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sábado, 30 de julho de 2016

ALEJO CARPENTIER

 



TER OUTRO CONTINENTE

 


Se existe uma constante, mais ou menos explícita, na obra de Alejo Carpentier, e provavelmente em toda a literatura latino-americana, essa é, sem dúvida, a problematização das relações culturais entre a Europa e a América, acompanhada pela tentativa de decifração da especificidade cultural do novo continente. Natural que assim seja, já que o território americano se tornou, em termos históricos, o espaço onde, de forma mais eficaz, actuou o imperialismo cultural europeu, ao ponto de este se afirmar como uma “presença em excesso”, deformante, obrigando as formações culturais indígenas e africanas a subsistir como um plasma subterrâneo, golfando, quase por milagre, aqui e além, pelas brechas da cultura dominante.
 
Em Os Passos Perdidos, O Século das Luzes e O Recurso do Método, as obras onde Alejo Carpentier mais desenvolveu o seu “realismo mágico”, percebemos que a sua preocupação maior foi a de, enformado pelos valores e instrumentos culturais europeus, “descobrir uma nova territorialidade cultural”.
 
Neste sentido, A Harpa e a Sombra, o último romance escrito pelo autor cubano e agora traduzido, aparece como uma espécie de testamento literário, uma vez que, ao reformular o mito fundador de Cristóvão Colombo, Alejo Carpentier vai tentar identificar o sentido da própria “intelligentsia” latino-americana. Por isso mesmo, é uma obra fascinante pelo que reflecte sobre o posicionamento deste escritor, inegavelmente determinante, para os actuais percursos da literatura latino-americana.

 
A obra divide-se em três partes (“A Harpa”, “A Mão” e “A Sombra”), centrando-se a primeira na reflexão de Pio IX sobre a religiosidade na América do Sul e sobre a pertinência (e utilidade) da proposta de beatificação de Colombo; a segunda, em que o próprio Colombo é o narrador, recria o seu exame de consciência, às portas da morte, enquanto espera pela chegada do seu derradeiro confessor; e a terceira narra, de acordo com os princípios do realismo mágico, o julgamento final da Sacra Congregação dos Ritos, assistido pelo espírito invisível do navegante.

 
A estrutura do romance realça que o próprio Colombo é já um transfuga ao território cultural europeu (aqui demarcado pela ortodoxia da Igreja) pela sua condição de viajante (é um membro da Sacra Congregação que afirma que não existe nenhum santo marinheiro), de navegante obcecado pela descoberta de outro território. De facto, o seu desejo de outro território é consonante com a afirmação do seu desejo sexual que o leva constantemente a “pecar”, isto é, a arredar-se da norma europeia (a Igreja), desterritorializando-se. A glória que Colombo alveja é resultante de se libertar do espaço europeu, ou por outras palavras, de si mesmo, como qualquer amante.

 
É, por isso, um homem já expatriado que procura a América. E tal como através do corpo da mulher se tenta descobrir a sua vibração oculta, o que Colombo quer descobrir no Novo Mundo é o seu recôndito, aquilo que é a razão de ser da sua viagem: o ouro, a Grande Mina que lhe escapa sempre, a alma de um território que não chega a descobrir.

 
E o que Isabel a Católica procura recolher, quando deita Colombo no seu leito real, é a força vital de um território que é, ao mesmo tempo, o do navegante e o de um novo continente. Como Colombo não lha consegue dar, este perde duplamente: o amor da Rainha e a possibilidade de beatificação pela Igreja.

 
A glória de Colombo é, assim, apenas a da sua impotência, a do seu erro: impossibilitado de possuir a América (até de a nomear...), de conhecer o Outro, afunda-se em si mesmo, sem cá nem lá.
 
Ora é esta situação de homem sem eira nem beira que faz com que Colombo corporize o sentido do intelectual latino-americano, visto que, sendo o estatuto deste originário de um outro mundo, vive numa realidade que tem de irremediavelmente desconhecer por desadequação conceptual e instrumental. E a sua glória, tal como a de Colombo, é a de procurar sempre aquilo que lhe fugirá. Mas não será esta também a situação der qualquer criador?



Publicado no Expresso em 1988.


(Foto do Autor de Joseph Fabry).

 
 
 

Título: A Harpa e a Sombra
Autor: Alejo Carpentier
Tradutor: Daniel Gonçalves
Editor: Caminho
Ano: 1988
157 págs., esg.

