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segunda-feira, 18 de junho de 2018

D. H. LAWRENCE 2

 
 
O TERCEIRO OLHAR
 
Sempre me intrigou as objecções de inúmeros detractores da obra de D. H. Lawrence, acusando-o de “inapto na construção das estruturas narrativas”, de possuir um “estilo repetitivo”, do carácter “propagandístico da maior parte da sua produção literária”, e, ao nível ideológico, de “pendor fascizante”, de “maniqueísmo sexual” e de “vitalismo reducionista”. E até mesmo alguns analistas e empenhados defensores da sua obra, como é o caso do conceituado especialista que assina o desajeitado prefácio desta edição de St. Mawr e Outros Contos, batem repetidamente na mesma tecla.
 
Não só a maior parte dessas objecções são injustas ou incorrectas, como, em especial, são motivadas por uma básica incompreensão da efectiva dimensão do facto literário e, por conseguinte, do carácter de “poeira residual” dessas “imperfeições” face à radical deslocação no estatuto da sensibilidade que a obra de D. H. Lawrence produziu. E para esta mutação — objectivo que só as obras literárias geniais alcançam - contribuiu uma admirável e inconfundível retórica da paixão, aquela mesma que faz com que este autor, vindo do silêncio que a distância do seu tempo provoca, continue a ser uma das figuras mais comoventemente fascinantes da literatura mundial.
 
Como referem os apêndices que integram a edição de St.Mawr e Outros Contos, D. H. Lawrence escreveu estas histórias em 1924 e 1925, quando, numa segunda estadia no Novo México, procurou, mais uma vez, viver aquela sintonia existencial com a Natureza que apelava, de forma incansável, em todas as suas obras. Mas também é o período em que se começa a sentir, nos seus textos, alguma amargura e cansaço pelos permanentes confrontos com a hipocrisia e mesquinhez dos seus conterrâneos.
 
Estes textos não são, de facto, muito significativos dentro da produção literária de D. H. Lawrence (exceptuando o magnífico conto “A Princesa” que, há alguns anos, foi traduzido, e de forma memorável, por Aníbal Fernandes). Têm, no entanto, o interesse de revelarem algumas subtis transformações que a temática deste autor foi sofrendo ao longo da sua obra.
 
Assim, é bem mais explícita a caracterização da Natureza como uma dinâmica assente na morte. Sobre este aspecto, repare-se na reflexão que, na novela “St.Mawr”, se efectua sobre a relação Cristo/Judas como entidades integrantes de uma “dinâmica natural”: é o comportamento de Cristo que determina o beijo de Judas, sendo este quem dá toda a significação à existência do primeiro, não havendo, por isso, neste jogo, a possibilidade de definir bons e maus. Assim, por definição, a Natureza está “aquém” de qualquer proposição ética.
 
Por conseguinte, uma existência que pretenda estabelecer-se em consonância com a Natureza terá que assumir a morte. É a sua não assumpção, como sinal de um poder desvitalizado que ambiciona impor uma ordem à Natureza, que provoca o aparecimento do mal: é este o motivo por que, em “St. Mawr”, se condena o bolchevismo e o fascismo, acusando-os de procurarem satisfazer o desejo de escravos, de “mortos que gostam de viver no meio da podridão dos cadáveres”.
 
A coisificação do Mal, que estes textos parecem revelar a uma primeira leitura, é ilusória e resultante, pelo contrário, de uma ampla análise de comportamentos. De obra para obra, D. H. Lawrence tinha, de facto, alargado a compreensão da diversidade desse tipo de comportamentos dominantes (tão dominantes que, segundo o autor, são eles que determinam a vocação mais manifesta do institucional e do civilizacional) que, em comum, têm apenas o seu “enquistamento” na frustração e pretenderem, antes do mais, o desvirtuamento do “amor como força natural”. Como se observa em “A Harmonia”, a morte de Pan (a divindade que irradiava aquela imagem do amor) não é tanto consequência do aparecimento de Cristo (a divindade que referencia o amor como ética e discursividade), mas da incapacidade em conseguir a coexistência das duas divindades no horizonte humano.
 
Na sua fragilidade, estes textos realçam ainda mais como o conflito Pan/Cristo representa a angustiante contradição com que D. H. Lawrence sempre viveu: se o homem, como “coluna de carne”, não pode ocultar em si a força da Natureza, ele tem, por outro lado, necessidade de “ver”, de definir discursivamente a Natureza, de forma a não se confinar ao estatuto de “coisa”; mas, ao fazê-lo, o homem tende, de mediato, a construir um Paraíso sobre a Terra, a hierarquizar a Natureza segundo o seu olhar. Entre as duas necessidades, a obra de D. H. Lawrence visou sempre um “terceiro olhar” que as fundisse, e foi nessa ambição que ela soçobrou e se agigantou. Face a esta, as “poeiras residuais”, que se assinala na sua obra, não passam de inevitáveis resquícios de um projecto que ultrapassa a literatura e a vida.
 
