sábado, 30 de julho de 2016

ALEJO CARPENTIER

 



TER OUTRO CONTINENTE

 


Se existe uma constante, mais ou menos explícita, na obra de Alejo Carpentier, e provavelmente em toda a literatura latino-americana, essa é, sem dúvida, a problematização das relações culturais entre a Europa e a América, acompanhada pela tentativa de decifração da especificidade cultural do novo continente. Natural que assim seja, já que o território americano se tornou, em termos históricos, o espaço onde, de forma mais eficaz, actuou o imperialismo cultural europeu, ao ponto de este se afirmar como uma “presença em excesso”, deformante, obrigando as formações culturais indígenas e africanas a subsistir como um plasma subterrâneo, golfando, quase por milagre, aqui e além, pelas brechas da cultura dominante.
 
Em Os Passos Perdidos, O Século das Luzes e O Recurso do Método, as obras onde Alejo Carpentier mais desenvolveu o seu “realismo mágico”, percebemos que a sua preocupação maior foi a de, enformado pelos valores e instrumentos culturais europeus, “descobrir uma nova territorialidade cultural”.
 
Neste sentido, A Harpa e a Sombra, o último romance escrito pelo autor cubano e agora traduzido, aparece como uma espécie de testamento literário, uma vez que, ao reformular o mito fundador de Cristóvão Colombo, Alejo Carpentier vai tentar identificar o sentido da própria “intelligentsia” latino-americana. Por isso mesmo, é uma obra fascinante pelo que reflecte sobre o posicionamento deste escritor, inegavelmente determinante, para os actuais percursos da literatura latino-americana.

 
A obra divide-se em três partes (“A Harpa”, “A Mão” e “A Sombra”), centrando-se a primeira na reflexão de Pio IX sobre a religiosidade na América do Sul e sobre a pertinência (e utilidade) da proposta de beatificação de Colombo; a segunda, em que o próprio Colombo é o narrador, recria o seu exame de consciência, às portas da morte, enquanto espera pela chegada do seu derradeiro confessor; e a terceira narra, de acordo com os princípios do realismo mágico, o julgamento final da Sacra Congregação dos Ritos, assistido pelo espírito invisível do navegante.

 
A estrutura do romance realça que o próprio Colombo é já um transfuga ao território cultural europeu (aqui demarcado pela ortodoxia da Igreja) pela sua condição de viajante (é um membro da Sacra Congregação que afirma que não existe nenhum santo marinheiro), de navegante obcecado pela descoberta de outro território. De facto, o seu desejo de outro território é consonante com a afirmação do seu desejo sexual que o leva constantemente a “pecar”, isto é, a arredar-se da norma europeia (a Igreja), desterritorializando-se. A glória que Colombo alveja é resultante de se libertar do espaço europeu, ou por outras palavras, de si mesmo, como qualquer amante.

 
É, por isso, um homem já expatriado que procura a América. E tal como através do corpo da mulher se tenta descobrir a sua vibração oculta, o que Colombo quer descobrir no Novo Mundo é o seu recôndito, aquilo que é a razão de ser da sua viagem: o ouro, a Grande Mina que lhe escapa sempre, a alma de um território que não chega a descobrir.

 
E o que Isabel a Católica procura recolher, quando deita Colombo no seu leito real, é a força vital de um território que é, ao mesmo tempo, o do navegante e o de um novo continente. Como Colombo não lha consegue dar, este perde duplamente: o amor da Rainha e a possibilidade de beatificação pela Igreja.

 
A glória de Colombo é, assim, apenas a da sua impotência, a do seu erro: impossibilitado de possuir a América (até de a nomear...), de conhecer o Outro, afunda-se em si mesmo, sem cá nem lá.
 
Ora é esta situação de homem sem eira nem beira que faz com que Colombo corporize o sentido do intelectual latino-americano, visto que, sendo o estatuto deste originário de um outro mundo, vive numa realidade que tem de irremediavelmente desconhecer por desadequação conceptual e instrumental. E a sua glória, tal como a de Colombo, é a de procurar sempre aquilo que lhe fugirá. Mas não será esta também a situação der qualquer criador?



Publicado no Expresso em 1988.


(Foto do Autor de Joseph Fabry).

 
 
 

Título: A Harpa e a Sombra
Autor: Alejo Carpentier
Tradutor: Daniel Gonçalves
Editor: Caminho
Ano: 1988
157 págs., esg.

 

 



quinta-feira, 21 de julho de 2016

JACQUES ABEILLE

 
 
 

A SEDA SENSUAL DA PALAVRA
 
Por vezes, “descobrir” um autor é resultante da constatação de que ele está no centro ou, pelo menos, num ponto de conexão de “afinidades electivas” de criadores (literários, artísticos) que já foram por nós referenciados.
 
Foi assim que, no meio do magma de informação em que vivemos mergulhados, o nome de Jacques Abeille começou a evidenciar-se, nas minhas prospecções, como identificando um narrador muito peculiar.
 
