segunda-feira, 16 de abril de 2018

TOM SHARPE

 
 
A CARICATURA INÚTIL
  
Uma boneca insuflável, tipo “tamanho natural”, de órgãos sexuais perturbantemente permissivos, é içada pela polícia, por meio de uma grua, dos caboclos de um edifício, e ao ser apertada, sofre, perante a perplexidade das autoridades e antes de rebentar, uma mágica mutação sexual que a transforma num ser de uma enorme exuberância fálica: é provável que o leitor, ao deparar com situações romanescas como esta, se sinta impelido, no silêncio da sua leitura, a rebentar numa sonora gargalhada, a ponto de deixar os seus familiares receosos com a sua sanidade mental. E é também natural que o leitor se sinta inclinado a classificar o seu livro, repleto de peripécias semelhantes a esta, como uma obra de “literatura humorística”.
 
É este o epíteto que é dado à obra literária de Tom Sharpe, um autor que viveu alguns anos na África do Sul, escrevendo algumas obras satíricas sobre o apartheid, mas que só granjeou um enorme sucesso a retratar ambientes britânicos, e que é considerado como um dos actuais continuadores de uma longa tradição inglesa, que vem desde Chaucer e Swift, deste género literário. O exemplo que sumariamente narrámos é retirado do seu romance Wilt, agora traduzido, e é uma das inúmeras situações romanescas que pretendem ser hilariantes.
 
O humor, mesmo quando conseguido, é uma faca de dois gumes: tanto pode ser encarado como uma das técnicas estilísticas mais envolventes e estimulantes, sinal até de uma capacidade superior de auto-análise, como, por outro lado, se pode transformar num mecanismo feroz de amesquinhamento do real.
 
É difícil perceber por completo com que intenções funciona o humor em Wilt. Não se pode dizer que seja, como, por exemplo, na primeira literatura modernista, um “reprodutor de sentidos”, desbravando caminhos estéticos novos e criando pontos de perspectiva que possibilitem inovadoras percepções do mundo e do homem. Nem, por outro lado, que exista um sentido predeterminado que oriente o efeito literário do humor para objectivos precisos, de forma a que o leitor se confronte com a perspectiva subjacente à obra.
 
Caricaturar, como no caso de Wilt, as possibilidades de uma presente permissividade, a ânsia de procurar, mesmo que de forma superficial, novos entendimentos que racionalizem certo mal-estar contemporâneo e as instituições, mais ou menos conseguidas, de formação e integração social, sem se inteligir qual o seu sentido crítico e pretendendo apenas criar um efeito hilariante no leitor, parece-nos, contudo, confinar a literatura a um projecto redutor de diversão.
 
É certo que Tom Sharpe revela possuir notáveis capacidades estilísticas, conseguindo construir os diálogos com fluidez e encadeando com habilidade peripécias divertidas, algumas delas resultantes de uma observação arguta. Mas não será muito pobre fazer de um romance um simples levantamento de mediocridades, de sombras crápulas de nós próprios, para vir acentuar que tudo “isto” não passa de um carnaval onde os dramas individuais são meras máscaras de fantoches?
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: Wilt
Autor: Tom Sharpe
Tradutor: Ana Mafalda Telo
Editor: Teorema
Ano: 1987
225 págs., € 14,90