sexta-feira, 29 de junho de 2012

JESÚS MONCADA



PATRIMÓNIOS INCÓMODOS



Diversas teorias literárias coincidem em caracterizar a ficção como a arte da narração do tempo. Segundo elas, o estímulo produtor essencial seria a consciência dramática da passagem do tempo (ou, como dirá o poeta, da nossa passagem por ele). A expressão narrativa transmitiria ao seu criador uma ilusão demiúrgica de domínio, configurada em duas opções estéticas aparentemente distintas: ou o autor, segundo determinadas técnicas retóricas, pretende reordenar o tempo, de forma a expressar, intensificadamente, a consciência daquela passagem, ou a recriá-lo, de molde a que o leitor reconheça a(s) sua(s) perca(s). De qualquer modo, a “re-inscrição” da memória individual, real ou forjada, na arte narrativa, incutiria ao leitor uma dupla emoção: a da absoluta relativização da sua experiência e a da existência de um património comum. Seria, por último, esta dupla emoção que transformaria a arte narrativa num excepcional instrumento de aprendizagem democrática.

É quase inevitável lembrar estas teorias, que associam arte narrativa e memória, ao ler o romance Caminho de Sirga de Jesús Moncada – um autor catalão que começou a publicar nos princípios dos anos oitenta, mas que só conseguiu impor-se nas letras do país vizinho com este romance, publicado na língua original em 1989.

Os objectivos do romance são simples e claros: tendo nascido numa povoação que, em 1971, foi arrasada e alagada por uma barragem erguida no Ebro, o autor resolveu “reconstruir” a memória dos seus conterrâneos, dispersos ou mortos. Destruído o património físico, Jesús Moncada levanta o património dos códigos, das cumplicidades e das histórias, assumindo que os destinos são o património imprescindível para uma comunidade, mesmo quando deixou de ter existência real. Por isso, Caminho de Sirga é uma obra de fundo nostálgico e até trágico: constrói-se este romance contra a corrente do esquecimento e da morte, sabendo, no entanto, que ela tudo arrastará.

Contudo, como o autor salienta na nota inicial, este romance não é uma obra etnográfica. Caminho de Sirga tem uma estratégia narrativa complexa, que parte do presente - o gradual desmoronamento da povoação - para o passado, aproveitando-se o testemunho “vivido” de um “vizinho” que esteve no centro de um acontecimento essencial para a “correcção” da crónica, feita de mistérios e prenúncios, que pretende consensualmente explicar o destino de todos. A partir de reminiscências suscitadas pela destruição de sinais físicos do passado (um carro, um mural, um barco, um achado de ossos humanos, etc.) e cruzando lembranças de gentes de todas as classes sociais, o fio narrativo das memórias, de capítulo em capítulo, vai aproximando-se do presente; por fim, é só o omnisciente narrador que fica senhor do património colectivo perante a povoação devastada e deserta.

Caminho de Sirga é um romance de inúmeras histórias. Histórias contadas num estilo muito trabalhado e ponderado e num registo bem diversificado - que vai desde a farsa ao trágico, do fantástico ao do desencanto magoado. Histórias de mineiros, de barqueiros, de “caballeros”, gente de um universo rústico já desaparecido, mas que, com as suas vidas, erigiu um inesquecível repertório de paixões e afectos clandestinos, de fomes e luxúrias, de festas populares e guerras fratricidas, bem marcado pela história social e política da Espanha deste século. Histórias contadas por um narrador solidário e que, por isso, toma claramente partido e escolhe os bons e os maus, os cúmplices e os inimigos.

Quando os “vizinhos”, que não migraram ou não morreram, se mudam para a “vila nova”, sabem que, no resto dos seus dias, serão espectros de um universo sem referências. E que o futuro se fará - sobre a poeira que deles ficar. O leitor percebe então que a povoação de Mequinensa, recriada por Jesús Moncada, funciona com um valor simbólico da sociedade espanhola e que o seu percurso se identifica com aquele que a Espanha de hoje assumiu para sobreviver.

É estranho (e triste) o destino de um país que sente necessidade de alagar no esquecimento o seu passado recente como forma de encarar o futuro; mas é excelente o momento de uma literatura que permite o aparecimento de um romance de resistência como este.


