UMA OUTRA ORDEM
Uma
das evidências da biografia de Hermann Hesse é o carácter dilacerante que
sempre teve nele a mudança dos tempos e o devir; e, talvez por isso mesmo, poucas
obras da literatura contemporânea conseguiram, como a deste autor, desvendar os
sinais do tempo, sintonizar com as questões essenciais que eles levantam,
obtendo, assim, a tão falada dimensão visionária e profética. As obras fundamentais
de Hermann Hesse (Peter Camezind, Demian, Siddharta, O
Lobo das Estepes e O Jogo das Contas de Vidro) são, por
isso, verdadeiros pontos de rotação num percurso que, afinal, revela uma extraordinária
coerência. E, no entanto, toda a sua obra remete para uma concepção artística
que não faz a mais pequena cedência a um intimismo imediato; pelo contrário,
ele procura, em cada romance, definir um universo autónomo, em que as situações,
e, em particular, as personagens, sejam elaboradas corporizações das inquietações
do autor e da época.
As
constantes desta obra revelam-se com uma linearidade assombrosa nessa “suma” de
uma reflexão e de uma potencialidade criativa crescente que é O
Jogo das Contas de Vidro. Aí encontramos a rejeição de uma civilização
dominada por princípios materiais e técnicos e pela mediocridade burguesa, o
louvor de uma espiritualidade que é apanágio de uma elite intelectual (que, por
isso mesmo, se torna o bastião de um inadiável e alternativo percurso civilizacional),
a exaltação de um posicionamento contemplativo face ao aparente racionalismo
ideológico e activista e, por último, a defesa do individualismo perante os
colectivismos massificadores e descaracterizantes. Por tudo isto, esta obra, que
não tem entre nós a popularidade de O Lobo das Estepes ou de Siddharta,
tem sido considerada como uma das obras essenciais da literatura contemporânea
europeia, ao nível, e sem sair do mesmo espaço linguístico, de O Doutor
Fausto de Thomas Mann, de O Homem Sem Qualidades de Robert Musil
ou de Morte de Virgílio de Hermann Broch.
O Jogo
Das Contas de Vidro é a descrição de uma Ordem que forma,
desde a mais tenra idade, um escol de intelectuais, dedicando-se aos mais variados
domínios científicos e artísticos, em total independência económica, e vivendo à
margem da sociedade (note-se que a formação desta elite nada tem a ver com a
actividade escolar e académica que visa preparar quadros técnicos e intelectuais
para a restante sociedade), e que, através do estudo e da contemplação, procura,
sem preocupações de aplicação prática, aprofundar os conhecimentos humanos. Cada
área de conhecimento tem, em Castália (o lugar abstracto onde se situa a Ordem),
as suas escolas e arquivos, assim como o seu Director de Estudos ou Magister.
Mas a área mais caracterizante do espírito da Ordem é a do Jogo das Contas de
Vidro, um jogo que é, ao mesmo tempo, uma arte e um método e que, através da contemplação,
pretende estabelecer uma imagem da “harmonia mundi”, contemporizando e justapondo
o maior número possível de saberes. Para a exposição da organização e da história
da Ordem, Hermann Hesse resolveu, por estratégia, narrar a vida de um Mestre do
Jogo das Contas de Vidro, Josef Knechet.
A
questão imediata, que esta obra levanta, refere-se à situação temporal desta
utopia. De facto, esta utopia não se situa nem no futuro nem num passado desconhecido,
mas num “presente oculto” (à margem?) e num “espaço insituável” (na Alemanha?).
Os dados para esta definição temporal estão principalmente na Introdução, onde Hermann
Hesse estabelece uma espécie de genealogia da Ordem (é bem curiosa a caracterização
da “Idade do Folhetim”, isto é, a era histórica anterior à fundação de Castália),
nas referências aos grandes vultos da história da cultura, em particular da música
(as mais recentes são as dos Grandes Românticos), e a presença de certas inovações
técnicas (a rádio, o telégrafo, etc.).Mas, por outro lado, despista-se esta cronologia
com elementos medievalizantes (o tempo da duração das viagens, a ambiência dominantemente
rural, a concepção da organização da Ordem segundo o modelo das corporações,
etc.). Ora, este jogo dialético, entre a História como Presente e o Presente como
História, é importante porque revela o essencial da técnica com que Hemann
Hesse constitui a “realidade” deste romance.
Através
dos confrontos, que o “Magister Ludi” Josef
Knechet se vê obrigado a efectuar em defesa de Castália, vão aparecendo as
questões que Hermann Hesse considerava determinantes no processo
civilizacional: a necessária autonomia da vida espiritual em relação a
religiosidade, mantendo, no entanto, esta um constante papel vivificador dos
valores éticos e metafísicos; a integração dos princípios do pensamento
oriental no do Ocidente (e saliente-se que a própria obra de Hermann Hesse é provavelmente
uma das que consegue uma mais perfeita e elevada fusão destes pensamentos); a
adequação entre ordem e hierarquia e poder criador; as relações árduas entre espiritualidade
e vida material. Note-se que este último conjunto de questões é que vai levar Josef
Knechet a compreender que a sua Castália não é um paradigma
inalterável mas um projecto em mutação, necessariamente contingente e transformável
em consequência da intervenção vital do “século”. Daí que esta utopia de Hermann
Hesse esteja em permanente evolução, ao contrário das utopias tradicionais que
são estáticas, levando Ernest
Bloch a situá-la como um exemplo determinante das “utopias modernas históricas”.
Perante
um livro tão difícil e denso, e que levanta uma problemática na aparência
distante, talvez o leitor actual se sinta desmotivado. Mas, se tal acontece, só
se pode lamentar, porque é não só um dos
livros mais empolgantes ultimamente publicados, nem que seja pela beleza estilística
com que o autor pondera algumas questões que têm cada vez maior acuidade, como
pela soberba (e árdua) tradução de
Carlos
Leite.
Publicado
no Expresso em 1989.
Título:
O Jogo das Contas de Vidro
Autor:
Hermann Hesse
Tradutor:
Carlos Leite
Editor:
Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
445
págs., 21,90 €
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