Publicado no Público em 1990.
 
Título: St. Mawr e Outros Contos
Autor: D. H. Lawrence
Tradução: Clarisse Tavares
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
295 págs., esg.
 
 



segunda-feira, 16 de abril de 2018

TOM SHARPE

 
 
A CARICATURA INÚTIL
  
Uma boneca insuflável, tipo “tamanho natural”, de órgãos sexuais perturbantemente permissivos, é içada pela polícia, por meio de uma grua, dos caboclos de um edifício, e ao ser apertada, sofre, perante a perplexidade das autoridades e antes de rebentar, uma mágica mutação sexual que a transforma num ser de uma enorme exuberância fálica: é provável que o leitor, ao deparar com situações romanescas como esta, se sinta impelido, no silêncio da sua leitura, a rebentar numa sonora gargalhada, a ponto de deixar os seus familiares receosos com a sua sanidade mental. E é também natural que o leitor se sinta inclinado a classificar o seu livro, repleto de peripécias semelhantes a esta, como uma obra de “literatura humorística”.
 
É este o epíteto que é dado à obra literária de Tom Sharpe, um autor que viveu alguns anos na África do Sul, escrevendo algumas obras satíricas sobre o apartheid, mas que só granjeou um enorme sucesso a retratar ambientes britânicos, e que é considerado como um dos actuais continuadores de uma longa tradição inglesa, que vem desde Chaucer e Swift, deste género literário. O exemplo que sumariamente narrámos é retirado do seu romance Wilt, agora traduzido, e é uma das inúmeras situações romanescas que pretendem ser hilariantes.
 
O humor, mesmo quando conseguido, é uma faca de dois gumes: tanto pode ser encarado como uma das técnicas estilísticas mais envolventes e estimulantes, sinal até de uma capacidade superior de auto-análise, como, por outro lado, se pode transformar num mecanismo feroz de amesquinhamento do real.
 
É difícil perceber por completo com que intenções funciona o humor em Wilt. Não se pode dizer que seja, como, por exemplo, na primeira literatura modernista, um “reprodutor de sentidos”, desbravando caminhos estéticos novos e criando pontos de perspectiva que possibilitem inovadoras percepções do mundo e do homem. Nem, por outro lado, que exista um sentido predeterminado que oriente o efeito literário do humor para objectivos precisos, de forma a que o leitor se confronte com a perspectiva subjacente à obra.
 
Caricaturar, como no caso de Wilt, as possibilidades de uma presente permissividade, a ânsia de procurar, mesmo que de forma superficial, novos entendimentos que racionalizem certo mal-estar contemporâneo e as instituições, mais ou menos conseguidas, de formação e integração social, sem se inteligir qual o seu sentido crítico e pretendendo apenas criar um efeito hilariante no leitor, parece-nos, contudo, confinar a literatura a um projecto redutor de diversão.
 
É certo que Tom Sharpe revela possuir notáveis capacidades estilísticas, conseguindo construir os diálogos com fluidez e encadeando com habilidade peripécias divertidas, algumas delas resultantes de uma observação arguta. Mas não será muito pobre fazer de um romance um simples levantamento de mediocridades, de sombras crápulas de nós próprios, para vir acentuar que tudo “isto” não passa de um carnaval onde os dramas individuais são meras máscaras de fantoches?
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: Wilt
Autor: Tom Sharpe
Tradutor: Ana Mafalda Telo
Editor: Teorema
Ano: 1987
225 págs., € 14,90
 



quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

KINGSLEY AMIS

 
 
 
A LITERATURA COMO HALTEROFILISMO
  
Foi com a subida à cena da peça Look Back in Anger de John Osborne, em 1956, e com a tremenda polémica que motivou, que o grande público se apercebeu que aparecera uma nova geração literária, logo epitetada nos meios de comunicação social de “angry young men”, pela sua acentuada rebeldia em relação aos valores tradicionais do “establishment” britânico. Esta geração, com um humor muito cáustico e amargo, insurgia-se contra o modelo de democracia e de prosperidade que a Inglaterra dos anos cinquenta ostentava “para dentro”, como consequência gloriosa dos sacrifícios exigidos à população pela participação na II Guerra Mundial, e contra uma integração ilusória que aquele modelo demagogicamente permitia a elementos afortunados dos sectores sociais mais baixos.
 