 

 



quinta-feira, 7 de julho de 2016

SEVERO SARDUY

 
 
 
 
O TRAVESTISMO DA REALIDADE
 
Durante a ditadura de Fulgêncio Batista, fortemente sustentada pelos Estados Unidos, Cuba viveu um período de grande efervescência intelectual. Como aconteceu em tantas outras regiões e países, o descontentamento com a situação socio-económica e com a exploração desenfreada norte-americana impeliu os intelectuais cubanos para um intenso debate ideológico, com inevitáveis reflexos políticos e estéticos. A revolução castrista - que, na sua fase inicial, foi bastante apoiada pelas massas populares e pelos intelectuais - permitiu o pleno florescimento deste viveiro, com manifestações significativas nos campos da música, das artes plásticas e da literatura. Foi nesta altura que, no domínio da narrativa, se afirmaram, com as suas obras-mestras, autores que já antes tinham publicado, como é o caso de Virgilio Piñera, Alejo Carpentier e José Lezama Lima, marcando de um modo decisivo a posterior produção literária cubana, e desabrochou uma nova geração de ficcionistas em que se destacaram autores como Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas e Severo Sarduy.  
 
Severo Sarduy nasce em 1937, em Camarguey. É nesta cidade que faz os seus primeiros estudos e, ainda muito novo, publica os primeiros poemas. Em 1956, desloca-se para Havana, para estudar Medicina. Porém, o ditador Fulgêncio Batista, em consequência da contestação estudantil, resolve encerrar a Universidade, e Severo Sarduy aproveita esta circunstância para se dedicar à actividade literária com mais intensidade, colaborando em diversas revistas, e ao estudo da arte cubana e latino-americana.
 
Com o triunfo da revolução, Severo Sarduy participa activamente na vida intelectual, colaborando nos jornais “Diario Libre” e “Lunes de Revolucion” e publicando os seus primeiros contos. Em 1960, ganha uma bolsa para vir estudar História de Arte para a Europa, fixando-se de início em Madrid. Passados poucos meses, no entanto, vai para Paris, para estudar na Escola do Louvre e na Sorbonne. Integra-se rapidamente na vida intelectual francesa, estabelecendo relações de amizade com François Wahl, Roland Barthes, Jacques Lacan e Philippe Sollers. Em 1965, participa como colaborador na prestigiada revista “Tel Quel”. Ao mesmo tempo, desenvolve uma ampla colaboração em alguns dos jornais e revistas literárias latino-americanas (“Mundo Nuevo”, “Plural”, “Sur”, etc.), e integra, como conselheiro editorial, a equipa de Editions du Seuil, contribuindo, dessa forma, para o “boom” da literatura latino-americana em França (segundo consta, foi por sua indicação que se publicou Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquez naquela editora).
 
Em 1963, em Barcelona, é editado a sua primeira narrativa, Gestos, onde já se tornavam visíveis alguns aspectos característicos da sua obra: uma forte componente experimental, um enorme interesse por ambiências marginais (para o que não deve ser estranho a sua mestiçagem chino-afro-ameríndia) e um acentuado fascínio pelo “kitsch”. É, contudo, com a sua segunda obra narrativa, De donde son los cantantes, que obtem reconhecimento como narrador nos meios intelectuais latino-americano e francês (no próprio ano da sua edição em castelhano, 1967, é traduzida para francês e editada). De seguida, Severo Sarduy orienta-se para a poesia, publicando três livros. Mas é com a publicação da sua terceira narrativa, Cobra (1972), agora editada no nosso país, e com o ensaio intitulado Barroco (1974), que ficam definidos com rigor os parâmetros estéticos e teóricos da obra de Severo Sarduy. As suas obras posteriores (onde se destaca La simulacion, Colibri e Cocuyo) vão meramente aprofundar e desenvolver os parâmetros já definidos. Em 1993, morre em Paris com a peste do nosso tempo, a SIDA.
 
