CURIOSAS
MISTIFICAÇÕES
A história do
“aparecimento” de A Voz de Lila de Chimo, que vem narrada nas primeiras páginas
da presente edição, justifica-se que seja aqui também contada: o manuscrito
apareceu no editor original - a muito respeitável editora francesa Plon -
através de interposta pessoa, já que o seu verdadeiro autor não queria ser
conhecido. O manuscrito vinha em dois cadernos quadriculados, sem título, com
uma letra irregular e - pelo que se vê pela página reproduzida - quase infantil
ou de alguém que não está habituado a escrever, com inúmeros erros de
ortografia, de pontuação irregular. No próprio editor se colocou a questão de o
texto ser uma mistificação de um autor consagrado ou a primeira obra de um
escritor desconhecido.
De qualquer modo,
estes dados - mesmo expressos pelo editor original sem pretender um exclusivo e
óbvio interesse promocional - provocam inevitavelmente uma “contaminação” do
olhar do leitor: ele fica “agarrado” pela génese intrigante do texto e na sua
leitura haverá sempre a subreptícia interrogação sobre qual o estatuto do
autor. Além disso, não se sabe com segurança se não foi o editor - tal como fez
com o título do romance - que decidiu que Chimo é o autor. Não terá o editor
original aceite de um modo pacífico a já clássica confusão entre autor e
narrador?
Assumindo, no
entanto, esta identificação feita pelo editor original, o leitor fica a saber
pelo texto de A Voz de Lila que o
autor tem dezanove anos, é desempregado e eventualmente de origem árabe,
vivendo num dos subúrbios miseráveis de Paris e nos limites da sobrevivência.
Pela sua própria existência, esta obra incute no leitor a ideia de que está
perante um texto de um autor radicalmente exterior à instituição literária
(obras deste tipo - é o seu principal mérito - levam a uma certa questionação
do que se entende hoje por este conceito) e que, portanto, terá de ter em
consideração esta origem ao ponderar e fruir o texto em si. É nesta
promiscuidade, entre a origem social do autor e um texto que se apresenta como
literário, que existe uma situação “mistificadora” nesta obra, visto que
desregula os critérios que delimitam os universos literários dos não-literários.
Dir-se-á que
todos os grandes autores começaram assim. Mas isso é obviamente um equívoco: o
que eles fizeram foi explorar caminhos próprios, nos campos possíveis da
semântica e da retórica, de forma a construir uma linguagem que, na sua
concepção, desbrave em profundidade a realidade, tornando cada vez mais
abrangente a instituição literária. Isto é, aquilo que Michel Leiris definia
pela expressão bem conhecida de “a
arte como tauromaquia”. De qualquer modo, partindo do princípio que as
delimitações da literatura têm a elasticidade da sua prática, nunca ninguém
questionou, desde a Antiguidade, que, subjacente a qualquer produção artística,
tem que existir um domínio técnico, desenvolvendo o autor, de acordo com as
suas estratégias criativas, esse domínio. Ora, o que Chimo permanentemente
reafirma de forma explícita em A Voz de Lila é a sua insuficiência
no domínio da linguagem. De facto, todo o romance é construído em
estreitíssimos limites semânticos e sintáxicos (aquilo que Chimo chama, numa
boa expressão, “a gaiola das palavras”),
parecendo que todas as imagens e metáforas são mais resultantes da insuficiência
do que de qualquer domínio da retórica. Será que nestas circunstâncias ainda
podemos estar a falar de literatura como expressão artística?
Quem tenha feito
trabalho cultural nos “desertos de cimento” dos mais degradados bairros sabe
que as condições de descaracterização e as angustiantes necessidades de
sobrevivência brutalizam a tal ponto, que não é lícito perspectivar que alguma
regra ou valor tenha correspondência com os dos universos exteriores àqueles
meios. É por isso que, quando alguém nestes meios pretende exprimir-se
“artisticamente”, não tem, quase sempre, os instrumentos (emocionais e
técnicos) para o fazer e, por consequência, só o consegue realizar com soluções
tão estereotipadas que se tornam absurdas e inesperadas, tendo em conta o lugar
de onde vêm. Nesse sentido, uma figura como Chimo, que sempre viveu este
ambiente de extrema carência, possuir uma lucidez tão grande sobre o seu meio
(algumas situações descritas em A Voz de Lila são exemplares na tipificação dos limites a que pode chegar a
degradação social), sobre a dimensão de irremediável exclusão social que ele
provoca (é o caso da consciência, várias vezes reafirmada, da sua apertada e
dolorosa “gaiola de palavras”), e, ao
mesmo tempo, sentir um tão grande impulso para redimir a sua situação através
de uma escrita que se confronta com a sua própria autenticidade, é tão pouco
plausível que dá argumentos a todos os que acusam esta obra de mistificação.
Um dos aspectos
interessantes de A Voz de Lila é, no
entanto, a caracterização do comportamento sexual e erótico da personagem
principal, próxima das retratadas em muitas outras obras de jovens autores
oriundos de diversas literaturas. Pode-se mesmo afirmar que a literatura está
aqui a testemunhar a gradual generalização de um comportamento erótico
assumidamente enraizado no desejo e no prazer, em que os sentidos e o
imaginário se sujeitam ao “império da pele”
e do sexo, libertos de qualquer noção previsível de interdito. Por isso,
falar de “voyeurismo”, de exibicionismo ou de onanismo verbal, ou, de forma
genérica, de comportamento perverso em relação ao modo como Lila se afirma
eroticamente, é não entender como estas classificações pertencem a uma
concepção da sexualidade bem distante do polimorfismo com que ela, de uma forma
libertária, cada vez mais se assume hoje. Nesse sentido, é interessante
perceber como os “discursos” com que Lila reproduz ou fantasia o seu próprio
prazer, partilhando a perturbação do “lembrar”, do “imaginar” e do “ver” entre si e o seu interlocutor amoroso, fazem uma unidade com o
acto sexual propriamente dito e amplificam, através de um efeito dialéctico, a
sua produção de prazer. É por isso que a única mancha que se detecta nesta
muito boa tradução é a solução adoptada para traduzir o título original, Lila dit
ça, porque se perde em português a noção que a transfiguração física
que o orgasmo parece criar, dando uma ilusória sensação de plenitude
existencial, está “inscrita” no que
Lila diz e no modo como o diz.
Publicado no Público em 1997.
Título: A Voz de Lila
Autor: Chimo
Tradutor: Maria Jorge Vilar de Figueiredo
Editor: Editorial Presença
Ano: 1997
121 págs, esg.
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