O HUMOR TRANSFIGURANTE DA MEMÓRIA
O primeiro livro a ser traduzido e editado em
Portugal de Alfredo Bryce Echenique, intitulado Morte de Sevilha em Madrid e
outros contos, foi no início dos anos oitenta, na colecção “Vozes da
América Latina” das Ed. 70, um produto típico do entusiasmo editorial que
rodeou o aparecimento de Cem Anos de Solidão e o chamado
“boom” da literatura latino-americana. Recordar hoje este acontecimento,
permite mais uma vez constatar como a imagem que na altura se fez desta
literatura (e que ainda perdura de uma forma genérica) era demasiado simplista
e redutora. De facto, a produção literária de Alfredo Bryce Echenique
revelava-se bem longe dos cânones do “realismo fantástico” e, por conseguinte,
bastante periférica em relação aos modelos que, naquela altura, o leitor
esperava encontrar na literatura sul-americana. Talvez por isso, este livro foi
um razoável insucesso comercial e mais nenhum editor procurou publicar outra
obra deste autor em Portugal, caindo, pelo menos em termos públicos, no
esquecimento.
Só passados vinte anos, a Ed. Teorema, no seu
assinalável esforço de divulgar autores contemporâneos da literatura universal,
resolveu editar um novo título de Alfredo Bryce Echenique, Guia Triste de Paris, que
obteve também uma recepção muito discreta. E, recentemente, de uma só
assentada, duas editoras (a Ed. Teorema, que parece que resolveu retomar a
edição das obras deste autor, e as Publicações Dom Quixote) publicaram duas
obras de períodos bem distintos da sua produção literária: a primeira,
intitulada A Vida Exagerada de Martín Romaña, é uma extensa narrativa que,
para muitos críticos, é considerada uma das obras-chave de Alfredo Bryce
Echenique; a segunda, O Horto da Minha Amada, é um dos
seus romances mais recentes e obteve, em Espanha, o Prémio Planeta 2002. Creio
que este sucesso e o anúncio da vinda do autor a Portugal (que, depois, não se
veio a confirmar) justificam este redobrado interesse pela obra deste autor por
parte dos editores portugueses.
Deve, contudo, assinalar-se que Alfredo Bryce
Echenique é, a seguir a Mario Vargas Llosa, o autor peruano mais respeitado e
considerado em termos internacionais, sendo bem conhecido no país vizinho e em
França, e traduzido e editado na maior parte dos países europeus. A sua primeira
obra, uma colectânea de contos, Huerto Cerrado, foi publicada no
final da década de sessenta, quando o autor, já com perto de trinta anos, se
encontrava exilado em Paris, tendo obtido uma menção honrosa no prestigiado
Prémio Casa de las Américas. Mas é com o romance que publicou de seguida, em
1970, Un Mundo Para Julius, que consegue o reconhecimento do público
e da crítica peruanos, ganhando o Prémio Nacional de Literatura. Depois, foi
publicando colectâneas de contos, de crónicas e novelas, atingindo neste
momento o conjunto da sua obra mais de duas dezenas de títulos. Neste conjunto,
são muitos os críticos que consideram o díptico Cadernos de Navegação Num
Cadeirão Voltaire, constituído por A Vida Exagerada de Martín Romaña,
de 1981 e agora publicado no nosso país, e por El Hombre Que Hablaba de Octávia
de Cádiz, de 1985, como os seus romances mais importantes. Para além
dos já mencionados (e de Tantas Veces Pedro, de 1977, Reo
de Nocturnidad, de 1997, e La Amigdalitis de Tarsan, de 1999),
tem ainda que referir-se que Alfredo Bryce Echenique é um exímio contista,
género a que tem dedicado muito do seu labor literário. Em resumo, este autor
já recebeu os mais importantes galardões literários, tanto no seu país de
origem como em Espanha, e é hoje considerado um dos maiores narradores de
língua castelhana.
A leitura destes dois romances agora publicados em
Portugal permite apreender com nitídez as componentes determinantes de toda a
sua obra: primeiro, uma recriação constante de elementos autobiográficos;
segundo, uma análise devastadora de todas as ilusões e fugazes convicções com
que se vai motivando o preenchimento dos dias, utilizando um humor, ao mesmo
tempo feroz e nostálgico, de quem compreendeu que a melhor forma de lhes
sobreviver é encarando-se com uma implacável auto-ironia. Tudo isto assente num
estilo barroco, luxuriante de imagens e de derivações, excessivo, inúmeras
vezes redundante, que se revela muito acertado para a narração da “exagerada”
vida vulgar de Martín Romaña.
