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domingo, 20 de agosto de 2017

J. M. COETZEE 4

 
 
 

A BÁRBARA REJEIÇÃO
  
Quando, como nos dias de hoje, se observa uma valorização, quase indiscriminada, de toda a produção literária que, em exclusivo, se centra na tónica do romanesco, sem se considerar que esta sempre dominou a literatura do consumismo e do mero entretenimento, tem um prazer redobrado na leitura, a contra-corrente, deste último romance traduzido de J. M. Coetzee.
 
Não porque a parábola de À Espera dos Bárbaros não tenha uma elevada dimensão de romanesco; mas porque, associando uma notável capacidade de aludir e impressionar o leitor pelas ambiências criadas a uma sobriedade estilística bem próxima de um certo Faulkner (o de O Santuário, por exemplo), consegue compreender de um modo radical, e através de uma espécie de retorno aos “universais”, certas relações, bem identificáveis e socialmente preocupantes, como a violência, a ordem social assente na prepotência, os estatutos e a estreita ligação do carrasco e da vítima, etc. Tudo isto, esquivando-se a um registo simplista e a um realismo maniqueísta que, por todas as razões, a vivência social deste autor sul-africano poderia solicitar, e atingindo, por uma inovadora recriação do real, uma mais exigente denúncia dos regimes baseados numa brutal descriminação.
 
O quadro narrativo de À Espera dos Bárbaros permite ao autor debruçar-se sobre o comportamento de solidariedade (que é habitual considerar como inerente às “sensibilidades” de esquerda) de um vulgar e pouco ambicioso magistrado de uma pequena cidade de fronteira que, perto do final da sua vida, se sente impelido a “proteger” os “bárbaros”, povo indígena e nómada, das torturas e brutalidades que, os seus “naturais” aliados, os defensores do Império, vão realizando com o intuito de descobrir uma fantasmática invasão. É desse modo, cegamente, tal como acontece na África do Sul com o regime de “apartheid”, que os defensores do Império vão transformando uma ficção justificativa da sua existência numa realidade auto-destrutiva.
 
No entanto, esse comportamento do magistrado é entendido, por parte das vítimas, com perplexidade ou como uma forma perversa de prolongar as torturas do coronel Joll, o chefe dos defensores do Império, e, por conseguinte, encarando-o como sendo a outra face de uma moeda de opróbrio. Além disso, todas as suas tentativas de deserção para o “campo” dos “bárbaros” vão revelar-se sem sentido: ninguém esperará o magistrado nas suas tentativas de fuga, nem ele próprio entende o sentido histórico daquele povo. Nunca as deserções poderão ser existenciais, mas apenas éticas, e, portanto, o que o espera, é um aglomerado indecifrável de sinais produzidos pelo outro povo, um inexplicável amontoado de vestígios arqueológicos no meio do deserto.
 
Essa aproximação à vítima, por parte do magistrado, revela-se também como uma forma desviada de um outro querer, resultante da curiosidade intelectual ou até mesmo do desejo, mas que, ao assumir uma rota “humanitária”, o torna impotente (algumas das páginas mais brilhantes deste romance são as que escrevem as emoções e os sentimentos do magistrado por uma jovem vítima de tortura, com quem estabelece uma relação muito ambígua, feita de uma vontade mórbida de perceber e interiorizar o sofrimento do outro, de purificá-lo pela ternura e por um desejo inconclusivo).
 
Por fim, toda a sua “humanitária” solidariedade lhe aparece na sua asserção radical: esse comportamento é uma opção entre formas diversas de morte. De facto, o magistrado não entende como não se morre de náusea por excesso de cumplicidade com a tortura (é essa a pergunta obsessiva que ele faz aos torturadores, não por mera ofensa, mas porque realmente não percebe): é por ignorância que ele é impelido a morrer na indignidade, a que o reduz a tortura e a repressão, quando obriga a sua energia orgânica a transformar-se na animalidade da busca da pura sobrevivência.
 
Torna-se, então, clara a acusação final de À Espera dos Bárbaros: todas as formas sociais, que subsistem sobre a mais opaca incompreensão do outro, provocam um pestífero alastrar da violência e da tortura a que ninguém consegue escapar.
 
Publicado no Expresso em 1986.
 
Título: À Espera dos Bárbaros
Autor: J. M. Coetzee
Tradutor: José Agostinho Baptista
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1986
136 págs., € 11,61
 
 
 
 


quinta-feira, 12 de maio de 2016

J. M. COETZEE 3

 
 
 
A LÍNGUA
 
Um dos aspectos mais interessantes da obra de J. M. Coetzee relaciona-se com a estratégia com que se coloca perante a instável realidade sul-africana. O autor procura formular cada conjuntura numa problemática nuclear, liberta de qualquer circunstancialismo, ficciona-a num contexto puramente imaginário e sem qualquer relação linear com a realidade circundante, transformando-a numa parábola com sabor mítico. Esta estratégia, sendo útil ao autor no seu esforço de se situar com maior lucidez no meio da tempestade que tem sido a Africa do Sul, dá-lhe, por outro lado, uma abrangência que a toma aliciante para qualquer leitor.
 
A Ilha, o último romance de J. M. Coetzee agora traduzido, retomando as figuras arquetípicas de Robinson Crusoé (aqui nomeado Cruso) e o seu escravo Friday, pondera as hipóteses de comunicabilidade entre universos culturais distantes e a importância existencial de possuir uma “fala”. Por isso, a experiência de náufrago de Cruso é relativamente marginal (é só a primeira parte do romance que a narra), já que para o autor o essencial é compreender por que motivo Defoe se interessou por essa história. Dai que A Ilha se centre numa personagem forjada por J. M. Coetzee, Susan Barton, a mulher que naufragou na ilha de Cruso e que, por ter sido a única sobrevivente em condições de testemunhar essa experiência, a “narrou” a Daniel Defoe.
 