“Descobri” que Jacques Abeille tinha sido amigo chegado de Pierre Molinier (1900-1976), um pintor e fotógrafo surrealista um pouco obscuro (passou toda a sua vida em Bordéus, bem longe dos círculos mundanos de produção artística) e que, como muitos outros de orientação estética semelhante, imbricou profundamente a existência com a sua produção artística. De facto, há muito que este artista era para mim uma figura intrigante e fascinante, não só pela sua vida, mas em particular pela sua obra (iniciada já tarde, com mais de cinquenta anos) obsessivamente erótica e fetichista (raros sãos os seus quadros figurativos, ou, mais tarde, as suas fotos, em que não surjam jogos de “entidades femininas”, vestidas apenas de meias negras e cinto de ligas, constituindo, uma boa parte deles, auto-retratos em que aparece “travestido”), sempre a questionar as fronteiras entre arte e pornografia, que foi muito elogiada por André Breton e que é hoje considerada como percursora da “body art”.
 
Mas foi devido a Bernard Noël, um dos poetas contemporâneos franceses mais interessantes e um intelectual que tem procurado articular uma exigente intervenção cívica com uma contínua reflexão sobre o fenómeno artístico e sobre o efeito social e histórico-literário do acto de escrever, e alguns dos seus textos de louvor e entusiasmo pela narrativa de Jacques Abeille, em particular do seu romance Les Jardins statuaires, que em definitivo fiquei interessado por conhecer a sua obra.
 
Jacques Abeille é, mesmo em França, muito pouco conhecido e referido: há poucas análises da sua obra nos suplementos literários e nos espaços públicos dedicados à literatura em França; é um autor que tem a sua narrativa dispersa em diversas chancelas editoriais, todas elas pequenas; que nunca obteve nenhum importante prémio literário, etc. Creio que o estatuto um pouco marginal de Jacques Abeille no sistema literário francês se deve à sua proximidade ao universo surrealista (ser próximo desta corrente estética e literária não é, hoje, grande referência - e ainda muito menos se aparece com o estatuto de narrador) e ao facto da sua obra ser apontada como obscena e erótica em excesso.
 
 Qualquer uma destas etiquetas (obra surrealista, obra obscena) exigiria, só por si, alguma reflexão no caso da produção literária de Jacques Abeille. No entanto, tem de se concordar que o autor dá muita importância ao elemento erótico, chegando mesmo ao ponto de, com o pseudónimo de Léo Barthet, redigir romances e novelas onde assume abertamente essa componente (e aí, sim, até a componente pornográfica), procurando conjugar os efeitos – a nosso ver, inconciliáveis - da emoção pornográfica com a emoção estética.
 
Pode dizer-se, procurando definir uma geografia literária para Jacques Abeille, que o universo da sua narrativa se encontra confinado (e contaminado) pela produção de Georges Bataille e André Pieyre de Mandiargues (outro esquecido…), por um lado, e de Julien Gracq e Dino Buzzati, por outro. O quadrilátero literário assim delimitado é ocupado por cerca de duas dezenas de obras narrativas (a que se deve acrescentar alguns títulos de colectâneas de poesia e de ensaios, estes últimos nos domínios das artes plásticas e da história da arte, pois Jacques Abeille é também pintor), onde se destaca o conjunto de romances e novelas que o autor intitulou Le Cycle des contrées, composto pelo já referido Les Jardins statuaires (1981), Le Veilleur du jour (1986), En mémoire morte (1992) e Les Carnets de l’explorateur perdu (1993), ou ainda alguns subscritos por Léo Barthet, como Histoire de la bonne (2002) ou Camille (2005).
 
Entre os títulos deste autor, é apontado, de forma consensual, pelos críticos e analistas da sua produção literária, como a sua obra-prima, o seu romance inicial, Les Jardins statuaires. E foi por ele que resolvi iniciar-me na leitura da sua obra.
 
Creio que já se percebeu que uma outra etiqueta, com que é habitual classificar-se a obra de Jacques Abeille, é o de “literatura fantástica”: de facto, como sucede neste tipo de literatura, o autor procura, em Les Jardins statuaires, criar um universo próprio, autónomo. Porém, a originalidade começa logo na forma como o faz: depois de uma página inicial onde se explana uma reflexão sobre a forma do espaço (uma árvore que expande os seus ramos pelo céu), aparece, de imediato, um viajante/narrador que se encontra à entrada do “país dos jardins das estátuas”…; nada se expõe sobre a forma como lá chegou, de onde veio, porque motivos desconhece este país e os mundos limítrofes - simplesmente “aparece”. Depois, o autor vai desenvolvendo e construindo Les Jardins statuaires em constante “trompe l’oeil” entre o universo reconhecível pelo leitor e o universo específico da obra, como se esta se procurasse a pouco e pouco libertar e autonomizar. No fundo, parece que o próprio romance, no seu desenrolar, pretende espelhar o seu esforço titânico para criar um universo próprio.
 