Publicado no Público em 1992.




Título: Caminho de Sirga
Autor: Jesús Moncada
Tradução do catalão: Artur Guerra
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
248 págs., € 14,07





quinta-feira, 21 de junho de 2012

CRISTINA GARCÍA



DESTROÇOS


Deste lado do Atlântico, continua a manter-se, de uma forma muito estranha e tenaz, uma imagem civilizacional dos Estados Unidos de uma “opaca uniformidade”: é a força irradiante daquilo a que os próprios americanos chamam cultura “square”, típica da classe média branca, que tem servido de suporte ideológico ao poder administrativo e político. No entanto, segundo os analistas sociais americanos, esta cultura “square” está em notória desagregação ou a sofrer uma rápida mutação, ao ponto de se tornar irreconhecível e de perder capacidade de intervenção na formação da opinião pública; e, se exceptuarmos as vastas zonas rurais, mas de baixa densidade demográfica, ela já pouca expressão tem ao nível do quotidiano das populações. De facto, a literatura já tinha revelado (mais do que, é certo, qualquer outra manifestação artística), a partir do pós-guerra, que a cultura americana estava enraizada num complexo mosaico social e regional sem uma complementaridade muito legível (a não ser, como é óbvio, ao nível linguístico) e que este facto iria tornar-se inevitavelmente visível a médio prazo. Ora, a partir dos anos oitenta, com a conquista de espaço público por um número ainda mais diversificado de minorias, a literatura americana afirmou-se como a expressão de um vasto “continente”, albergando formações populacionais de culturas muito heteróclitas e, por isso mesmo, com capítulos bem definidos. Repare-se no que sucede hoje: depois da afirmação das literaturas “chicana” e índia (Rudolfo Anaya, Sandra Cisneros, Louise Erdrich e Sherman Alexie, por exemplo), foi a vez das diversas minorias culturais das Caraíbas (Oscar Hijuelos, Jamaica Kincaid e Junot Díaz) e, ainda mais recentemente, da população cubana exilada (Cristina García). E também não se poderá considerar a escritora Katherine Vaz, agora traduzida no nosso país, como a expressão literária da comunidade luso-americana?

Esta constatação vem a propósito da recente edição do último romance de Cristina García, As Irmãs Agüero. Comecemos pelos seus aspectos menos interessantes: o romance procura, em termos estilísticos, efectuar uma espécie de combinatória entre o realismo mágico e o chamado realismo americano (alguém saberá hoje o que isto é?), o que, tendo em conta a origem da autora, poderá ser uma solução literária, talvez culturalmente aceitável, mas que parecerá sempre “fácil e comercial”; além disso, a “ideia base” em que assenta a narrativa é também demasiado óbvia: duas irmãs, que o destino separou, levando uma para os Estados Unidos e deixando outra em Cuba (representando, no fundo, a dupla realidade da população cubana), mas que possuem em comum a obsessão pelo que intrigantemente sucedeu “de facto” no percurso dos seus antepassados. Entrecruzando passagens de um diário paterno - descoberto por uma das filhas, muitos anos depois, na quinta de um familiar a quem o pai o entregara, antes de se suicidar - com a narração das situações vividas pelas duas irmãs (e pelos seus filhos) na busca de “resolverem” um passado traumatizante, As Irmãs Agüero pretende estabelecer um amplo fresco sobre o percurso atribulado da nação cubana durante este século.

De certo modo, pode dizer-se que As Irmãs Agüero é uma saga familiar. Mas uma saga com características particulares, visto que a imagem da família, que é transmitida através das suas personagens, parece a de uma fotografia rasgada, como se, em Cuba, apenas pudessem existir “destroços” de famílias. De facto, nas famílias que se sucedem neste romance há sempre uma entidade perecível ou volátil (habitualmente a masculina) e a formação das personagens aparece realizada na carência de um dos pólos. Se exceptuarmos o filho homossexual de uma das irmãs, Constância, todas as personagens determinantes desta narrativa são mulheres com questões essenciais - para o seu equilíbrio emocional e afectivo - a esclarecer sobre a identidade do pai. O pai - mesmo aquele que deixa o diário - é sempre uma entidade sombria, ou incógnita, ou que alguém decide que não “deve” ser conhecida, ou ainda demasiado exposta como “herói” e, por conseguinte, ocultando a sua real face humana. Seja como for, o modo como essa ausência se constitui parece condicionar o olhar que as personagens têm do seu corpo e “orientar” o seu desejo sexual. Quer isto dizer que Cristina García procura correlacionar a estratégia que o desejo sexual assume nas personagens - e é sabido como ela é determinante para a definição da própria identidade - com a forma como se concretizou a ausência do pai.

