O Homem Invisível
“Continuar. Deixar ser. Deixar passar.
Representar. Transmitir. Continuar a trabalhar o mais fugidio dos materiais: a tua
respiração. Ser o seu artificie.”, Peter Handke em A Tarde de um Escritor.
Já li
em qualquer lado que a fortuna da obra de Peter Handke é ela ser a mais sintomática
de uma época que viu o fim das utopias. E, se tal é certo, pode afirmar-se que
o percurso ideológico deste autor é o de alguém que, a seu modo, esgotou os sentidos
do discurso utópico até ao despojamento: as duas últimas fases da produção
literária de Peter Handke, nas quais se situa A Hora da Sensação Verdadeira,
são bem características desta obsessiva preocupação em eliminar o acidental e
em silenciar o alarido das convicções excessivas com que o próprio autor viveu
a utopia.
Um
homem deambula por Paris, registando, quase fotograficamente, pequenos gestos
das pessoas, objectos, estados do tempo, a luz que enche tudo. Esse homem acordou
de manhã, depois de ter sonhado que era um assassino, e percebeu que qualquer
coisa, em qualquer lado, tinha cortado as reduzidas pontes que o ligavam aos
outros, que o ligavam a si próprio e colocara-o num deserto.
A
personagem principal de A Hora da Sensação Verdadeira
percebe, certo dia, que os outros se revelam como insuportáveis. Mas esta sensação
é principalmente resultante de uma “terra gasta”, de um espaço onde é impossível
o desejo, porque este desliza de forma demasiado fácil até sempre se esboroar.
É este “fascismo do quotidiano” que ele recusa, recolhendo-se: ninguém já nos vê
ou, o que é a mesma coisa, toda a gente nos observa esmiuçadamente até uma
dolorosa translucidez.
Para lá
das constantes temáticas das últimas fases da sua obra, que de facto são sintomáticas
dos tempos presentes, uma das dimensões mais criativas da obra de Peter Handke
está na forma como ele, intrincadamente, relaciona exterior/interior, sendo,
neste aspecto, um dos mais notáveis exemplos A Hora da Sensação Verdadeira.
Inúmeras personagens de Peter Handke deambulam como Gregor Keuschnig, o adido
de imprensa da Embaixada de Áustria em Paris, deste romance. Mas esta “dérive”
constante é uma espécie de reflexo físico do delírio psíquico em que as
personagens vivem: como se fosse impossível detectar qualquer ponto fixo onde se
pudesse ancorar o espírito, como se a devastação sentida se prolongasse na
desolação da paisagem. Na obra de nenhum escritor, provavelmente, se conseguiu,
de um modo tão contundente, eliminar a fronteira interior/exterior, desvendando
a presente platitude existencial. Quando Keuschnig, em A Hora da Sensação Verdadeira,
resolve escrever sobre a imagem existente da Áustria em França (e que aqui
serve como visão microcósmica da realidade), descreve-a como um décor interior,
nu, onde as personagens, sem história, falam como se recitassem um papel
aprendido de cor...
Mas a
perca dos outros é também a perca de si mesmo: o amor torna-se uma mecânica
carnal e anónima, uma violação repulsiva, e os outros repudiam a própria ausência
de si que a imagem física de Keuschnig revela. E é à beira do suicídio que a
existência da personagem principal de A Hora da Sensação Verdadeira se
transfigura num “sentido mínimo”: a convicção de que há sempre um real a
descobrir, uma emoção que o espera. A obra de Peter Handke afirma-se então como
um discurso contra-utópico que é uma forma de utopia: a subsistência só é
admissível num sereno desvendamento íntimo do existir.
Publicado
no Expresso em 1988.
(Foto do Autor de Lillian Birnbaum).
(Foto do Autor de Lillian Birnbaum).
Título:
A Hora da Sensação Verdadeira
Autor:
Peter Handke
Tradutor:
Adélia Silva Melo
Editor:
Difel
Ano: 1988
137
págs., 10,57 €
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