A ALTERNATIVA DA FUGA
Um dos
factos sintomáticos e determinantes da cultura americana foi a “fuga”, desde os
finais do século passado até à II Guerra Mundial, de várias gerações de
intelectuais e escritores para a Europa. É evidente que a motivação para esta “fuga”
nasceu do fascínio pelos “pergaminhos” culturais do Velho Continente por parte
desses intelectuais e escritores; mas convém associar a esta motivação a convicção
generalizada entre eles de que a América não passava de um deserto inóspito e asfixiante.
Porém,
deve salientar-se que essa motivação determinou “destinos” distintos de geração
para geração: enquanto a partir da geração de um Hemingway e de um Fitzgerald
(e até mesmo da sua “mãe literária”, Gertrud Stein), o que esses intelectuais
procuravam, ao deslocarem-se para estas bandas, era adquirir uma distanciação
que lhes permitisse compreender melhor a realidade
americana, o que impeliu escritores de gerações anteriores,
como Henry James ou Edith Wharton, a autora de quem foi agora traduzido este A
Casa da Alegria, a virem para a Europa, foi o procurarem uma outra ambiência
criadora, mais em consonância com os seus gostos estéticos e literários, e daí
que a sua “fuga” se tenha convertido em definitivo exílio.
Edith Wharton,
discípula e amiga de Henry James, pertencia, tal como este, à alta burguesia americana;
mas foi em França, onde, por razões de sensibilidade cultural, se exilou, um ano
após ter publicado A Casa da Alegria (1905), que realizou uma significativa obra
romanesca em que, minuciosamente, analisa os comportamentos da sua originária
classe social.
Sendo
hoje considerada uma autora clássica da literatura americana, a sua obra não teve,
contudo, seguidores significativos: os
seus
parâmetros estéticos e literários, muito influenciados pelos de Henry James, eram,
talvez, excessivamente novecentistas para serem compreendidos pelas futuras gerações
de romancistas e a sua linguagem estava bem afastada da oralidade que vai
determinar, em termos estilísticos, a posterior produção romanesca americana.
A Casa
da Alegria, um dos seus mais importantes romances, é bem característico
de toda a ficção de Edith Wharton: um enredo banalíssimo, de um sentimentalismo
quase raiando o patético, mas que uma particular sagacidade de caracterização e
observação psicológica, aliada a uma rigorosa, e muitas vezes original, construção
romanesca, transforma numa obra notável.
Tudo
se resume à história de uma jovem em idade casadoira, órfã de uma “boa família” falida,
que se vê
impelida
entre, por um lado, tentar manter, a custo de dívidas e
dependências ambíguas, um estatuto de luxo que lhe permita continuar num circuito
social que propicie um casamento que lhe resolva os seus problemas financeiros,
e, por outro, abandonar tudo isto, abrindo-se a uma relação onde só prevaleça “a palavra que tudo torna claro”.
Mas a
leitura do romance vai, a pouco e pouco, dando consciência ao leitor de que
este enredo não passa de um logro, de um artifício, para transmitir, nas suas
entrelinhas, um “excedente”: a convicção de que o confronto, entre um indivíduo desprovido de “poderes” sobre
os códigos sociais estabelecidos e a própria sociedade, está condenado ao malogro,
desde que
seja unicamente conduzido por uma imperativa obstinação; e que só a produção de
códigos alternativos, resultantes de premissas distintas, é que pode
transformar esse confronto numa afirmação individual. É esta a legibilidade possível
dos constantes “pecados”, segundo os códigos sociais então vigentes, em que vai
caindo a personagem principal de A Casa da Alegria, Lily Barth, ao
tentar, de forma ansiosa, brilhar na alta sociedade nova-iorquina do princípio do
século. E é também este o
sentido do discurso alternativo, assente numa paixão com a capacidade de despistar
os referidos códigos sociais, que lhe contrapõe
a única personagem que poderia salvar Lily Barth do ciclo destrutivo em que se encontra.
Vemos,
portanto, que Edith Wharton não faz mais do que inscrever na sua produção
romanesca aquilo que já assinalámos
como
uma
constante cultural americana: a necessidade do indivíduo, para existir na
sociedade americana, de fugir, de ”desterritorializar-se” (nem que seja para
descobrir na Europa o “oxigénio” necessário para um possível regresso). Por outro
lado, ao centrar esta problemática numa figura feminina, percebe-se por que razão
a obra desta autora foi encarada como um marco fundamental para a formulação de
uma sensibilidade feminina que se procurava libertar das condicionantes de uma
sociedade acentuadamente victoriana.
Por fim,
convém realçar que consideramos corajosa esta edição em português de uma obra
de Edith Wharton, uma autora inegavelmente importante, e,
contudo, não muito conhecida, nem vocacionada
para ter no nosso país uma enorme popularidade. Mas, ao mesmo tempo, parece-nos
quase
suicida
que não se tenha feito um esforço para acompanhar esta edição de
uma sucinta apresentação que situe a autora e a sua obra. Além
disso, é também lamentável que esta tradução cuidada seja tantas vezes ensombrada
por um número exagerado de
gralhas.
Título: A Casa da Alegria
Autor: Edith WhartonTradutor: Wanda Ramos
Editor: Ed. Presença
Ano: 1987
289 págs., esg
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