AS VIAGENS IMPOSSÍVEIS
A
produção da literatura de viagens ou apenas “exótica” sempre respondeu a um
sentimento de cristalização da significação ontológica, que a
“desterritorialização” provoca, e à necessidade de eliminar a indiferenciação
emocional através da deslocação para Outro Lugar do sujeito que está e vê. No
entanto, hoje, este tipo de literatura parece assinalar cada vez mais a
uniformidade dos territórios e a impossibilidade de escapar ao Mesmo: o
viajante deixou de o ser e transformou-se num deambulante que persegue, em
todos os lugares, a sombra da sua anulação de sentido e o tédio resultante de
descobrir, por todo o mundo, uma simples “arqueologia das diferenças”.
Esta
constatação é desesperantemente nítida no romance Infanta de Bodo Kirchhoff,
um autor alemão que, nos últimos tempos, tem obtido alguma evidência
internacional com os seus relatos de viagens.
O cenário
deste romance é as Filipinas, no período pré-revolucionário do derrube de
Ferdinando Marcos. É nesta, ainda latente, efervescência social e política que
“desembarca” um “alemão de Roma”, não se sabe porquê e vindo não se sabe de onde.
Perante a sua situação de “desamparo”, um membro de uma pequena comunidade de jesuítas,
oriunda de diferentes nações, estabelecida na ilha de Infanta, resolve dar-lhe guarida
e favorecer, deste modo e intencionalmente, a relação amorosa deste
“estrangeiro” com a jovem e bela filipina que serve de governanta.
De
imediato, se percebe que o “alemão de Roma” viaja com um estatuto “inverso” ao
de turista: ele deixou de ser aquele que vê para se tornar naquele que é visto.
O único elemento de “exotismo” (se considerarmos este conceito como a
caracterização de um Outro ainda não compreendido) que subsiste nesta obra é
resultante da presença desta personagem na paisagem social de Infanta. Por
isso, ela absorve o olhar dos outros como um “buraco negro”, transformando-se num
“continente” vazio perante o qual as restantes personagens sentem a necessidade
de “verter” o testemunho das suas existências. A intencionalidade deste
estatuto toma-se ainda mais óbvia quando se vem a saber que a actividade
profissional desta personagem, até à chegada à ilha, foi a de modelo.
A
actividade profissional de Kurt Lucas, a personagem principal, contribui também
para caracterizar o seu tipo de (mal-)estar: existindo só no “presente” em que
o seu corpo se expõe, ele deambula, momento a momento, por paisagens e corpos -
é este o sentido da magnífica epígrafe do poeta Edmond Jabès com que abre Infanta.
Vivendo na “pose”, ele protagoniza aquilo que o olhar dos outros quer que seja.
A comunidade de jesuítas, por exemplo, vivendo entre “presentes” já passados e
um futuro que é somente a crença numa plenitude transcendente adiada para os
fins do tempo, transfere para o presente de Kurt Lucas a intensidade dos seus
desejos insatisfeitos.
É também
este estar apenas no “presente” que aproxima a personagem principal de Mayla, a
jovem governanta da comunidade de jesuítas. É que Mayla é uma “sobrevivente” e,
por isso, alguém para quem também só conta o presente. O que Kurt Lucas
descobre nela é a densidade específica que tem o corpo e que ele se habituou a
reconhecer no seu através do olhar dos outros. A sua relação amorosa, construída
com a substância de cada momento e na superfície dos corpos, parece-lhe, por
isso, o Lugar onde é impossível haver “perca” da intensidade do presente. Tanto
para mais que a própria relação amorosa parece estar na mais adequada sintonia
com a efervescência social que se vive naquele momento nas Filipinas.
Porém,
a corrupção e a violência em que a sociedade filipina imediatamente se afunda,
após o “momento” revolucionário, e a descoberta de que Mayla, apesar da paixão,
tem um passado que lhe reveste o corpo, dando-lhe um conjunto de desejos que
ultrapassa o presente, levará Kurt Lucas a perceber que é impossível fugir ao
Mesmo e à inevitável desagregação. No fundo, a personagem principal pressentiu
numa miserável mulher - um autêntico vegetal humano que vive deitado numa
lixeira e lhe “oferece” o filho recém-nascido - aquilo que sempre temeu: nada
mais ser do que um corpo, um dejecto do tempo.
Em
princípio, este conjunto das ideias narrativas poderia fazer deste romance uma
obra interessante; mas a inépcia na construção de inúmeras situações dramáticas
e a falta de sentido da economia narrativa mergulham Infanta num discurso
palavroso (que as irregularidades da tradução ainda mais acentuam),
estilisticamente bastante monótono, e que retira qualquer dimensão estimulante
que o leitor procure vislumbrar na sua trama.
Publicado no Público em 1993.
Título: Infanta
Autor: Bodo Krichhoff
Tradutor: Maria Augusta Júdice e António HaIl
Editor: Edições Asa
Ano: 1993
389 págs., 16,62 €
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