Não vou, como é óbvio, nem perto nem de longe, desvendar a trama de Les Jardins statuaires. Só quero referir, na coerência do que foi exposto no parágrafo anterior - e para aguçar o apetite do leitor pela ambiência da obra -, que o viajante/narrador, numa primeira parte, vai introduzindo-se cada vez mais no interior deste país “gerador de estátuas”, revelando não só a estranha configuração espacial desta terra, mas também a peculiar organização social dos seus habitantes, assim como os seus invulgares hábitos; na segunda parte, o percurso do viajante/narrador é em sentido inverso, deslocando-se para as fronteiras deste “país” e desvendando como a sua relativa harmonia se encontra ameaçada por “turbas bárbaras” que, com outros valores, poderão desfazer a frágil imobilidade desta organização social.
 
Assim, o leitor não só percebe que os “jardins” (com os seus áreas de produção, os seus armazéns, as suas habitações - em particular, os gineceus, onde as mulheres vivem em clausura e afastadas da “criação” de estátuas) estão no centro desta organização social, como descobre que existem outras estruturas periféricas e complementares, com funções de “descompressão” (é o caso das estalagens, com os seus “patrões” e as suas “criadas”) ou de registo e memória (é o caso dos homens-livros e as respectivas “bibliotecas”), etc.; e, por fim, como a própria sociedade se modela em função do milagre da “criação” das estátuas e da sua transcendente beleza ou, pelo contrário, das suas doenças e das suas perigosas aberrações…
 
Como se pode perceber por aquilo que já foi referenciado, pouco ou quase nada se encontra de descrições eróticas ou pornográficas em Les Jardins statuaires. Mas, de uma forma estranha, perpassa nas suas páginas uma constante sensualidade que contagia toda a narrativa (em particular, as descrições sobre a forma como se vão gerando as estátuas e o seu aparecimento no granuloso chão dos jardins). E é neste aspecto que se torna evidente a magnífica arte narrativa de Jacques Abeille: de facto, deriva do seu próprio estilo a sensualidade constante de toda a sua obra - mais do que das suas descrições eróticas ou pornográficas.
 
Porém, talvez seja também resultante desta obsessão descritiva o principal defeito, a nosso ver, de Les Jardins statuaires: a sua dimensão. Por vezes, a necessidade de Jacques Abeille em revelar de forma exaustiva este país e a sua ambiência peculiar origina que o romance se torne, aqui e ali, um pouco repetitivo, justificando-se, por razões de economia narrativa, algum trabalho editorial.
 
Publicado na web em 2008.
 
 
Autor: Jacques Abeille
Título: Les Jardins statuaires
Editor: Joëlle Losfeld
Ano: 2004
398 págs., 23,00 €
 
 
        
 


quarta-feira, 20 de julho de 2016

JOHN KENNEDY TOOLE

 
 
UMA PUNIÇÃO DA INFÂNCIA
 
As circunstâncias que envolvem o caso literário de John Kennedy Toole transformam-no, pela sua radicalidade, num facto sintomático, até em termos sociais, de um país como os Estados Unidos. Como se poderá ler na introdução que acompanha a recente edição portuguesa de A Bíblia de Neón, este autor sulista, nascido em New Orleans no final da década de trinta, tentou, durante vários anos e em diversas editoras, publicar um romance, A Confederacy of Dunces, que escreveu durante a tropa em Porto Rico. Totalmente desanimado com as rejeições sucessivas, resolveu, mergulhado no mais profundo desespero, por fim a vida. É a sua mãe, convencida do mérito do livro e do talento do filho, que vai continuar a saga de o tentar publicar. Por fim, consegue persuadir um importante escritor sulista, Walker Percy, a lê-lo, e este, extasiado, resolve propôr a sua impressão na editora da universidade onde ensina. É assim que, em 1981, vinte anos depois de ter sido escrito, o romance é galardoado com o mais famoso prémio literário americano, o Pulitzer.
 
A Confederacy of Dunces, escrito em registos estilísticos que vão desde a mais pura coloquialidade a uma retórica arcaica e desajustada, é uma truculenta e barroca sátira sobre as dificuldades de comunicabilidade, onde uma grotesca personagem, o obeso Ignatius J. Rilley, que sempre tinha vivido na dependência de uma mãe absorvente, procura interpretar, munido com uma ética de todo incongruente, um conjunto de peripécias cada vez mais absurdas que lhe sucedem. O resultado é um retrato alucinado e pícaro da sociedade sulista, em particular dessa cidade que mais se assemelha a um cenário de filme: New Orleans.
 
Parecia, no entanto, que John Kennedy Toole era mais um caso de um escritor de um só livro. Porém, a sua infatigável mãe resolve procurar, no espólio do filho, alguma coisa mais com interesse literário e descobre um romance que ele tinha escrito na adolescência: aparece, desta forma, A Bíblia de Néon, o romance que agora foi traduzido.
 
A Bíblia de Néon é, como é evidente, uma obra de formação e, por conseguinte, bem longe da versatilidade e originalidade de A Confederacy of Dunces. O livro narra a infância do filho único de uma família, vivendo numa pequena cidade de província do Sul dos Estados Unidos, com enormes dificuldades financeiras, esmagada pela recessão económica dos anos trinta e pelas “lesões” que a II Guerra Mundial provocou na rectaguarda americana. Escrito em frases curtas e concisas, eminentemente descritivas e conotativas, e, dessa forma, compensando (ou talvez não) a insuportabilidade trágica das situações, A Bíblia de Néon corresponde no seu estilo e na sua estrutura, de um modo quase tipificado, ao “mainstream” da literatura americana - o que já não é pequeno mérito, quando se tem em conta a idade com que o escritor redigiu este romance (apenas dezasseis anos…).
 
