AS IMAGENS
REFLECTIDAS
Quando
apareceu o primeiro romance de Jean Echenoz em França, Le Méridien de Greenwich
(1979), começava a vislumbrar-se os primeiros sinais de que se tinha iniciado o
ocaso de um ciclo literário. De facto, existia uma certa saturação,
principalmente entre o leitor comum, por uma produção narrativa que pretendia
corresponder a uma exaustiva reflexão teórica sobre a literatura (de origem
académica em grande parte, mas não só: quem se recorda ainda da avidez com que
se liam revistas como a “Tel Quel” ou
a “Change”?) e que, nos domínios da
ficção, questionava os modelos clássicos do romance do séc. XIX, levando à
desagregação dos seus pilares fundamentais: o narrador omnisciente, a coerência
e a verosimilhança das personagens, as unidades de espaço e tempo, a capacidade
de efabulação, etc., etc.. Todo este processo de questionamento, no lastro de
grandes inovadores formais que foram Proust e Joyce, se tinha iniciado ainda na
década de cinquenta, com o chamado “nouveau roman” (Claude Simon,
Robbe-Grillet, Sarraute, Ollier, Pinget, Duras da primeira fase, etc.) e,
lateralmente, com a publicação sistemática da obra narrativa de Samuel Beckett;
isto é, tudo autores de uma frágil, exigente e rigorosa casa editora, “Les
Editions de Minuit” (ainda hoje, sem
sombra de dúvida, uma das editoras com maior prestígio literário em França),
que, desse modo, se tinha tornado a referência paradigmática de uma certa
concepção da literatura e, em particular, da narrativa. Ora, foi precisamente
nesta editora que apareceu o primeiro romance de Jean Echenoz e onde se
publicaram, de seguida e até aos dias de hoje, as suas restantes obras.
Esta
circunstância tinha um particular significado literário: é que este romance de
Jean Echenoz, e, em especial, o segundo, Cherokee (que obteve o Prix Médicis.
isto é, o prémio que, por tradição, galardoava em França a ficção mais
experimental), voltava a redimir algumas componentes consideradas como
convencionais da narrativa clássica (a última obra referida é - característica
que na altura parecia quase escandalosa - um romance policial). De facto, a
obra de Jean Echenoz visava (e visa), de um modo equilibrado, integrar, por um
lado, a reflexão discursiva de Samuel Beckett em situações de efabulação na aparência
tradicionais, e, por outro, conciliar algumas das preocupações formais dos
autores habituais de “Les Éditions de Minuit” (um sentido de observação
minucioso, uma verosimilhança das situações e das personagens que se sustenta apenas
na coerência interna da trama) com uma estratégia romanesca assente na
exploração dos géneros narrativos.
Tudo isto é
já um pouco história da literatura: a prova é que Jean Echenoz ganhou com o seu
último romance, Vou-me Embora! (publicado
no nosso país ao mesmo tempo que o penúltimo, Um Ano), o anteriormente
vilipendiado Prémio Goncourt, que era apontado pelos autores “experimentais”
como o instrumento dilecto das grandes editoras para “coroar” as obras
novelísticas mais convencionais e comerciais. Nos dias de hoje, este autor, já
com nove títulos publicados, é, por consenso, considerado como um sólido
romancista, possuidor de uma poderosa carga imaginativa, de um estilo literário
versátil e capaz de potencializar as capacidades expressivas da língua
francesa.
Ambas as
obras têm todos os ingredientes dos “livros de aventuras”. Muito em particular,
em Vou-me
Embora!, onde aparece um assassínio, um roubo, uma viagem a um mundo
exótico (ao Ártico), a descoberta de um “tesouro” num barco encalhado nos gelos
polares, investigações policiais, síncopes cardíacas, etc., desenrolando-se
tudo no universo peculiar dos galeristas e da arte contemporânea. Mas também em
Um
Ano aparece um morto, fugas
pela estrada, tentativas de violação, pessoas desaparecidas, etc. No fundo,
parece existir em Jean Echenoz um particular deleite em manipular o leitor,
arrastando-o para situações estranhas e a tocar as raias do inverosímil,
comprovando deste modo as potencialides quase absolutas da arte de narrar.
De facto, a
sustentabilidade das obras deste autor parte, por um lado, de aplicar, com
alguma ironia, um conjunto diversificado de instrumentos narrativos, e, por
outro, de um sentido agudo do pormenor e da descrição. No caso da estrutura
mais complexa de Vou-me Embora!, refira-se, por exemplo, o jogo espácio-temporal
que, alternando de capítulo para capítulo, encaminha a trama para desfechos
imprevisíveis; ou o aparecimento subtil de vários sujeitos narrativos, criando
cumplicidades específicas com o leitor em cada momento da acção; ou ainda a
visibilidade que, em certas alturas, o autor transmite ao narrador,
permitindo-lhe comentar as situações ou as características comportamentais das
personagens.
Existem
nestas duas obras, com acções e universos bem distintos, uma ambiência que lhes
transmite, no entanto, alguma unidade. Essa unidade parece resultar da errância
destas personagens e das componentes fantasmagóricas (particularmente visíveis
em Um
Ano, onde a personagem principal se vê perseguida por figuras que
aparecem e desaparecem de um modo quase inexplicável, nunca se sabendo se
existem de facto ou se são meras criações de uma mente perturbada pelo medo)
que as envolvem. De certo modo, as personagens dos romances de Echenoz,
sujeitas às intempéries do destino, aceitando-as com a resignação do
inevitável, são seres com a fragilidade de imagens reflectidas que a todo o
momento podem desaparecer do espelho da consciência em que o leitor se sente
difusamente retratado.
Publicado
no Público em 2000.
Título: Vou-me Embora!
Autor: Jean Echenoz
Tradução: Manuela Torres
Editor: Terramar
Ano: 2000
179 págs., €
10,58
Título: Um Ano
Autor: Jean Echenoz
Tradução: Manuela Torres
Editor: Terramar
Ano: 2000
97
págs., esg.
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