Os “angry young men” vão, assim, caracterizar-se pela criação de um certo tipo de personagens, na generalidade jovens em ascensão social, oriundos de meios rurais humildes, mais ou menos desenraizados, e com uma dolorosa (e revoltada) consciência de que a sua afirmação social é só vagamente consentida. De facto, era este o elemento identificante das primeiras obras de autores como o já referido John Osborne, ou de romancistas como Kingsley Amis, John Wain, John Braine e Allan Sillitoe, e que Colin Wilson, no famoso ensaio The Outsider, procurou fundamentar em termos teóricos.
 
Mas, pelas brechas abertas por esta geração, irrompeu o mar tumultuoso dos “sixties”, modificando não só profundamente a paisagem social inglesa, como revelando também que esta geração era só uma equívoca e ocasional manifestação de um determinado contexto social. Em breve se tornou notório ser muito mais aquilo que os separava do que aquilo que os unia, e que o seu posicionamento era muitas vezes antagónico.
 
Um caso típico desta situação é o de Kingsley Amis: Lucky Jim (traduzido no início da década de sessenta para português com o título O Felizardo), o seu primeiro romance, foi considerado como uma das mais brilhantes obras iniciais da literatura inglesa deste século e, ao mesmo tempo, como um dos expoentes da produção dos “angry young men”.
 
Mas, de imediato, Kingsley Amis denunciou a pretensão de o identificar com os restantes autores desta geração e com as suas ambições de transformação social; e afirmou que o seu objectivo, ao redigir Lucky Jim, fora apenas o de construir um romance humorista que satirizasse certas situações de ambição social e de oportunismo.
 
Desde essa altura, Kingsley Amis elaborou uma vasta obra, muitas vezes de forma empenhada em termos conservadores, mas, quanto mais não seja, pela utilização permanente do humor e da sátira, brilhantemente iconoclasta e não de todo ajustável, apesar das constantes afirmações do autor nesse sentido, com os valores tradicionais. Com um grande sentido oficinal da escrita, a obra de Kingsley Amis abrange todos os géneros literários, sem pôr nunca em questão os modelos clássicos, e adquiriu, talvez por isso mesmo, uma grande respeitabilidade no meio literário britânico. A prova, de tudo isto, é que, mais de trinta anos passados sobre o início da sua carreira literária, obteve, em 1986, o Booker Prize pelo seu romance The Old Devils.
 
Contudo, algumas obras deste autor, como é o caso de O Crime do Século agora traduzido, sofrem excessivamente de uma concepção literária que tem alguma coisa a ver com a ultrapassagem de limites típica do halterofilismo. Note-se, por exemplo, que o próprio autor afirma, com bastante humor, na introdução a este romance, que os objectivos da sua elaboração se circunscrevem à superação de cada vez maiores dificuldades literárias, como se necessitasse de testar o seu pulso e a sua técnica.
 
O Crime do Século foi publicado pela primeira vez como folhetim, no “Sunday Times”, e pretendia, com os meios literários o mais depurados possível, apresentar um caso policial de enorme dificuldade de resolução e que envolvesse um número substancial de personagens e situações dramáticas. Assim, em redor de um conjunto de crimes perpetrados de forma semelhante e, eventualmente, pelo mesmo assassino, Kingsley Amis constrói uma hábil e complexa estrutura romanesca, muito empolgante, mas que, no final de contas, não passa (nem provavelmente pretende ser outra coisa) de um perfeito exercício.
 
Creio, por isso, que o leitor português merecia conhecer outras obras de Kingsley Amis muito mais interessantes do que esta, e, se possível, com uma tradução mais cuidada do que a presente. Por que não, por exemplo, traduzir The Old Devils, o último grande romance deste autor?
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
 
Título: O Crime do Século
Autor: Kingsley Amis
Tradutor: Wanda Ramos
Editora: Presença
Ano: 1988
159 págs., esg.
 



domingo, 19 de novembro de 2017

WILLIAM GOLDING

 
 
 

O DESPERTAR DO MEDO
 
A receptividade da crítica e do público à obra ficcionista de William Golding tem-se revelado bastante irregular e são, sem dúvida, resultantes dessa flutuação, as objecções à concessão do Prémio Nobel a este autor. Mas perante a dimensão criativa, no contexto da literatura inglesa e universal, do seu primeiro romance, O Deus das Moscas, agora reeditado pela Portugália, numa excelente tradução de Luís de Sousa Rebelo, toda esta discussão “cosmopolita” se revela bem irrelevante.
 
