estilísticos, num registo sóbrio e seco, pouco
adjectivado, e, paralelamente, em estruturar a narrativa em graduações de
doseamento dramático que permitam reter a atenção do leitor.
Publicado no Público
em 2002.
(Foto da Autora de Anne Fredriksson)
Título: Duas Mulheres, Um Destino
Autor: Marianne Fredriksson
Tradução: Margareta Ek Lopes
Editor: Editorial Presença
Ano: 2002
211 págs., esg.