A obra que tem esta personagem como narrador é um
verdadeiro ajuste de contas com o parisiense Maio de 68 e com as ilusões
revolucionárias de uma geração que acreditou, com um optimismo ingénuo, que
poderia transformar o mundo ou, pelo menos, as relações políticas e socio-económicas
da nossa sociedade. Martín Romaña, tal como o autor, encontra-se na altura em
Paris, no seio da comunidade peruana exilada, repleto de ambições literárias e
revolucionárias, mas, em particular, mergulhado numa relação amorosa que crê
imorredoira e inatingível às histórias privadas (e públicas) dos protagonistas.
A
Vida Exagerada de Martín Romaña, ao descrever as atribulações amorosas
e grupuscalares desta personagem, vai dissecando o inebriamento discursivo de
uma geração que, no fundo, acredita inconscientemente no valor mágico das suas
palavras, sem se aperceber que, sob esse inebriamento, já se perfila o
carreirismo político e as ambições sociais de quem se aproveita, de uma forma perversa,
desse entusiasmo tão sincero quanto adolescente. Mas este romance não se
confina à desmontagem do discurso utopista de uma geração: procura também, com
uma sumptuosa ironia, perceber como esse posicionamento ideológico afecta os
interstícios mais profundos da vida privada até ao desfiguramento total das
relações amorosas, transformando-as num anedotário tragico-cómico. A literatura
aparece, assim, ao transfigurar em farsa, carregada de nostalgia, as feridas
amorosas e o desperdício dos dias, mais uma forma de redimir o sofrimento e a
inutilidade do viver, recriando-lhes um sentido: a ficção, ao fantasiar a
memória, torna-se, por conseguinte, a melhor forma de sobreviver.
Por isso mesmo, A Vida Exagerada de Martín Romaña,
no conjunto da sua obra, é o romance onde o mesclamento entre autobiografia e
ficção é mais desenvolvido, jogando permanentemente entre recriação e memória,
entre personagens fictícias e reais (saliente-se que uma das personagens reais
que aparece neste romance é o próprio Alfredo Bryce Echenique, por quem o
narrador nutre um sentimento de amor/ódio constante). Por outro lado, é também
neste romance, no conjunto das obras agora traduzidas, em que o autor mais
desenvolve em termos estilísticos uma reflexão divagante (e metaficcional)
sobre os constantes desajustamentos entre desejo e realidade, entre os valores
da amizade, do amor, da política e da literatura e aquilo que a própria vida
nos vai concedendo do que se sonha e se crê.
Quanto a O Horto da Minha Amada, o segundo
romance agora traduzido de Alfredo Bryce Echenique, pode afirmar-se que está,
mesmo sem o autor abandonar as suas características estilísticas, mais próximo
dos cânones convencionais do romance e, de certo modo, mais equilibrado entre
as suas componentes narrativas. Nesta obra, o autor descreve a relação amorosa
entre um jovem adolescente e uma amiga dos pais, com o dobro da idade dele,
pertencente a burguesia limenha. A este nível, O Horto da Minha Amada
apresenta alguns trechos modelares de literatura erótica, principalmente tendo
em consideração como o autor concilia a sua já proverbial ironia com a
delicadeza com que reforça o registo sensual dos jogos amorosos entre uma
mulher, possuindo o pleno domínio do seu corpo e das artes amatórias, e um
jovem que tacteia, procurando superar a sua desatenção e ingenuidade, na
resposta à pulsão do seu desejo. Mas esta trama permite também, através da
descrição das reacções sociais a esta relação não-convencional e inconveniente,
tipificar, de modo bem humorado, o arrivismo provinciano de alguma pequena burguesia
peruana que procura, através da convenção matrimonial, ascender socialmente e
os limites existênciais de uma burguesia “aristocratizada”, genuinamente
sul-americana, que, manietada no seu estatuto, não consegue compreender as
subliminares mudanças de sentido nos sentimentos e nos afectos.
Publicado no Público
em 2005.
Título: A Vida Exagerada de Martín Romaña
Autor: Alfredo Bryce Echenique
Tradução: Miranda das Neves
Editor: Teorema
Ano: 2005
498 págs., 28,50 €
Título: O Horto
da Minha Amada
Autor: Alfredo Bryce Echenique
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2005
288 págs., 16,65 €
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