quarta-feira, 14 de outubro de 2015

JEAN ECHENOZ

 


AS IMAGENS REFLECTIDAS
 
Quando apareceu o primeiro romance de Jean Echenoz em França, Le Méridien de Greenwich (1979), começava a vislumbrar-se os primeiros sinais de que se tinha iniciado o ocaso de um ciclo literário. De facto, existia uma certa saturação, principalmente entre o leitor comum, por uma produção narrativa que pretendia corresponder a uma exaustiva reflexão teórica sobre a literatura (de origem académica em grande parte, mas não só: quem se recorda ainda da avidez com que se liam revistas como a “Tel Quel” ou a “Change”?) e que, nos domínios da ficção, questionava os modelos clássicos do romance do séc. XIX, levando à desagregação dos seus pilares fundamentais: o narrador omnisciente, a coerência e a verosimilhança das personagens, as unidades de espaço e tempo, a capacidade de efabulação, etc., etc.. Todo este processo de questionamento, no lastro de grandes inovadores formais que foram Proust e Joyce, se tinha iniciado ainda na década de cinquenta, com o chamado “nouveau roman” (Claude Simon, Robbe-Grillet, Sarraute, Ollier, Pinget, Duras da primeira fase, etc.) e, lateralmente, com a publicação sistemática da obra narrativa de Samuel Beckett; isto é, tudo autores de uma frágil, exigente e rigorosa casa editora, “Les Editions de Minuit” (ainda hoje, sem sombra de dúvida, uma das editoras com maior prestígio literário em França), que, desse modo, se tinha tornado a referência paradigmática de uma certa concepção da literatura e, em particular, da narrativa. Ora, foi precisamente nesta editora que apareceu o primeiro romance de Jean Echenoz e onde se publicaram, de seguida e até aos dias de hoje, as suas restantes obras.
 
Esta circunstância tinha um particular significado literário: é que este romance de Jean Echenoz, e, em especial, o segundo, Cherokee (que obteve o Prix Médicis. isto é, o prémio que, por tradição, galardoava em França a ficção mais experimental), voltava a redimir algumas componentes consideradas como convencionais da narrativa clássica (a última obra referida é - característica que na altura parecia quase escandalosa - um romance policial). De facto, a obra de Jean Echenoz visava (e visa), de um modo equilibrado, integrar, por um lado, a reflexão discursiva de Samuel Beckett em situações de efabulação na aparência tradicionais, e, por outro, conciliar algumas das preocupações formais dos autores habituais de “Les Éditions de Minuit” (um sentido de observação minucioso, uma verosimilhança das situações e das personagens que se sustenta apenas na coerência interna da trama) com uma estratégia romanesca assente na exploração dos géneros narrativos.
 
Tudo isto é já um pouco história da literatura: a prova é que Jean Echenoz ganhou com o seu último romance, Vou-me Embora! (publicado no nosso país ao mesmo tempo que o penúltimo, Um Ano), o anteriormente vilipendiado Prémio Goncourt, que era apontado pelos autores “experimentais” como o instrumento dilecto das grandes editoras para “coroar” as obras novelísticas mais convencionais e comerciais. Nos dias de hoje, este autor, já com nove títulos publicados, é, por consenso, considerado como um sólido romancista, possuidor de uma poderosa carga imaginativa, de um estilo literário versátil e capaz de potencializar as capacidades expressivas da língua francesa.
 
Ambas as obras têm todos os ingredientes dos “livros de aventuras”. Muito em particular, em Vou-me Embora!, onde aparece um assassínio, um roubo, uma viagem a um mundo exótico (ao Ártico), a descoberta de um “tesouro” num barco encalhado nos gelos polares, investigações policiais, síncopes cardíacas, etc., desenrolando-se tudo no universo peculiar dos galeristas e da arte contemporânea. Mas também em Um Ano aparece um morto, fugas pela estrada, tentativas de violação, pessoas desaparecidas, etc. No fundo, parece existir em Jean Echenoz um particular deleite em manipular o leitor, arrastando-o para situações estranhas e a tocar as raias do inverosímil, comprovando deste modo as potencialides quase absolutas da arte de narrar.
 
De facto, a sustentabilidade das obras deste autor parte, por um lado, de aplicar, com alguma ironia, um conjunto diversificado de instrumentos narrativos, e, por outro, de um sentido agudo do pormenor e da descrição. No caso da estrutura mais complexa de Vou-me Embora!, refira-se, por exemplo, o jogo espácio-temporal que, alternando de capítulo para capítulo, encaminha a trama para desfechos imprevisíveis; ou o aparecimento subtil de vários sujeitos narrativos, criando cumplicidades específicas com o leitor em cada momento da acção; ou ainda a visibilidade que, em certas alturas, o autor transmite ao narrador, permitindo-lhe comentar as situações ou as características comportamentais das personagens.
 
Existem nestas duas obras, com acções e universos bem distintos, uma ambiência que lhes transmite, no entanto, alguma unidade. Essa unidade parece resultar da errância destas personagens e das componentes fantasmagóricas (particularmente visíveis em Um Ano, onde a personagem principal se vê perseguida por figuras que aparecem e desaparecem de um modo quase inexplicável, nunca se sabendo se existem de facto ou se são meras criações de uma mente perturbada pelo medo) que as envolvem. De certo modo, as personagens dos romances de Echenoz, sujeitas às intempéries do destino, aceitando-as com a resignação do inevitável, são seres com a fragilidade de imagens reflectidas que a todo o momento podem desaparecer do espelho da consciência em que o leitor se sente difusamente retratado.
 
Publicado no Público em 2000.
 
 
Título: Vou-me Embora!
Autor: Jean Echenoz
Tradução: Manuela Torres
Editor: Terramar
Ano: 2000
179 págs., € 10,58
 
 
Título: Um Ano
Autor: Jean Echenoz
Tradução: Manuela Torres
Editor: Terramar
Ano: 2000
97 págs.,   esg.
 
 



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