Por isso, provavelmente, o interesse maior de A Bíblia de Néon reside no seu efeito exorcista. De facto, parece que o autor sente necessidade, pela escrita e pela ficção, de “eliminar” a sua infância. Na sua estrutura cíclica, o romance começa e acaba com a fuga da personagem principal (mais uma na literatura americana), depois da total devastação dos lugares e dos afectos da infância: a figura violenta e desesperada do pai morre na guerra em Itália, a mãe, incapaz de se recuperar desta perca, enlouquece e extingue-se, esvaida em sangue, a tia Mae, com a sua sexualidade exuberante, compensadora das suas frustrações financeiras e “artísticas” e reveladora da hipocrisia de uma sociedade puritana, desaparece, prostituindo-se numa relação medíocre e arrastada pela muito efémera hipótese de conseguir, por fim, satisfazer as ambições da sua vida.
 
O desaparecimento desta tia - que personalizava, apesar de tudo, a possibilidade da alegria e do prazer - e a tentativa de eliminação da sua inofensiva mãe são golpes insustentáveis para a personagem principal: à sua frente só uma sociedade castrante e dominadora, encabeçada pelas figuras sinistras dos professores e do pregador. O inevitável final de A Bíblia de Néon toma evidente a necessidade compulsiva que levou John Kennedy Toole à sua elaboração: segregar a amargura venenosa que lhe foram depositando na alma e renascer.
 
Publicado no Público em 1992.
 
 
Título: A Bíblia de Néon
Autor: John Kennedy Toole
Tradutor: Ana Barradas
Editor: Terramar
Ano: 1992
198 págs., € 7,93
 



terça-feira, 12 de julho de 2016

TONI MORRISON 2

 
 

VIDAS EM ESTILHAÇOS

 
Quando Toni Morrison ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1993, apareceu escrito algures que a Academia Sueca procurava dessa forma “responder” a certos sectores sociais que a acusavam de ser segregacionista nos seus critérios, pois nunca tinha outorgado este Prémio a uma “mulher negra”. Assim exposto, parecia que o Prémio Nobel tinha sido concedido a esta autora mais para satisfazer uma espécie de “quota” para minorias do que em consequência do mérito intrínseco da sua obra. Ora, nada mais injusto do que retirar esta conclusão: Toni Morrison é, sem sombra de dúvida, um dos maiores escritores afro-americanos de sempre (e estou a recordar-me, por exemplo, de narradores como Richard Wright, Ralph Ellison, James Baldwin e Alice Walker) com uma obra de nível artístico comparável a qualquer outro romancista nobilitado; para fundamentar esta opinião, basta referir que a sua obra revela que Toni Morrison é um dos autores americanos que melhor absorveu o legado literário de William Faulkner (na minha opinião, entre os escritores afro-americanos, só Ernest J. Gaines atingiu neste aspecto um nível próximo).

 
Hoje, Toni Morrison tem um estatuto reconhecido de grande criadora literária, sendo encarada como um clássico “vivo” das letras americanas, e é bem evidente que aquelas “considerações”, escritas por alturas da consagração com o Prémio Nobel, eram absurdamente irrisórias...e segregacionistas. Sendo assim, ainda se torna mais intrigante o percurso desta romancista na edição portuguesa: depois de ter sido publicado Beloved, com o título de Amada, em 1994, numa adaptação de uma tradução brasileira, só em 2009, dezasseis anos depois de receber o Prémio Nobel, é que a edição portuguesa resolveu, de rajada, publicar mais dois outros romances da autora (A Mercy, com o título em português de A Dádiva, e Love), e uma nova tradução da obra anteriormente editada, agora com o título mais correcto de Beloved (note-se que Beloved é o nome de uma personagem e, por conseguinte, não se deve traduzir). Alguém me saberá dizer que outro autor nobilitado levou, recentemente, dezasseis anos para ser traduzido e editado em Portugal? E será que a restante obra de Toni Morrison (estou a recordar-me de Sula, Song of Solomon, Jazz e Paradise) não justificaria uma edição condigna no nosso país?

 
Estas interrogações vêm a propósito da minha recente leitura de Jazz, o romance que Toni Morrison publicou a seguir a receber o Prémio Nobel e que integra, como painel central, um tríptico, com Beloved (essa verdadeira obra-prima da narrativa contemporânea) e Paradise, em que procura compreender o processo sociocultural (e até emocional e afectivo) da população afro-americana nos últimos cento e cinquenta anos.

 
Por comodidade, pode classificar-se Jazz como um “romance histórico”. De facto, situa-se num período decisivo para a “visibilidade” (para citar, de modo indirecto, o título do famosa obra de Ralph Ellison) da minoria afro-americana: estou, naturalmente, a falar dos anos vinte do século passado. Como é sabido, esta década ficou marcada pela “irrupção” pública do tipo de música que dá título a este romance … mas também porque apareceu o “Harlem Renaissance”, o primeiro movimento literário e cultural consistente com origem nesta comunidade. E, em termos geográficos, é também em Harlem que Jazz se situa, esse bairro mítico de Manhattan que contribuiu de forma decisiva, em consequência da sua situação de descriminação social e racial, para a consciencialização cultural e política da população afro-americana.