É evidente que se torna fácil associar o passado (com o seu cortejo de destroços familiares, de pais ausentes) destas personagens femininas - que, de certo modo, tipificam as mulheres cubanas nos dias de hoje - a uma certa imagem da “pátria cubana”. De facto, parece que Cristina García, subliminarmente, tem tendência para fazer esta associação: Fidel Castro apareceria assim como aquele que, pela sua simples presença, transformaria Cuba numa realidade ausente, num buraco negro que “destroçaria” os seus filhos, desequilibrando-os em termos emocionais e tornando-os incapazes de se constituírem em família. Não é por acaso que Reina, a irmã que fica em Cuba e que é a única personagem que acredita de início na Revolução, resolve libertar-se da imagem do “pai legal”, lançando ao mar a espingarda com que ele matara (por acidente?) a sua mãe e abandonando Cuba, para se juntar aos exilados em Miami.

Sem se estar em presença de um romance de grande criatividade, pode, contudo, afirmar-se que esta obra de Cristina Garcia revela qualidade literária, em particular pela segurança estilística, pelo profissionalismo revelado na construção de um ritmo narrativo estimulante e, ao mesmo tempo, pela sinuosidade elaborada com que vai erguendo as diversas personagens.

Publicado no Público em 1998.


Título: As Irmãs Agüero
Autor: Cristina García
Tradutor: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editor: Difel
Ano: 1998
279 págs., € 11,75





quinta-feira, 14 de junho de 2012

THOMAS MANN 1



O PERFUME DA BURGUESIA



Em 1909, quando Thomas Mann publicou o seu segundo romance, este Sua Alteza Real agora traduzido e editado no nosso país, já era reconhecido, por causa de Os Buddenbrooks, como o romancista da decadência (imagem que se irá ainda reforçar com o aparecimento, em 1913, de Morte em Veneza) e, ao mesmo tempo, como um analista dos valores, potencialidades e limites do “pensamento burguês”.

Esta caracterização do autor, que acompanhou toda a sua longa carreira literária, tinha, no entanto, nesta época inicial da sua obra, uma muito maior pertinência. Nesta altura, evidenciava-se de facto, na reflexão de Thomas Mann, a preocupação em compreender os moldes como se processava a passagem de testemunho entre as classes que tiveram a inevitabilidade histórica da liderança social e política.

Percebe-se, assim, melhor qual foi um dos objectivos de Thomas Mann ao redigir Sua Alteza Real: o de elaborar uma obra que funcionasse como contraponto (e complemento) a Os Buddenbrooks. Enquanto esta obra é uma ampla saga, construída segundo o mais perfeito modelo do romance oitocentista, da decrepitude e do esgotamento social de uma entidade (a família Buddenbrook), Thomas Mann vai escrever, com Sua Alteza Real, uma parábola optimista, em jeito de “conto de fadas”, que visa esclarecer qual o contributo essencial da burguesia para a revitalização do tecido social e político de regimes que, nascidos com a implantação dos princípios liberais, vão subsistir até à I Guerra Mundial e cujos exemplos mais típicos são a Alemanha kaiseriana e o Império Austro-Húngaro.

No entanto, foi este tom ligeiro, de comédia suavemente humorada, que condenou de uma forma irremediável este romance: não só, à altura da sua publicação, Sua Alteza Real teve um tremendo insucesso (provocando no próprio autor uma crise de confiança que o levou a duvidar das suas capacidades criativas), como ainda hoje é, de longe, a obra menos conhecida e mais minimizada de Thomas Mann. Lamentavelmente, porque este romance é bastante revelador do pensamento histórico do autor antes da I Guerra Mundial e porque se podem perceber nele, em embrião, os princípios em que assentará essa obra maior do percurso intelectual de Thomas Mann que é Considerações de um Apolítico (1918).