Remetendo para uma longa tradição inglesa (que vem desde Swift e Defoe), William Golding constrói uma parábola que pretende situar as motivações para o social do Homem: um grupo de crianças, em consequência da queda de um avião, encontra-se perdido numa ilha deserta e paradisíaca, e é obrigado, para sobreviver, a gerar uma sociedade, em que a “adulta”, a estabelecida, só existe como reminiscência desejada.
 
Um búzio, tocado por Rafael, reúne os sobreviventes e motiva a primeira assembleia que estabelece o objectivo social fundamental - manter sempre acesa uma fogueira como sinal de existência para o exterior e para a salvação -, tornando-se na representação simbólica do poder: aparecem assim as primeiras instituições orientadas para atingir um objectivo colectivo.
 
Mas, passado um primeiro momento de certeza e de felicidade, o “medo” do que não se entende, a “fera” desconhecida que torna todos perecíveis, alastra por todo o grupo, fazendo rebentar conflitos que até aí estavam apenas latentes e que gangrenam os ainda mal delineados corpos sociais.
 
Face a este espectro, duas atitudes existenciais se confrontam: uma, representada por Rafael, que pretende, nunca perdendo de vista os objectivos sociais definidos, colocar dentro dos limites de uma certa racionalidade a própria dinâmica produzida no grupo pelo medo; a outra, representada por Jack, que, ritualizando o desejo sangrento de matar, pretende obliterar, de um modo irracional, todos os terrores.
 
Esta última atitude, embriagando o grupo num festim de sangue e fogo, faz desabrochar instintos primordiais e revela-se mais forte e anímica pelo gozo brutal que transmite de asfixiar o que não se entende. Os naturais inimigos desta atitude são, por isso, inconscientemente eliminados: Simão ou a capacidade de tornar inteligível o que os outros temem mesmo formular; Bucha ou a capacidade criativa e pragmática de concertar as energias colectivas.
 
Simão, de um modo profético, intuíra qual a fera que todo o grupo temia: a aparente soberania do acto de matar e o destemor irracional perante a morte, ocasionando o desrespeito pelo Outro como necessário desconhecido. Era este o deus das moscas que existe em cada um e que, desde que se transforme em dominante em termos colectivos, leva à consumação da racionalidade que fundamenta o social: a perseguição de Rafael, garante fiel da fogueira, e a devastação da ilha são o inevitável culminar de todo este processo.
 
É supérfluo, portanto, o pessimismo que apontam estas páginas de William Golding. É natural que a ascensão de formações socio-políticas totalitárias e a própria II Guerra Mundial tenham condicionado, pela ambiência produzida, a gestação deste romance. Mas o que nele ressalta é a caracterização pertinente do que mais profundo existe na própria dinâmica socio-política - e, neste aspecto, torna-se um contraponto interessante à obra de Orwell.
 
Saliento, por fim, o importante prefácio de Luís de Sousa Rebelo, situando O Deus das Moscas no contexto da literatura inglesa e analisando-o com rigor. Pena é que esta reedição apressada não tenha permitido reactualizar um texto com mais de vinte anos.
 
Publicado no Expresso em 1984.
  
Título: O Deus das Moscas
Autor: William Golding
Tradução (e prefácio): Luis de Sousa Rebelo
Editor: Portugália Editora
Ano: 1984
266 págs., esg.
 
 


sexta-feira, 20 de outubro de 2017

DORIS LESSING

 
 
 

A FERIDA ORIGINÁRIA E A COMPENSAÇÃO IDEOLÓGICA

 

O terrorismo, pela imensa angústia quotidiana que provoca, tem motivado, nos últimos anos, uma intensa actividade editorial, onde se procura caracterizar o fenómeno. Semelhante circunstância advém, antes do mais, da certeza de que ele é resultante de dois factores culpabilizantes do mundo contemporâneo: a incapacidade da actual sociedade em integrar certos grupos, para que tenham outros meios de afirmação social e política que não seja a violência, e a consciência de que os argumentos, que legitimam essa violência terrorista, entroncam em algo essencial do processo filosófico e ideológico ocidental.

 
Doris Lessing, dentro da vertente realista da sua prolífera obra, resolveu também agora, em A Boa Terrorista, debruçar-se sobre este assunto. Mas, tal como nos restantes romances, onde pretende, no essencial, fazer o levantamento das motivações do mal-estar contemporâneo, o que lhe interessa é explicitar quais os mecanismos caracteriais que estão por detrás do terrorismo, em particular, aqueles que facilitam uma tão convicta adesão a princípios ideológicos que tornam, por consequência, natural o uso da violência.