 
Como outras obras de Toni Morrison, Jazz utiliza uma estratégia narrativa bem peculiar: o romance desenrola-se em torno de uma situação muito violenta que, por esse facto, consegue “iluminar” as personagens que nela estão envolvidas e também aquilo que representam. Neste caso, a obra parte de um “fait-divers” (creio que inventado) em que um cinquentão, Joe Trace, vendedor de cosméticos e casado com Violet, cabeleireira e manicure ao domicílio, resolve, ruído de ciúmes, assassinar a sua amante, uma jovem de dezoito anos, Dorcas, por quem está obsessivamente apaixonado; mas, o que de facto incute “excesso” ao “fait-divers”, é a tentativa de Violet, no funeral da vítima, de a desfigurar com uma navalha, como se quisesse de novo assassinar a amante do marido…

 
Esta descrição ajuda a entender a forma como são arquitectadas, em termos caracteriais, as personagens na obra de Toni Morrison. Em coerência com o substrato longínquo da sua formação religiosa, estas personagens encaram a vida terrena como uma espécie de passagem por um purgatório, só redimível num eventual Além, onde os efeitos do destino pessoal (e colectivo) lhes vão gerando, através de um encadeamento de esperanças goradas e frustrações, de resignações e ténues compensações, um núcleo emocional, tenso e crispado, que, a qualquer momento, por acção de qualquer rastilho (uma paixão mais intensa, por exemplo), poderá explodir, estilhaçando-as, e transformando as suas vidas num brutal e aberrante “fait-divers”. Por isso, Jazz constrói-se (à semelhança do que já acontecia com Beloved) como se a narrativa procurasse perseguir e registar, em constantes “flashbacks”, o percurso destes “estilhaços” e assim revelar como a História, no sentido de destino colectivo, afecta o íntimo das personagens e tinge com cores próprias a sua tragédia individual. O resultado é um retrato vertiginoso da população afro-americana e do seu percurso desde o final da escravatura até à migração maciça para os meios urbanos, em particular para o Norte dos Estados Unidos, (de)mostrando que a História se constrói, não só através da cultura e do destino social da comunidade, mas também com sentimentos, desejos, ciúmes, em suma, de corpos e almas que se afirmam no esplendor da juventude ou se resignam, com maior ou menor serenidade, à decrepitude física e à voragem dos tempos sobre os afectos e os amores.  

 
Até aqui, não se encontra, em Jazz, diferenças substanciais ao modelo de estratégia narrativa que Toni Morrison já tinha utilizado, por exemplo, em Beloved. A substancial inovação, no romance agora em causa, é que a autora utiliza “o olhar” das diversas personagens, na sua tentativa de compreender o sucedido, como se estes fossem “instrumentos musicais” a “recriar” o mesmo tema. De facto, Toni Morrison trata estes “olhares”, diferenciados pela forma como a História condicionou o seu percurso individual, como se fossem apresentações digressivas do mesmo tema, com a sua componente de improvisação, e funcionando em diálogo harmónico com outros “solos” de outras personagens, assentes em novas variações de um tema e a correspondente resposta, transformando a arquitectura do romance numa espécie de “jam session” (é este carácter digressivo e recorrente que dá a esta obra uma dimensão experimental, tornando a sua leitura aparentemente mais trabalhosa e provocando “estranheza” no leitor menos prevenido para esta dimensão de Jazz). Até o final, onde a narrativa procura dar uma visão panorâmica da Cidade, parece a apoteose instrumental com que a maioria dos temas de jazz termina. Além disso, a ambiência social e a tipificação das personagens tornam este romance próximo de um tema de blues urbano.

 
Uma outra constante na obra romanesca de Toni Morrison – e, por consequência, em Jazz – é a sua dimensão trágica. De facto, o efeito conjugado da História e do seu destino pessoal provoca nas personagens uma sensação de inevitabilidade, de que tudo é irreversível no seu percurso: é assim que Joe e Violet Trace encaram o aparecimento, nas suas vidas, de Dorcas e, principalmente, a obsessiva paixão que esta gerou em Joe. Por isso, pode afirmar-se que os romances de Toni Morrison são concebidos como uma forma de “tragédia laica”, em que a História substitui a acção divina, e onde a estrutura clássica se fragmenta (ou estilhaça, para continuar a usar a imagem acima utilizada) em inúmeras linhas narrativas.

 
Por fim, há que realçar o gosto pelo pormenor “esclarecedor”, resultante do invulgar sentido de observação da autora, demonstrando até à saciedade o seu conhecimento do meio afro-americano urbano e conseguindo, com isso, dar acentuada verosimilhança à ambiência social e à caracterização das personagens. Além disso, é inquestionável que o estilo de Toni Morrison, imaginativo, ritmado, colorido e em constante toada lírica, consegue exprimir bem a verdadeira dimensão épica (bem notório no final whitmaniano do romance) destas “pequenas vidas” sufocadas na mediocridade de quotidianos que as colocam sempre à beira do abismo da miséria e do desespero.