Sua Alteza Real narra o processo de formação de um príncipe, futuro herdeiro de um grã-ducado arruinado, e a aproximação, e, por fim, o casamento com uma filha de um milionário americano. É óbvio que este “enredo” simples alude à aliança aristocracia/burguesia, característica dos regimes atrás referidos, assim como se reporta à transmissão gradual de liderança num quadro, de conflitos atenuados, determinado pelas próprias necessidades temporais.

Mas nenhuns destes aspectos, demasiado notórios, dão o sentido principal desta obra. Este realça-se do confronto entre a formação do príncipe e aquilo que nesta vai ser introduzido pela sua relação com a “burguesa rica”.

Toda a formação do príncipe é uma dolorosa preparação para assumir um estatuto formal de estrita representatividade. A sua existência deverá ser orientada “para os outros”, no sentido em que estes têm de reconhecer nele a excepcionalidade que permita aceitar com agrado a sua situação de súbditos, originando a imprescindível coesão social. E o empenho existencial para assumir essa função de representatividade tem tão elevada significação social que o príncipe é obrigado a anular-se como sujeito: para ele, não há nenhuma forma de existência “exterior” ao seu estatuto. É este o ensinamento que o prof. Uberbein, o principal mentor intelectual do príncipe, lhe incutiu e que apreendeu do papel que a aristocracia (por integrar toda uma cadeia de poderes e representatividades) a si própria se deu e cumpriu durante o Antigo Regime.

Perante a atitude formal do príncipe, o comportamento da filha do milionário americano representa a expressão plena da individualidade e da subjectividade, encarando-se estas como substância de qualquer existência: para ela, não existe afirmação social (e, por conseguinte, efectiva representatividade) exterior à afirmação pessoal. O namoro e o noivado são, no essencial, estratégias sentimentais com que a “jovem burguesa” incute graduais transformações de comportamento no príncipe, de molde a este “desformalizar” a sua existência. O que ela pretende do príncipe é que este se transforme num “sujeito”, dando um conteúdo, e não somente uma forma, ao seu estatuto. Por fim, o suicídio do prof. Uberbein e, naturalmente, o casamento entre as duas personagens principais vão ser a consagração histórica desta atitude; por outro lado, a rosa, que, ao longo dos séculos, no pátio interior do palácio principesco, floria de uma forma magnífica, mas com odor a podre, e que, depois do casamento, volta a ter perfume, assinala a convicção de Thomas Mann nas infindáveis virtualidades desta atitude individualista, genuinamente burguesa.

Esta ingénua convicção, derivada de um certo romantismo sentimental, vai sofrer um embate brutal com os sangrentos acontecimentos da I Guerra Mundial. A “crise de criatividade” que Thomas Mann quis ver em Sua Alteza Real não é tanto uma crise do próprio autor, mas o desmoronar da concepção das relações sociais e de poder de toda uma época. Foi aquele conflito mundial que de facto reduziu este romance à imagem de um simples documento sintomático de um período e que obrigou Thomas Mann a nuancear toda a sua reflexão histórica e a prepará-la para outros percursos.


Publicado no Público em 1990.



Título: Sua Alteza Real
Autor: Thomas Mann
Tradução: Ana Maria Reltoff
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
317 págs., € 10,04


sábado, 2 de junho de 2012

WILLIAM GADDIS




O REGISTO FINAL



Quando William Gaddis publicou, em 1955, o seu primeiro romance, The Recognitions, a crítica americana não lhe foi muito favorável e o acolhimento público foi quase nulo. Este obscuro colaborador do “The New Yorker”, que tinha vivido na orbita boémia dos escritores da geração “beat”, desconcertara tudo e todos com esta gigantesca obra, profusamente erudita, repleta de referências literárias e jogos linguísticos, e cujas interrogações estéticas e temáticas - sobre as relações entre verdade e real, original e falsificação, duplo e Mesmo, redenção e arte, dinheiro e signo - estavam bem longe daquilo que, naquela altura, o meio literário entendia como de urgente formulação.