 
Através das peripécias de um grupo de “squatters” de extrema-esquerda (que, enquanto ocupa uma casa devoluta e pronta a demolir, tenta entrar em contacto com o I.R.A., com o intuito de tornar-se um dos seus braços armados na Grã-Bretanha), vai percebendo-se que existe um denominador comum na maioria deste conjunto de personagens: eles são estigmatizados por uma “ferida” (que pode ser a negritude, a homossexualidade assumida como vida oculta, a histeria, etc.) que lhes impossibilita a integração social e os impele à desagregação psicológica e física. A ideologia torna-se, aparentemente, a via para suster essa desagregação, visto que lhes dá uma ilusão de omnisciência que justifica a sua marginalidade: sentem-se no palco da História e a euforia, daí resultante, não só lhes provoca uma completa inconsciência sobre os efeitos da sua acção, como também origina, no contraste com a realidade medíocre em que vivem, alguns episódios de intensa comicidade e que pontuam este trágico romance (recordo, por exemplo, a forma como são manipulados, pelos “profissionais” da violência, os míseros resultados mobilizadores das suas manifestações, a dimensão grupuscular dos seus Congressos, etc.). Mas, de facto, a ideologia é, através de um circuito perverso, o escoador fácil para as suas pulsões de auto-destruição, visto que a perfeição revolucionária é encarada como o estádio do martírio extremo. Neste sentido, Faye, a militante que se deixa imolar na própria bomba que lança, é a mais consequente, porque, com o seu acto, conseguiu, com uma convicção brutal, dar cabo da sua insuportável existência.

 
No contexto deste grupo, Alice, a personagem principal de A Boa Terrorista, distingue-se, visto que a sua “ferida” é resultante da sua sexualidade branca que, não só a leva a repudiar o sexo por ser uma “via de perdição”, como também a afasta do percurso (normalizado) dos seus pais. A sua necessidade de uma afectividade assexuada leva-a, por isso, a aproximar-se deste grupo de “squatters” e a empenhar-se (de forma quase solitária) na reconstrução de uma casa - espaço onde pretende constituir uma teia de relações de “camaradagem” que funcione como casulo em relação a um universo que lhe exige uma presença como figura sexuada. Talvez porque a sua “ferida” vai cicatrizando com a reconstrução da casa, Alice é a única que consegue perceber a dimensão absurda da violência que os outros membros do grupo necessitam como exigência visceral.

 
No fundo, é provável que este romance de Doris Lessing nada traga de inovador sobre o tema do terrorismo. Mas é inegável que a sua capacidade expressiva na pormenorização das situações (talvez, aqui e além, essa pormenorização se revele pouco funcional, tornando a leitura de A Boa Terrorista por vezes monótona) e, principalmente, a eficácia da sua estrutura dramática lhe dão uma dimensão invulgar e comprovam que Doris Lessing é também, entre outros aspectos, uma das mais importantes escritoras realistas da literatura contemporânea.

 
Por fim, gostaria de referir que, mais uma vez, as Publicações Europa-América revelam uma concepção ultrapassada da actividade editorial e um notório desrespeito pelas exigências do actual público leitor. Como é possível continuar a fazer edições onde a capa nada tem a ver com o conteúdo (alguém é capaz de explicar por que aparece um robot do Blade Runner na capa deste romance?), sem qualquer revisão, tipográfica ou outra, e com traduções feitas a granel?

 

Publicado no Expresso em 1988.

(Foto da Autora de Louis Monier).

 

 

Título: A Boa Terrorista
Autor: Doris Lessing
Tradutor: Bernardette Pinto Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
299 págs., € 17,67
 
 




terça-feira, 16 de maio de 2017

LAWRENCE DURRELL 2

 
 
 

UM OLHAR TAO
  
Se tentarmos desvendar caminhos na floresta narrativa e poética de Lawrence Durrell, logo perceberemos que um dos mais importantes é a senda em que busca estabelecer com os lugares uma consonância onde a individualidade respira ao ritmo da “harmonia mundi”, compenetrando-se dos diversos “deus loci” (título de uma das suas colectâneas de poemas) e formando com eles um pleno e primordial ser. Esta “poiesis”, que, no essencial, pretende descobrir a espiritualidade da matéria, explica, em grande parte, o percurso existencial e artístico de Lawrence Durreil: peregrino do Sol, este irlandês nascido na Índia vai procurar por todo o Mediterrâneo e por todas as doutrinas não-racionalistas (desde os pré-socráticos à gnose, passando pelas filosofias orientais) a consubstanciação da sua maneira de pensar e sentir.
 