Pode considerar-se que um dos objectivos fundamentais da obra de Severo Sarduy é a tentativa de reabilitação na contemporâneidade dos princípios estéticos do barroco, respeitando uma tradição que vem de Quevedo e Gongora até aos seus conterrâneos (e predecessores) Carpentier e Lezama Lima. Mas, ao mesmo tempo, o autor, como expõe na sua obra Barroco, procura amplificar o sentido desta corrente estética, redefinindo-a como uma cosmologia “artística”, isto é, um simulacro do cosmos. Não admira, por isso, que nas suas obras narrativas não exista uma intenção de se aproximar a qualquer real, mas a sua ocultação por um outro que pretende ser a transfiguração do anterior (saliente-se que é esta postura que origina o seu fascínio erótico, bem espelhado em toda a sua obra, pela transsexualidade, as “drag queens” e o travestismo): a narrativa torna-se, assim, uma “mecânica”, controlada pelo homem, que “mascara” e, dessa forma, ao mesmo tempo desvenda, recria e interpreta a realidade. Neste sentido, Severo Sarduy preocupa-se em instaurar uma nova unicidade interpretativa, o que determina, segundo ele, a desconstrução da presente retórica discursiva e, em paralelo, a fusão de todas as tradições doutrinais e/ou cosmológicas. Por fim, as suas personagens afirmam-se sempre como arquétipos, mitos, encarnações de valores e doutrinas, duplos metamorfoseados, na aparência etéreos e intemporais, de quaisquer eventuais personagens que, retiradas do quotidiano, não passam de simples larvas das que a produção narrativa revela.
 
Publicado como introdução à edição portuguesa de Cobra em 2004.
 
 
Título: Cobra
Autor: Severo Sarduy
Tradutores: Margarida Amado e Pedro Santa María de Abreu
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2004
240 págs., 15,00 €
 

 

 


terça-feira, 8 de setembro de 2015

ZOÉ VALDÉS



 
 


CUBA, ANOS NOVENTA
 
A Cuba pós-queda do Muro de Berlim é um dos casos que mais tem contribuído nos dias de hoje para uma certa turbulência nos campos ideológicos. Para alguns sectores de esquerda, representa o mais perfeito exemplo dos perigos sociais que pode originar a prática política de discursos utopistas, apontando-a como uma fortaleza de miséria, de repressão “popular”, de mediocridade quotidiana, de rasteirismo cultural. Por isso, é considerada uma criminosa aberração, só explicável pela obstinação tirânica de Fidel Castro e de alguns títeres que o apoiam. Paralelamente, certos sectores mais conservadores dessa mesma esquerda enaltecem Cuba pela sua fidelidade a um modelo social e político, pela sua resistência a uma “ordem universal” estabelecida pelos Estados Unidos, pela coragem e criatividade com que afronta um “bloqueio” que pretende vergá-la a aceitar a “normalidade” capitalista. Para cúmulo de hipocrisia, a própria situação de estagnação económica - que se considera resultante de um regime comunista imobilista - voltou a fazer de Cuba, entre o mundo ocidental, um dos locais importantes do circuito turístico internacional: hoje, procura-se nesta ilha, para além das praias tropicais, da sensualidade e da “salsa”, a Cuba de Hemingway que ainda, de um modo lamentável, subsiste. Além disso, o próprio mundo capitalista transformou o seu herói nacional, Che Guevara, que apenas pretendeu ser um obstinado guerrilheiro do comunismo internacional, numa figura de charme, numa espécie de mártir romântico e puro que dá, com a sua imagem, um suave toque “trágico” no universo sedutor da moda. No meio destas contradições, encontra-se um povo que é forçado a viver na total escassez, em nome de “futuros radiosos”, ou a fugir desesperadamente em balsas feitas de pneus e pedaços de madeira, vivendo décadas e décadas de exílio, mas sempre obcecado por esse “buraco negro” que é a “sua” Cuba.
 
E, entretanto, a literatura? Como se encontra a soberba literatura de Piñera, de Lezama Lima, de Carpentier? Ter-se-á tornado toda trânsfuga como a de Cabrera Infante e de Reinaldo Arenas? Por causa dos “bloqueios”, interiores ou exteriores, ou talvez não, muito pouco se conhece da literatura que hoje se faz em Cuba. Os poucos casos de autores que se conhecem no estrangeiro são os que, em confronto com o regime castrista, se exilaram. É o caso recente de Zoé Valdés, uma autora que obteve algum sucesso em França e, em particular, em Espanha (o seu último romance foi finalista do Prémio Planeta), e de quem agora a Ed. Teorema publicou o seu primeiro romance, O Nada Quotidiano.
 
Costuma dizer-se que, com bons sentimentos, não se faz boa literatura. É caso para se afirmar que também é muito difícil fazer boa literatura com maus sentimentos. E o que ressalta, de imediato, neste romance de Zoé Valdés é uma enorme amargura por partilhar o destino de um povo que, pelo menos parte dele, sente que foi condenado a viver abaixo dos limites mínimos da dignidade. É certo que também é esse sentimento que foi sobressaindo cada vez mais na obra de um Guillermo Cabrera Infante; mas, neste caso, estamos em presença de um genial malabarista da palavra que conseguiu “assimilar” em profundidade - e transfigurar em ambiências de uma magia desesperada - a tragédia de um povo que é castrado, dia após dia, na sua alegria e criatividade. Não é esse o caso, pelo menos nesta obra, de Zoé Valdés.
 