 
Publicado na web em 2012.

(Foto da Autora de Timothy Greenfield-Sanders)

  

Título: Jazz
Autor: Toni Morrison
Editor: Vintage
Ano: 2004
256 págs., $ 10,20
 
 




FRANÇOISE MALLET-JORIS

 
 
A VORACIDADE
 
Em 1950, quando Françoise Mallet-Joris, com vinte anos, publicou o seu primeiro romance, Le Rempart des Béguines, em que uma adolescente se entregava aos prazeres culpabilizados de uma relação amorosa com a amante do pai, entendeu-se em França que esta obra (como, alguns anos mais tarde, as de Françoise Sagan) era exemplificativa do comportamento de uma geração que, acordada do pesadelo da guerra, se sentia liberta para práticas afectivas e sociais que entravam em confronto com certo convencionalismo hipócrita.
 
A obra desta romancista de origem belga (e filha de outra notável, e um pouco esquecida, escritora: Suzanne Lilar), depois de percorrer uma longa carreira de ficcionista, encontra-se hoje bem longe daqueles inícios “escandalosos”. Porém, mesmo com certa irregularidade, vem evidenciando algumas das características mais salientes da produção romanesca da sua geração: a tentativa de conciliar o romance tradicional com técnicas narrativas oriundas da literatura americana e do cinema; um estilo que, com naturalidade, se desloca da frase curta e concisa para largas digressões líricas; a propensão para procurar desvendar a dimensão oculta, até mesmo metafísica, nas mais comuns situações de quotidiano.
 
Divina, o último romance de Françoise Mallet-Joris, agora traduzido, desenrola-se a partir de uma destas situações do dia a dia: uma celibatária professora de liceu, em consequência de uma avaria nos ascensores da torre onde mora, que a deixa incapaz de sair, descobre que está pesada em excesso e decide fazer dieta. O resultado desta opção vai, no entanto, desencadear um conjunto de situações profissionais e pessoais que impelem a personagem principal, Joana/Divina, a uma reflexão, com inúmeras derivações, sobre o papel que o corpo desempenha na sociabilidade e no afecto e sobre o sentido último da fome e da saciedade.
 
Sempre Joana/Divina se tinha inclinado, na linha da tradição gnóstica e judaico-cristã, para entender o corpo não como um lugar de passagem para a convivialidade, mas como lugar de enclausuramento e de ofuscação do olhar dos outros para a verdadeira realidade do ser: a experiência da dieta, ao provocar alterações imprevisíveis no comportamento dos outros, vem confirmar-lhe a justeza desta posição. Por outro lado, sempre sentira no corpo uma volúpia, quase autónoma de si, sensitiva e cognitiva, como se procurasse, pela voracidade, atingir a comunhão com o Todo. É por isso que entende que o comportamento erótico provocará, de forma quase inevitável, logro e sofrimento - que as experiências nefastas da avó e da mãe confirmam -, na medida em que a efectiva posse (a deglutição do Todo) lhe está vedada: nesse sentido, mais vale aceitar a intromissão brutal de um violador que, ciclicamente, a visita de noite, porque este dá-lhe a ilusão de “tocar” a face anónima, universal e transparente de Deus.
 
Esta reflexão permite Joana/Divina, no entanto, perceber que o projecto de atingir a saciedade é absurdo: há sempre um excedente que oculta o conhecimento de Deus. Por isso, convence-se, após a dieta, que o Todo está na renúncia intencional da satisfação do desejo: essa “suspensão” preenche-a com uma ausência que é, essa sim, absoluta.
 
Contudo, esta conclusão toma-se perigosíssima: Joana/Divina sente que está prestes a ser devorada pelo Todo. E tem esta derradeira constatação quando se revela a face de quem a viola e compreende o rísivel de tentar encontrar sentidos para uma busca que tem o seu fim no princípio.
 
Por fim, saliente-se que nada disto se pode descobrir na edição portuguesa de Divina. De facto, nem medíocre a tradução chega a ser. E, quando se chega a este nível de qualidade, o problema já não é de tradutor, mas, em específico, de editor: dá a ideia que nem chegou a ler a tradução (como é que se compreende que o texto de contracapa da edição francesa venha publicado, com o mesmo tipo de caracteres, na última página, sem nada o demarcar do corpo do romance?). Francamente, só se pode dar um conselho ao leitor: não gaste dinheiro em vão e compre a edição original.
 
Publicado no Público em 1993
 
 
Titulo: Divina
Autor: Françoise Mallet-Joris
Tradutor: Maria Carlota Alvares da Guerra
Editor: Bertrand Editora
Ano: 1993
259 págs., esg.
 