É certo que Lawrence Durrell sempre reconheceu a existência do Príncipe das Trevas na matéria e nos interesses materiais (é essa uma das obsessões do Quinteto de Avinhão). Mas a redenção pelo sacrifício e pela morte, enraizada na civilização ocidental pelo cristianismo, como via para extirpar a sua presença, sempre lhe pareceu abjecta e aquela que, pelo contrário, mais a favorece. Por isso, Lawrence Durrell tem defendido a necessidade de ultrapassar uma ética categórica e de reconhecer, como os gnósticos, a existência de contrários, sendo esta não só a melhor forma de reduzir a acção de Lucifer, como aquela que permite ao homem atingir a plenitude no seio da Natureza.
 
Procurar, através da contenção, a sintonia da energia individual e cósmica, como forma de estabelecer uma comunicabilidade empática e não apenas verbal e racional, desejar a plenitude (e porque não a imortalidade?) nesta vida, pela integração de contrários e pelo não-agir, são princípios fundamentais do taoismo e Um Sorriso nos Olhos da Alma, o breve conjunto de recordações e reflexões agora traduzido e editado, confirma-nos que esta doutrina nunca andou longe do pensamento de Lawrence Durrell.
 
Os dois encontros (um com o taoista Jolan Chang, outro com uma mulher enigmática, aparentemente ocasional, obcecada pela paixão de Nietzsche por Lou Andreas-Salomé, que percorre com o autor o lago de Orta, onde o filósofo alemão se teria declarado) e a deslocação a um templo tibetano na região de Autun, em redor dos quais se tece o fio condutor de Um Sorriso nos Olhos da Alma, são narrados como situações paradigmáticas das potencialidades comunicacionais de Tao. E é aqui que, em particular, intervém a já habitual magia verbal deste autor, ao transformar as descrições de ambientes e paisagens em verdadeiros cenários interiores, em conseguir arrastar o leitor na expressão exaltada dos afectos, do amor físico, da mulher.
 
Mas se as páginas mais interessantes e polémicas de Um Sorriso nos Olhos da Alma são as relacionadas com o amor físico e a mulher (a necessidade da “piedade” no amor, a importância de um orgasmo que não seja uma mera manifestação ejaculatória, a concepção da mulher como “guia sobrenatural do homem”, a afirmação da heterossexualidade como pedra de base do universo), são também elas que revelam a fragilidade do posicionamento de Lawrence Durrell e a sua incompreensão em relação a alguns dos actuais valores sociais. A sua pretensão em transformar-se num “guru”, que, vindo de outros mundos e outros tempos, procura apontar uma metafisica alternativa, fá-lo afundar-se numa outra ética categórica, diferente, é certo, da cristã, mas que à mesma lança para os braços do Príncipe das Trevas uma boa parte da realidade que ele não quer, ou não consegue, entender como “contrária” ao seu modo de pensar.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Um Sorriso nos Olhos da Alma
Autor: Lawrence Durrell
Tradutor: Helena Cardoso
Edição: Quetzal Editores
Ano: 1990
105 págs., esg.
 
 


LAWRENCE DURRELL 1

 
 
 
 
A BALEIA DE JONAS DA FICÇÃO
 
Lawrence Durrell é um autor que, desde a publicação de O Quarteto de Alexandria, tem provocado, entre os críticos e analistas literários, posições radicalmente opostas: enquanto alguns saudaram, de imediato, esta obra como um dos futuros clássicos da literatura contemporânea, outros apontaram-na como um produto de exótica fancaria e consideraram que o seu esplendor estilístico funcionava apenas como um hipnótico olhar de gato, escondendo um total vazio.
 
De qualquer modo, é certo existir no autor de O Quinteto de Avinhão, do qual agora se publicou o terceiro volume, uma ambição com laivos de “démodé”: a de redigir uma obra que contenha uma interpretação globalizante da realidade, que consiga estruturar com ela o próprio fio narrativo, e, assim, imprima, dentro da contemporaneidade, uma presença única e indelével. Talvez esta seja, no fundo, a pretensão de qualquer escritor; mas o excessivo desejo narcísico de se assumir como o profeta duma metafisica do presente, demarcando demasiado aquela pretensão, fragiliza imenso a imagem deste autor.
 
Porque, de facto, há, em Lawrence Durrell, uma incapacidade clara de transformar a sua reflexão num sistema de valores: como se torna notório neste Constance ou Práticas Solitárias, as suas obras parecem, por vezes, puras vulgarizações, neste caso do pensamento gnóstico e da psicanálise, transmitida pela palavra de personagens tratadas como deuses ou sábios.
 