Passados cerca de vinte anos, porém, este romance ganhou uma corte de fervorosos e iniciados leitores, e algumas figuras cimeiras da crítica dos Estados Unidos encaram The Recognitions como um dos mais importantes romances americanos do pós-guerra e precursor da produção de autores como Barth, Barthelme, Brautigan, Coover e Pynchon. Por isso, quando, em 1975, William Gaddis publicou o seu segundo romance, JR, já ninguém se admirou, nos meios literários, com a sua consagração, ao ganhar o National Book Award. Contudo, o reconhecimento da crítica do papel de charneira da ficção de William Gaddis na literatura americana contemporânea nunca estimulou o grande público a aproximar-se da sua obra, provavelmente porque esta assume a forma de labirínticos “mega-romances”.

Em 1985, William Gaddis publicou Gótico Americano, o romance agora traduzido. Esta obra, de dimensões mais comuns, tem sido, por isso, uma fácil iniciação a sua produção literária. Pode caracterizar-se, utilizando uma citação do próprio Gótico Americano, como “uma nota de pé de página, um post-scriptum” das anteriores obras, onde o autor procura, desesperada e goradamente, os “finais felizes” que dêem uma tonalidade mais optimista a toda a sua actividade literária.

Estas características de Gótico Americano têm a ver não só com as dimensões deste romance em relação aos anteriores, mas em particular porque são aplicadas as mesmas técnicas narrativas de JR. De facto, toda a acção dramática se centra quase em exclusivo nos diálogos - são estes que transmitem as poucas referências cénicas expressas - e, de tão escassamente descritas, as personagens parecem ser meros “suportes” de falas.

Nada sucede em Gótico Americano. E, contudo, como se diria para os romances de sucesso, há sexo, violência e morte. Tudo numa subalugada casa “gótica americana”, repleta de móveis heteróclitos, onde vive uma herdeira milionária e muito frustrada, o seu marido, um veterano da guerra do Vietname, associado a tramoias obscuras de um político religiosamente fanático e de extrema-direita, e por onde passam, não se sabe bem por que motivo, o irmão da herdeira, marginal e superficialmente converso ao budismo, e o senhorio, um geólogo com pretensões de escritor, desencantado com as suas actividades efectuadas em África ao serviço da CIA (?).

Mas tanto podiam ser estas personagens como quaisquer outras. Os diálogos revelam um discurso incoerente, cheio de interrupções, como se já não houvesse nenhum tipo de convicção, nada para afirmar. Um telefone interrompe constantemente as falas, intromete-se no raciocínio, obriga-o a uma constante deriva.

Pressente-se que todo o suporte romanesco de Gótico Americano pode ser alterável. O essencial encontra-se na frenética, dir-se-ia mesmo histérica, tentativa de fazer um ponto da situação da civilização ocidental (haverá outra?). E o resultado é o mais pessimista possível: nesta civilização do sinal, onde nada existe exterior aos códigos, que, aparentemente, é a oitava maravilha que a evolução histórica produziu, o aviltamento ético é permanente, empobrecendo a semântica, degenerando a sintaxe.

Por isso, este romance é de urna amargura quase insustentável. Nenhuma redenção é previsível: a religião é um outro modo do comércio e da luta pelo poder, a arte uma forma de “evasão” impotente, “uma colcha de retalhos de conceitos, empréstimos, decepções”. É certo que esta dá, algumas vezes, a “esperança de uma ordem restabelecida”, de ser possível a reconstrução de um “passado improvável”. Mas o que verdadeiramente existe, por todo o lado, é desperdício, incoerência, lixo. A vida é “um continente escuro”, “uma questão de medo”, “uma ficção qualquer para passar a noite”.

Neste cenário, qual a ficção possível? Nenhuma. Escrever é só urna forma de constatar sem complacência nem esperança: o registo final. Por isso, os romances repetem-se, procurando só alargar a visão do apocalíptico desastre: um grito contínuo e em permanente crescendo.


Publicado no Público em 1991.

(Foto do Autor de Marion Ettlinger)


Título: Gótico Americano
Autor: William Gaddis
Tradutor: Muriel Alves Brazil
Editor: Difusão Cultural
Ano: 1991
270 págs., (esgotado)