Não se entenda com isto que não existam méritos significativos em O Nada Quotidiano. A obra revela inegáveis potencialidades estilísticas da autora, principalmente pela capacidade de utilização de diversas matizes, que vão desde o aproveitamento de um registo muito oral, que consegue dar uma toada musical à frase, à manifestação, muitas vezes conseguida, de uma sentida exaltação lírica ou o uso do humor como forma de dissecação da mediocridade de situações tanto pessoais como sociais. Além disso, existe uma inequívoca coragem da autora em ultrapassar, com uma linguagem desempoeirada, mas bem ajustada ao clima da obra, a convencionalidade de certas situações, expondo-se de uma forma arrojada e íntegra. O Nada Quotidiano revela, portanto, fluidez de escrita; e a irregularidade, que a este nível também se detecta, é muito resultante daquilo que se chama uma “mão fácil” e à existência, em diversas passagens, de uma notória incontinência verbal. 
 
O romance, confessadamente autobiográfico, gira em redor dos amores e desamores de uma mulher - a quem o pai deu o nome de Pátria porque nasceu na sequência de um “meeting” do Primeiro de Maio - com o marido e o amante, o Traidor e o Niilista, e nas relações de cumplicidade com dois amigos exilados. Porém, muito mais importante do que esta trama, que é quase só esboçada no romance, é o retrato da presença abusiva do Estado num quotidiano já de si sofredor de enlouquecedoras carências de tudo. Um Estado que, em nome da justiça social, actua com uma arbitrária injustiça, reprimindo, espoliando, disseminando um medo larvar ou alimentando hipócritas cumplicidades em troca de medíocres benefícios, isto é, asfixiando de todas as formas a vida das populações. Um Estado que, além disso, nas áreas onde, de um modo legítimo deveria intervir, o não faz por estar totalmente depauperado, iludindo as pessoas com falsas expectativas ou com actividades de “fachada”. Neste aspecto, é bem exemplar a imagem que se transmite da Casa da Cultura, uma instituição que teve uma particular importância cultural em todo o mundo latino-americano nas décadas de sessenta e setenta, e que, hoje, parece só subsistir para dar no exterior uma ténue ideia de que o Estado cubano ainda tem algum respeito pela cultura.
 
Não ficam dúvidas de que existe uma dimensão tragicamente vivida nas inúmeras circunstâncias de uma miséria absurda em que as personagens de O Nada Quotidiano se enleiam. Mas talvez seja essa dimensão, ainda demasiado dolorosa na memória da autora, que a tenha condicionado a não superar a tónica de um simples libelo acusatório contra o regime castrista, a que se resume, de facto, este romance. No entanto, é justo afirmar-se que O Nada Quotidiano, sem ser uma grande obra literária, faz pressentir uma autora a quem será interessante observar o percurso.
 
Deve ser assinalada, por fim, a muito boa qualidade da tradução.
                                                                      
Publicado no Público em 1997
 
Título: O Nada Quotidiano
Autor: Zoé Valdés
Tradução: Serafim Ferreira
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1997
167 págs., esg.
 
 
    


sexta-feira, 1 de maio de 2009

ELISEO ALBERTO


O IRREMEDEÁVEL EXÍLIO

Desde há algumas décadas que a literatura cubana, em consequência de confrontos ideológicos com o poder castrista, de perseguições políticas e da presença constante da censura, é marcada por uma expressiva diáspora dos seus criadores - e este facto, apesar da sua dimensão obscurantista e sinistra, dá-lhe um estatuto peculiar no quadro da literatura contemporânea. Alguns dos escritores cubanos com maior irradiação internacional (recordo, a título de exemplo, os casos de Guillermo Cabrera Infante, do malogrado Reinaldo Arenas ou de Zoe Valdès) viveram ou vivem no exílio (no México, na Europa, nos Estados Unidos), sofrendo amargamente a circunstância de se encontrarem afastados do universo sociocultural que motiva a sua produção literária; mas, em paralelo, têm obtido inequívocas vantagens, em termos de projecção, por se radicarem na órbita dos grandes centros editoriais. Seja como for, hoje existe uma geração de escritores oriundos de Cuba, alguns deles integrando uma segunda geração a viver no exílio, que já abandonaram o espanhol como veículo de expressão literária (é o caso de alguns escritores residentes no E.U.A., como Cristina Gracia) ou que simplesmente abdicaram da ambiência da ilha das Caraíbas como temática dos seus livros. Porém - e um pouco a dar razão aos que afirmam que as dificuldades sociopolíticas são sempre favoráveis ao florescimento da arte narrativa -, a literatura cubana vive hoje um momento de significativa efervescência, ao ponto de haver quem considere que se está em presença de um autêntico “boom”.

