sábado, 18 de julho de 2009

JULIAN BARNES


O FIM DAS FRONTEIRAS


Nos finais da década de 70, quando, com uma nova geração, se percebeu que se formulava uma renovação das estratégias narrativas da literatura inglesa, tornou-se também claro que, o que unia os seus principais mentores, era - como acontece muitas vezes com o aparecimento de novas gerações literárias - o que rejeitavam: certo tipo de realismo, mais ou menos satírico, em que se tipificava, em registo de crónica de costumes, ambientes e situações sociais ou, por outro lado, certos métodos narrativos de cariz experimental e enfeudados a formulações teóricas de origem marcadamente académica. É certo que quase todos se mantiveram na órbita de um registo realista; mas procurando incutir-lhe um “matiz” que o transfigurava: ou uma intensa carga simbólica (Graham Swift), ou uma dimensão fantasmática (Ian McEwan), ou através do reforço do picarismo patético das situações até transformar as personagens em bufões histriónicos e impotentes perante as vertiginosas contradições da actual sociedade (Martin Amis), ou, por fim, numa reutilização puramente paródica dos modelos clássicos do realismo (Julian Barnes).

Do Outro Lado do Canal, a obra agora publicada deste último autor, é o seu primeiro livro de contos e, em termos estilísticos, desenvolve o percurso traçado por romances como O Papagaio de Flaubert e Uma História do Mundo em Dez Capítulos e Meio. É compreensível, no seu título, o fio condutor dos contos desta colectânea: o autor pretende, situando-os em diversos períodos históricos, expressar uma visão de “grande empatia” pelas relações civilizacionais anglo-francesas e, muito em particular, pelo povo francês. Não admira a motivação deste livro, já que é facilmente constatável que Julian Barnes é, de todos os autores ingleses contemporâneos, o que mais reconhece na sua obra o legado cultural e literário da França.

Porém, a recente publicação de um novo romance deste autor, intitulado England, England, permite perceber que estas duas obras estabelecem um conjunto com um determinado sentido estratégico: o de revelar ao leitor como um “olhar” literário, oriundo da mesma entidade/autor e orientado para dois lugares civilizacionais distintos, se define nos seus contornos. Ou, por outras palavras: como é que a literatura se pode definir como uma forma de “saber” específica. No fundo - e desculpe-se a ironia - uma contribuição prática para uma das mais constantes interrogações da teoria literária.

No mosaico destes contos destaca-se, antes do mais, a maestria de Julian Barnes em recriar, em redor de personagens muito distintas e peculiares, ambiências históricas e sociais bem diversificadas e, por outro lado, em orquestrá-los segundo tonalidades que permitam estabelecer, no todo da colectânea, um conjunto polifónico que vai desde o humor (de que o autor é um exímio artífice) ao nostálgico, do sentimental ao absurdamente trágico. Recordo, a título de exemplo somente, o conto Experiência, de um delicioso humor, e onde o autor confronta o bom-senso (um pouco hipócrita) dos ingleses com o despudor vanguardista de certa cultura francesa do princípio do século, demonstrando, de uma forma quase hilariante, como a aproximação da cultura inglesa ao movimento surrealista francês só poderia estabelecer-se no registo do equívoco; ou ainda o conto Para Todo o Sempre, onde uma velha senhora inglesa, irmã de um jovem que morreu na I Guerra Mundial, visita anualmente, de uma forma metódica e exaustiva, os cemitérios militares que estão dispersos por toda a França, vigiando obsessivamente o gradual alastramento do “grande esquecimento” que, sem sombra de dúvida, irá desfigurar numa nova paisagem esses sinais públicos do sofrimento de uma geração.

Nada há de novo nesta ambição de Julian Barnes em tentar delimitar os parâmetros civilizacionais de um povo. E, por outro lado, provoca sempre, em quem se confronta com essas tentativas, uma interrogação sobre a sua eficácia ou operacionalidade cognitiva. Talvez, por isso, um dos aspectos mais estimulantes de Do Outro Lado do Canal seja a ideia de que se situa na Mancha a fronteira entre duas Europas civilizacionalmente distintas (a do Norte e a do Sul), tendo a Inglaterra e a França como seus guardas-avançados. Nesse sentido, percebe-se o valor simbólico que Julian Barnes pertende transmitir ao túnel ferroviário que liga os dois países: ele comprova que estas diferenças começam a ter um carácter arqueológico e que toda uma prolongada época histórica se esfuma no tempo, levando com ela o prazer sedutor da descoberta de um outro. Daí, talvez, a urgência que o autor sentiu na redacção desta colectânea.

(Publicado no “Público” em 1999)


Título: Do Outro Lado do Canal
Autor: Julian Barnes
Tradutor: Luísa Feijó e Maria João Delgado
Editor: Asa
Ano: 1999
157 págs., € 11,00