 



quinta-feira, 7 de julho de 2016

SEVERO SARDUY

 
 
 
 
O TRAVESTISMO DA REALIDADE
 
Durante a ditadura de Fulgêncio Batista, fortemente sustentada pelos Estados Unidos, Cuba viveu um período de grande efervescência intelectual. Como aconteceu em tantas outras regiões e países, o descontentamento com a situação socio-económica e com a exploração desenfreada norte-americana impeliu os intelectuais cubanos para um intenso debate ideológico, com inevitáveis reflexos políticos e estéticos. A revolução castrista - que, na sua fase inicial, foi bastante apoiada pelas massas populares e pelos intelectuais - permitiu o pleno florescimento deste viveiro, com manifestações significativas nos campos da música, das artes plásticas e da literatura. Foi nesta altura que, no domínio da narrativa, se afirmaram, com as suas obras-mestras, autores que já antes tinham publicado, como é o caso de Virgilio Piñera, Alejo Carpentier e José Lezama Lima, marcando de um modo decisivo a posterior produção literária cubana, e desabrochou uma nova geração de ficcionistas em que se destacaram autores como Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas e Severo Sarduy.  
 
Severo Sarduy nasce em 1937, em Camarguey. É nesta cidade que faz os seus primeiros estudos e, ainda muito novo, publica os primeiros poemas. Em 1956, desloca-se para Havana, para estudar Medicina. Porém, o ditador Fulgêncio Batista, em consequência da contestação estudantil, resolve encerrar a Universidade, e Severo Sarduy aproveita esta circunstância para se dedicar à actividade literária com mais intensidade, colaborando em diversas revistas, e ao estudo da arte cubana e latino-americana.
 
Com o triunfo da revolução, Severo Sarduy participa activamente na vida intelectual, colaborando nos jornais “Diario Libre” e “Lunes de Revolucion” e publicando os seus primeiros contos. Em 1960, ganha uma bolsa para vir estudar História de Arte para a Europa, fixando-se de início em Madrid. Passados poucos meses, no entanto, vai para Paris, para estudar na Escola do Louvre e na Sorbonne. Integra-se rapidamente na vida intelectual francesa, estabelecendo relações de amizade com François Wahl, Roland Barthes, Jacques Lacan e Philippe Sollers. Em 1965, participa como colaborador na prestigiada revista “Tel Quel”. Ao mesmo tempo, desenvolve uma ampla colaboração em alguns dos jornais e revistas literárias latino-americanas (“Mundo Nuevo”, “Plural”, “Sur”, etc.), e integra, como conselheiro editorial, a equipa de Editions du Seuil, contribuindo, dessa forma, para o “boom” da literatura latino-americana em França (segundo consta, foi por sua indicação que se publicou Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquez naquela editora).
 
Em 1963, em Barcelona, é editado a sua primeira narrativa, Gestos, onde já se tornavam visíveis alguns aspectos característicos da sua obra: uma forte componente experimental, um enorme interesse por ambiências marginais (para o que não deve ser estranho a sua mestiçagem chino-afro-ameríndia) e um acentuado fascínio pelo “kitsch”. É, contudo, com a sua segunda obra narrativa, De donde son los cantantes, que obtem reconhecimento como narrador nos meios intelectuais latino-americano e francês (no próprio ano da sua edição em castelhano, 1967, é traduzida para francês e editada). De seguida, Severo Sarduy orienta-se para a poesia, publicando três livros. Mas é com a publicação da sua terceira narrativa, Cobra (1972), agora editada no nosso país, e com o ensaio intitulado Barroco (1974), que ficam definidos com rigor os parâmetros estéticos e teóricos da obra de Severo Sarduy. As suas obras posteriores (onde se destaca La simulacion, Colibri e Cocuyo) vão meramente aprofundar e desenvolver os parâmetros já definidos. Em 1993, morre em Paris com a peste do nosso tempo, a SIDA.
 
Pode considerar-se que um dos objectivos fundamentais da obra de Severo Sarduy é a tentativa de reabilitação na contemporâneidade dos princípios estéticos do barroco, respeitando uma tradição que vem de Quevedo e Gongora até aos seus conterrâneos (e predecessores) Carpentier e Lezama Lima. Mas, ao mesmo tempo, o autor, como expõe na sua obra Barroco, procura amplificar o sentido desta corrente estética, redefinindo-a como uma cosmologia “artística”, isto é, um simulacro do cosmos. Não admira, por isso, que nas suas obras narrativas não exista uma intenção de se aproximar a qualquer real, mas a sua ocultação por um outro que pretende ser a transfiguração do anterior (saliente-se que é esta postura que origina o seu fascínio erótico, bem espelhado em toda a sua obra, pela transsexualidade, as “drag queens” e o travestismo): a narrativa torna-se, assim, uma “mecânica”, controlada pelo homem, que “mascara” e, dessa forma, ao mesmo tempo desvenda, recria e interpreta a realidade. Neste sentido, Severo Sarduy preocupa-se em instaurar uma nova unicidade interpretativa, o que determina, segundo ele, a desconstrução da presente retórica discursiva e, em paralelo, a fusão de todas as tradições doutrinais e/ou cosmológicas. Por fim, as suas personagens afirmam-se sempre como arquétipos, mitos, encarnações de valores e doutrinas, duplos metamorfoseados, na aparência etéreos e intemporais, de quaisquer eventuais personagens que, retiradas do quotidiano, não passam de simples larvas das que a produção narrativa revela.
 