Integra o plantel destes escritores cubanos no exílio o romancista Eliseo Alberto, de quem foi agora publicado no nosso país o romance A Fábula de José, e que se revela, mesmo para quem acompanha com algum interesse o percurso da literatura de Cuba, uma agradável descoberta. Contudo, Eliseo Alberto não é um recém-chegado à vida cultural cubana. Este autor, filho de um poeta e novelista de grande craveira, Eliseo Diego, já tinha publicado alguns livros de poesia, quando, como guionista e argumentista se tornou conhecido (recordo, por exemplo, o filme Guantanamera de Tomás Gutiérrez Alea). Já nesta primeira fase, o escritor teve alguns problemas com o poder político castrista; mas foi com a sua obra Informe Contra Mi Mesmo (onde narra como lhe foi solicitado pelos serviços de segurança do Estado que fizesse um relatório sobre as actividades políticas e culturais da sua família e, em particular, do seu pai) que se efectuou a ruptura inevitável. Depois, em 1998, atinge a consagração crítica e pública, com o romance Caracol Beach, ao obter o Prémio Alfaguara (um prestigiado prémio para originais da editora espanhola, aberto a todo o universo linguístico castelhano), ganho “ex-aequo” com uma obra do escritor Sergio Ramirez, ex-presidente da Nicarágua.

A Fábula de José parte de uma ideia que, segundo o autor, durante muito tempo amadureceu, e que nos parece, de princípio, um pouco frouxa e relativamente fácil: a história de um homem, um jovem emigrante cubano, radicado nos Estados Unidos, preso por assassínio, que é exposto numa jaula de um zoo, como representante de uma espécie de primata muito perigosa. Percebe-se, por esta síntese, que a acção do romance está contextualizada na comunidade cubana emigrada nos E.U.A., funcionando esta comunidade como uma espécie de universo “fechado” faulkneriano e com um valor metafórico que em muito ultrapassa esse contexto.

De facto, como o título indica, este romance é uma fábula. E, como todas as fábulas, a sua localização é pouco relevante. Em síntese, pode afirmar-se que esta fábula, de certo modo, ambiciona demonstrar que o sentido da existência do homem é libertar-se do seu circunstancialismo, é tentar conquistar uma dignidade que ilumine a opacidade do seu corpo, conseguindo, ao mesmo tempo, o reconhecimento dos outros como ser. O que José, a personagem principal do romance de Eliseo Alberto, descobre na sua jaula, primeiro, com uma feroz resignação, depois, com a serena ansiedade de quem busca descobrir a fraternidade e o amor, é que, em todo o lado, é sempre possível construir um espaço de reserva onde irrompa uma irredutível liberdade. E que esta é, antes do mais, a expressiva reminiscência de um paraíso perdido, onde a existência ainda não está contaminada por uma absurda e radical solidão.

É evidente que pode ver-se, no percurso da personagem principal de A Fábula de José, uma metáfora da necessidade de fuga, de reconstruir no exílio uma existência livre e digna, por parte do povo cubano. Seguramente que o romance terá também este sentido. Mas o seu mérito primordial é conseguir construir uma narrativa que supera de forma inequívoca esta perspectiva mais circunstancial.

Refira-se ainda que A Fábula de José, mesmo descaindo, aqui e além, em termos estilísticos, para os modelos com que se tipificou, de uma forma redutora, a literatura da América hispânica da últimas décadas (em particular, aquilo que se tem chamado “realismo fantástico”), tem uma invulgar qualidade poética, realçando-se a originalidade de muitas situações, o humor e a coloquialidade inteligente dos diálogos, mas, em especial, o excelente friso de personagens secundárias, arquitectadas com a intensidade de quem sabe que existe, no anonimato da vida, uma terrível, e por vezes dolorosa, magnificência. Por fim, é de toda a justiça salientar a exemplar tradução deste romance, porque é, sem sombra de dúvida, um dos atractivos desta edição.

Publicado no Público em 2001.

Título: A Fábula de José
Autor: Eliseo Alberto
Tradutor: Maria do Carmo Abreu
Editor: Ulisseia
Ano: 2001
181 págs., € 9,95