Simplesmente, confinar-se a análise deste autor às suas fragilidades é, por estreiteza de visão, bem injusto. Lawrence Durrell concebeu duas obras, O Quarteto de Alexandria e a actual O Quinteto de Avinhão, que são, para lá de tudo o que se possa dizer, de uma desmesurada dimensão criativa e que, em registos qualitativos diferentes, alargaram a concepção da estrutura romanesca.
 
Talvez não seja este o momento indicado para analisar a estrutura romanesca de O Quinteto de Avinhão (visto que ainda está em curso a sua publicação), nem para fazer o levantamento dos principais tópicos da sua obsessiva reflexão. Contudo, parece-me importante assinalar que esta obra, como a restante produção de Lawrence Durrell, se constitui na busca duma paisagem original, de um lugar onde haja uma perfeita sintonia entre o corpo e a terra. É possivel que esta busca, como pretende o autor, seja resultante do pensamento gnóstico, que entende que o homem se encontra, de um modo irremediável, perdido num mundo desvirtuado pelo Príncipe das Trevas e que a sua absurda tarefa metafisica é libertar-se dele. Mas também é possível que ela seja apenas motivada pelo confronto de uma sensibilidade formada nos padrões culturais britânicos com o espaço mediterrânico, e que tenha provocado, em Lawrence Durrell, uma definitiva “desterritorialização”.
 
Constance ou Práticas Solitárias prolonga a visão dualista da realidade que o autor já encenou nos dois anteriores volumes de O Quinteto de Avinhão. Através do percurso de uma discípula de Freud, a que dá título a este volume, entre uma Avinhão ocupada pelos nazis e uma Genebra neutral, onde estabelece uma relação amorosa com um banqueiro egípcio convertido à gnose, embate-se, mais uma vez, duas racionalidades, duas formas de compreender esses instantes de revelação da incompletude do ser que são o amor e a morte. Ao mesmo tempo, assiste-se ao ininterrupto diálogo entre dois escritores, projecções um do outro, um com o corpo lesionado, outro com a “alma ferida”, e que vão reconhecendo, por vias diferentes, que a sua “excreção” literária é um derivativo da sua impossibilidade de restaurar o primordial andrógino, a perfeita união amorosa.
 
Mas com esta dramatização de personagens, com experiências civilizacionais distintas e antagónicas, ressalta, mais uma vez, todo um conjunto torrencial de pistas e alusões com que Lawrence Durrell procura desvendar aquilo a que chama “o espírito do Lugar”. Foi este trabalho de busca de uma “matriz”, de um Paraíso perdido em que a mulher seja a via para a harmonia, e a incessante reflexão que a motivou, assente numa enorme erudição, mas, em especial, servida por um fulgurante instrumento retórico, que, ao aflorar ou aprofundar tantas zonas obscuras, mas essenciais da sensibilidade contemporânea, marcou este autor com um dos mais fascinantes destinos literários da actualidade.
 
No entanto, note-se por curiosidade, Constance ou Práticas Solitárias tem algumas incongruências narrativas, verdadeiras falhas de “raccord” (que levam o tradutor, em defesa dele, a apontá-las em nota de rodapé), mas que parecem tão importantes como as “fífias” de um exímio pianista. A edição portuguesa revela uma tradução esforçada, e muitas vezes conseguida, de um estilo que não poucas vezes atinge o preciosismo. Há, contudo, que lamentar a proliferação de gralhas que, de forma sistemática, perturbam a compreensão do texto.
 
Publicado no Expresso em 1986.
 
 
Título: Constance ou Práticas Solitárias
Autor: Lawrence Durrell
Tradutor: Daniel Gonçalves
Editor: Difel
Ano: 1986
410 págs, € 16,11
 
 



segunda-feira, 24 de abril de 2017

MURIEL SPARK

 
 

DESILUSÃO E TRAIÇÃO

 

Uma das vertentes da insularidade literária britânica é a preponderância, num meio dominantemente anglicano e presbiteriano, de autores católicos. É evidente que o estatuto minoritário desta confissão provoca outra sensibilização aos seus atributos; mas esta simples razão não pode compreender a orientação católica de obras tão diversas como as de Graham Greene, Evelyn Waugh, Anthony Burgess ou Muriel Spark, a autora de Miss Jean Brodie Na Flor da Idade. A arriscar uma hipótese, talvez seja mais fácil encontrá-la na necessidade destes autores se distanciarem do presente universo de compromisso burguês, e, por isso mesmo, de assumirem uma moral mais identificada com uma Inglaterra aristocrática, pré-industrial.

