UM INCONSEQUENTE DR. FAUSTO
Alberto Vázquez-Figueroa, o autor espanhol de quem
foi agora editado no nosso país o romance O Senhor das Trevas, foi, durante
várias décadas, um repórter respeitado, que testemunhou inúmeros conflitos e
catástrofes, principalmente em África e na América do Sul. Em paralelo, e de
forma exclusiva nos últimos anos, dedicou-se a uma prolífera carreira de
romancista (já com mais de seis dezenas de livros publicados), de guionista e
de realizador cinematográfico. Vizinho de José Saramago (é o outro escritor que
reside na pequena ilha de Lanzarote), Alberto Vázquez-Figueroa é um autor muito
popular em Espanha, constantemente solicitado pelos “media”, devido às expressivas
vendas dos seus livros (Manaos, Anaconda, Tuareg,
El
Inca, etc.) e em especial ao sucesso cinematográfico de alguns dos seus
títulos e guiões (que, por vezes, foram produzidos em Hollywood).
Creio que se dá uma imagem fiel da obra deste
escritor, ao afirmar-se que procura apresentar certas problemáticas (no
essencial, de carácter ético e político), utilizando as estratégias narrativas
do chamado “romance de aventuras”, onde aparecem sempre inúmeras peripécias
rocambolescas e perigosas, personagens intrigantes, corajosas e rudes, e
ambiências exóticas e inóspitas. Por outras palavras, há aqui uma opção clara
do autor em cativar amplos públicos, em detrimento, se necessário for, de estratégias
narrativas mais complexas (e possivelmente mais criativas), mas que poderão
provocar maiores dificuldades em termos de acessibilidade. No fundo, a obra de
Alberto Vásquez-Figueroa enquadra-se num tipo de produção romanesca, já secular
(basta recordar os nomes de Dumas, Verne, Stevenson, Wells ou, nos dias de hoje,
de Arturo Pérez-Reverte), e que, por si só, nada tem de desprezível.
Contudo, mesmo tendo em conta estes objectivos, O
Senhor das Trevas parece um romance equivocado. Será, por exemplo, que
ainda se justifica - se a recriação literária não é a preocupação dominante –
retomar o mito do Dr. Fausto, como faz este romance, depois de tudo o que a
história da literatura já produziu em redor deste tema?
A ideia de “arranque” do romance parece revestir,
mesmo assim, algumas potencialidades narrativas: desta vez o Mefistófeles
procura arrebatar a alma de um médico-investigador espanhol, para a mergulhar,
após a sua morte, no martírio eterno do Inferno, com a promessa de, em troca,
dar-lhe as pistas necessárias para a descoberta da cura do cancro. De facto,
esta “retomada” do mito do Dr. Fausto, ao colocar nos pratos da mesma balança,
a tentação diabólica e uma ambição altruísta que trará gigantescos benefícios
para a humanidade, intrinca os caminhos do Bem e do Mal, permitindo questionar
a configuração habitual destes valores. Além disso, ao considerar que a
concessão deste auxílio humanitário apenas será nefasto para a Morte e que,
pelo contrário, será benéfico para o Diabo (pois que o carácter prolongado do
cancro, e a confrontação constante com a morte, leva muitos pacientes, durante
a doença, a tentar resolver os seus diferendos com Deus e a ansiar salvar a sua
alma), o autor desloca o registo do Mal para um universo questionável da
vontade e da intenção, em que as almas, apenas optariam por abraçar Lucifer em
vez de Deus, sem que isso tivesse inevitáveis efeitos malignos na Terra e nos
Homens.
Porém, a partir desta questionação, todos os
sentido se confundem no romance. Será que o objectivo fundamental do Diabo - a
conquista de almas para o Inferno – ainda poderá ser entendida como a essência
do Mal, em particular distinguindo-se esta do reino da Morte? Não será que para
nós, simples mortais, os efeitos mais radicais do Mal estão na panóplia
gigantesca das manifestações da Morte que caracteriza o nosso tempo e que leva
a própria personagem principal (e até o Diabo) de O Senhor das Trevas a
argumentar que a Humanidade vive presentemente um estádio de orfandade de Deus?
Será que ainda se justifica reclamar sobre a ausência de Deus? Será que se
obtém alguma maior compreensão significativa sobre a natureza do Mal, ao
personalizá-la e ao demarcá-la dos seus efeitos terrenos?
Saliente-se ainda que O Senhor das Trevas
parece sofrer em excesso os defeitos de uma “mão” demasiado condicionada pelo
guionismo. Até cerca de metade do romance, os diálogos são ininterruptos
(perdendo-se, muitas vezes, a explicar o óbvio e contaminados de uma
“literatice” que os torna inverosímeis) e as situações e as personagens
caracterizadas por meras pinceladas rápidas e sem preocupação de detalhe. É só
nessa altura que, de súbito, e de uma forma muito pouco consistente, aparecem
as “aventuras”, aqui situadas na recôndita floresta amazónica do Equador,
ganhando então o romance alguma qualidade em termos de descrição e pitoresco.
Desequilibrado, revelando fragilidades narrativas e insustentabilidade
argumentativa, O Senhor das Trevas é, de facto, uma obra falhada e pouco
interessante.
Publicado no Público
em 2002.
Autor: Alberto Vázquez-Figueroa
Tradutor: Armando Pereira da Silva
Editor: Difel
Ano: 2002
241 págs., esg.
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