Publicado como introdução à edição portuguesa de Cobra em 2004.
 
 
Título: Cobra
Autor: Severo Sarduy
Tradutores: Margarida Amado e Pedro Santa María de Abreu
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2004
240 págs., 15,00 €
 

 

 


terça-feira, 5 de julho de 2016

ELIZABETH BOWEN

 
 
 

A ORDEM AFECTIVA
 
No final dos anos vinte, revelou-se em Inglaterra um conjunto significativo de escritoras (Ivy Compton-Burnett, Rebecca West, Rosamond Lehmann e Elizabeth Bowen) que, de forma diversa, vai contribuir para uma inflexão na produção romanesca, ao abandonar certas técnicas narrativas mais “experimentais” - características do trabalho literário da geração anterior, como, por exemplo e ainda dentro do universo feminino, o de Virginia Woolf -, para, no quadro do romance realista, dar-lhe um registo mais intimista, centrando a sua temática nos conflitos e pulsões que aparecem dentro da instituição familiar.
 
Talvez, entre elas, a que mais próximo ficou da linearidade diegética e da omnisciência do narrador, típicas das construções romanescas tradicionais, foi a irlandesa Elizabeth Bowen. Porém, a coesão temática, a argúcia e a complexidade no tratamento psicológico das personagens, a constante utilização de um humor subtil, como forma de contenção à propensão lírica, dão uma inegável qualidade literária à sua obra. Do seu conjunto, que se diversifica pelo romance, a colectânea de contos e o ensaio, destacam-se os romances publicados antes da II Guerra Mundial, The House in Paris e o que agora foi traduzido e editado com o título de A Morte do Coração.
 
Como é habitual na ficção de Elizabeth Bowen, a personagem central desta obra é uma figura feminina com uma sensibilidade desajustada aos comportamentos sociais da alta burguesia inglesa. Neste caso, é uma adolescente, Portia Quayne, oriunda de uma família com um modo de vida incaracterístico e marginalizado em relação aos valores da sociedade eduardiana; quando fica órfã, vai viver com a família de um meio-irmão, mais velho, que nunca perdoou ao pai o abandono da mãe e que, por isso mesmo, se sente incomodado com a presença imposta da irmã, filha do segundo casamento.
 
A necessidade de afecto e de ser reconhecida por este mundo, antevisto como perfeito, leva Portia Quayne a ser particularmente atenta, descrevendo num diário pessoal, com a objectividade resultante de lhe ser “exterior”, o modo de ser daqueles que a rodeiam. Porém, esse olhar “transcrito”, quando descoberto pela sua cunhada, Anne, que o lê de um modo furtivo, revela-se insuportável para os seus familiares e amigos: aquela sociedade não resiste a um olhar “exterior”, porque este irá confrontá-la com a imagem que faz de si mesma, provocando nela nebulosidades e perturbações.
 
A Morte do Coração parece, portanto, centrar-se no tema trivial da “educação sentimental” de uma adolescente e das dificuldades da sua integração no universo adulto. No entanto, a forma como é tratado este tema revela, ao mesmo tempo, um dos limites e uma das características fascinantes da obra de Elizabeth Bowen: é que os comportamentos sofisticadamente hipócritas destas personagens sâo encarados como consequências defensivas das tensões provocadas pelos mecanismos sociais e, por isso, a “realidade” com que qualquer adolescente terá obrigatoriamente de se confrontar.
 
De facto, não cabem na sociedade institucional as intensidades afectivas: é o conhecimento “experimentado” desta certeza que determina o comportamento, repleto de “esquecimentos” e “fugas”, da cunhada de Portia Quayne. Por isso, a personagem principal vai perceber que, se os afectos, e até o próprio desejo, a impelirem a rebelar-se contra os códigos da sociabilidade, irá ter, de forma inevitável, que caminhar por uma “via sacra” que culminará numa desagregação emocional (bem caracterizada pela figura de Eddie, o rapaz por quem Portia Quayne se apaixona) ou numa situação de repúdio social que originará, em contrapartida, um maior desejo de integração e de submissão. É esta “via sacra” que Portia Quayne descobre nas suas férias em Seale-on-Sea, quando o seu amado corresponde as solicitações fáceis de uma sua amiga, ou, mais tarde, quando percebe que este comenta, na mais natural das cumplicidades, o seu “diário” com os seus familiares.
 
É evidente que esta “ordem afectiva” está muito confinada a um quadro de valores sociais que Elizabeth Bowen parece encarar como imutáveis e que, contudo, a II Guerra Mundial destroçaria por completo (o que justificava, eventualmente, uma introdução situante da obra na edição portuguesa). Porém, a visão lúcida e pessimista que A Morte do Coração transmite da impossibilidade de afirmação dos afectos no exterior dos circuitos e códigos sociais mantem-se, como não poderia deixar de ser, ainda de todo actual.
 
Publicado no Público em 1993.
 
 
Título: A Morte Do Coração
Autor: Elizabeth Bowen
Tradutor: Isabel Braga
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1993
373 págs.,€ 13,75