 
De origem escocesa, Muriel Spark pertence à mesma geração literária de Iris Murdoch e desde a década de cinquenta que é aclamada pela sua versatilidade estilística e pela aguda sensibilidade na definição de personagens e situações. Formada em meio presbiteriano, converteu-se já tarde ao catolicismo, e esta confissão religiosa tem-lhe servido, mais como instrumento da análise do que de juízo, para a caracterização de grupos sociais fechados, sempre ligados a um determinado espaço concreto (nos primeiros títulos, situados na Escócia e na Inglaterra, depois, na Itália, para onde foi viver), com que ela vem compondo uma vasta obra, onde se destacam os títulos Memento Mori, The Abbess of Crewe e precisamente este Miss Jean Brodie Na Flor da Idade.

 
Miss Jean Brodie é professora de ensino preparatório, na década de trinta, numa escola feminina particular de Edimburgo. Convencida que se encontra na “flor da idade” e que, portanto, está na melhor altura para realizar a sua vocação, resolve dedicar-se a um grupo eleito de alunas, onde se refugia a aplicar os seus métodos pedagógicos e a estabelecer as cumplicidades necessárias para fazer delas a “crème de la crème”. No entanto, considerada demasiado aberta e irreverente, Miss Jean Brodie sofre a perseguição da direcção da escola e teme, por isso, que os seus métodos sejam denunciados pelas suas alunas e, desse modo, obrigada a abandonar o ensino.

 
Com este tema na aparência banal, Muriel Spark, assumindo a concepção tradicional de que a arte narrativa é, no essencial, a arte de encenação dos conflitos éticos, vai construindo este romance em torno do sentido de comportamentos caracterizáveis pelos conceitos de dedicação e traição, revelando como estes não são oponentes, mas, a seu modo, perigosamente confluentes.

 
Como é natural, Miss Jean Brodie, ao dedicar-se às suas alunas, incute-lhes um conjunto de valores que define uma ordem universal, capaz de as transformar em seres de excepção. Essa ordem é entendida como perfeita e verdadeira, não só, obviamente, por Miss Jean Brodie, mas também, em consequência da sua inexperiência e do poder tutelar da professora, pelo grupo das suas alunas que se sente, assim, personalizado e único. Este estatuto determina-lhes, porém, uma obrigação moral: não trair a ordem universal que lhes é transmitida, não trair, portanto, Miss Jean Brodie.

 
Mas o crescimento e a agudização do espírito crítico das alunas vão permitir-lhes perceber que a concepção idealisticamente romântica e heroica da vida, com que Miss Jean Brodie as formou, não é assim tão perfeita, nem tão verdadeira: por exemplo, a crueza dos factos demonstrou-lhes como era perecível o seu fascínio pelo fascismo e o escamoteamento da materialidade sexual das relações afectivas revelou-lhes o logro e o desajuste daquela concepção. Foi a gradual certeza de que a dedicação de Miss Jean Brodie, ao determinar-lhes a sua formação caracterial e, por conseguinte, o seu posterior percurso, foi, a seu modo, uma forma terrível de traição, que levou a que o grupo das alunas deixasse de sentir obrigações morais para com ela: a traição da professora por uma delas, alguns anos mais tarde, é o natural corolário de todo este processo.

 
Miss Jean Brodie Na Flor da Idade permite, assim, a Muriel Spark explicitar a sua convicção de que todo o comportamento intersubjectivo é, seja qual for a sua intenção e intensidade, a transmissão de uma ilusão traiçoeira, merecedora de toda a compaixão humana (e divina).

 
O universo particular que este romance indicia, mas, em particular, a sua fluidez estilística, ocultando um rigor onde nenhum elemento narrativo está em redundância, faz de Miss Jean Brodie Na Flor da Idade uma das ficções mais cativantes das ultimamente traduzidas: repare-se, por exemplo, no tratamento complexo da temporalidade, onde as permanentes prolepses e analepses dão uma enorme dinâmica narrativa, ou na subtil transformação das personagens, feita em redor de “clichés” e “leitmotivs” (com que é habitual organizar-se o pensamento adolescente). Pena é que a tradução, revelando, algumas vezes, soluções mais frágeis, não satisfaça de um modo integral as gradações estilísticas da escritora.

  

Publicado no Expresso em 1988.

(Foto da Autora de Dmitri Kasterine). 

 

Título: Miss Jean Brodie Na Flor da Idade
Autor: Muriel Spark
Tradução: Wanda Ramos
Editor: Ed. Presença
Ano: 1988
150 págs., esg.