Cruso funciona nesta obra como uma espécie de pólo negativo, de alteridade radical em relação as inquietações das restantes personagens: dominando a ilha, Cruso esforça-se para que a História não entre nela (isto é: não crê na comunicação, rejeita qualquer dimensão material da civilização e qualquer tipo de intervenção produtiva), aceitando a temporalidade pura que é o acaso. Como não necessita de moldar o tempo, não necessita de “fala”. Basta-lhe, como sinal da sua existência, deixar um vestígio material: os terraços que constrói para se entreter e sem nenhum fim prático.
 
É contra este projecto de existência que Susan Barton, na segunda e terceira parte de A Ilha, se insurge: ela sabe que a veracidade da sua experiência só existe na “voz” que a comunicar. Por isso, a história de Cruso e Friday, pelo silêncio que sobre ela caiu, tornou-se-lhe mais importante que a sua própria memória. De certo modo, Cruso e Friday passam a ser personagens de Susan Barton, personagens que só existem se ela conseguir convencer alguém a dar-lhes uma “fala”.
 
Neste sentido, Friday, por não ter língua, torna-se, de um modo obsessivo, mais importante para Susan Barton do que Cruso. Friday é um continente, uma personagem “pura”, visto que todas as memórias lhe podem ser forjadas. Ou por outras palavras: Friday é um escravo, na acepção mais radical desta condição, já que até a sua memória lhe foi usurpada. Porém, ao mesmo tempo, é um canibal: porque a premência que Susan Barton sente em dar existência a Friday (dando, assim, existência à sua experiência de náufraga) através de uma “fala”, devora a autonomia e a identidade dela.
 
É neste contexto que se vai processar todo o diálogo conflituoso entre Susan Barton e Daniel Defoe: até que ponto é legítimo outrem dar uma “língua” a Friday? Haverá um Friday exterior à “língua” que por ele “fala”? Entre personagem e autor, quem devora quem? De quem realmente “fala” a obra?
 
Susan Barton crê que só existe veracidade de uma experiência na obra artística; porém, se assim é, ela própria só existe na narrativa: é feita de papel e tinta, vive da volubilidade de quem a escreve. Por isso, Daniel Defoe defende que a dominação mantem-se em quem está em último lugar a transmitir a “fala”: Friday continuará escravo de quem por ele “falar”. No entanto, a própria existência de Defoe contraria isto: miserável, perseguido, doente, é as suas histórias, os fantasmas das suas personagens, a veracidade que ele constrói com a sua arte que o vampirizam, vivendo a sua custa.
 
A Ilha é um complexo, exaustivo e admirável requisitório sobre o estatuto do escritor (não é por acaso que o seu título original é Foe: a solução adoptada pela edição portuguesa, tendo algum valor polissémico, não “traduz” com rigor a intenção do autor). Porém, para lá disso, há neste romance uma ambição mais ampla de leitura do processo civilizacional, salientando que este assenta mais num universo de retóricas, num clamor de “vozes”, do que num quadro institucional, material e técnico.
 
Publicado no Público em 1993.
 (Foto do Autor de Bert Nienhuis)
 
Título: A Ilha
Autor: J. M. Coetzee
Tradutor: Marta Morgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
159 págs.,  € 11,61
 
 


segunda-feira, 31 de agosto de 2015

J. M. COETZEE 2


 
 
 

 
 
O SILÊNCIO DA VIDA
 
Em 1997 e 1998, J. M. Coetzee foi convidado pela Universidade de Princeton, para, no quadro das Conferências Tanner, proferir duas conferências sobre um problema ético que considerasse bem candente. Dessa participação, resultaram dois textos (“Os Filósofos e os Animais” e “Os Poetas e os Animais”) que compõem este volume intitulado As Vidas dos Animais (completado por reflexões muito interessantes de uma teórica da literatura, de um filósofo, de uma professora de estudos religiosos e de uma primatóloga). Mas - e aqui se manifesta as peculiaridades da personalidade literária de J. M. Coetzee - em vez de optar pela forma de ensaio filosófico (forma habitual de participar nas referidas Conferências), resolveu elaborar dois textos de metaficção, em que uma velha escritora australiana, Elizabeth Costello, vai apresentar duas comunicações num colégio americano, onde o filho é professor auxiliar. Essas comunicações são sobre um tema que cada vez mais obceca esta escritora ao ponto de provocar, em seu redor, um clima de fortíssima hostilidade: os crimes perpetrados por sistema pelos homens sobre os animais.
 
A opção de J. M. Coetzee, em apresentar duas ficções - que constituem uma pequena novela - em vez de textos ensaísticos, não é gratuita: é que o autor está absolutamente convicto de que a narrativa é uma forma literária mais perfeita do que a do ensaio filosófico para ajudar a compreender uma determinada problemática. E isto porque a ficção, sendo o instrumento ideal para tentar compreender o Outro, tem, numa reflexão sobre essa alteridade quase absoluta que é o animal (pelo menos, porque assim tem sido assumido pela história das ideias e das religiões), uma capacidade de problematizar que parece impossível à filosofia. Por isso, como refere, de modo brilhante, Marjorie Garber no seu comentário, estas conferências de J. M. Coetzee são uma brilhante reflexão sobre os limites da inteligibilidade do romance e sobre a sua eficácia em transformar mentalidades. Saliente-se que, além disso, no caso do tema particularmente polémico destas conferências, a ficção, ao permitir encenar não só os argumentos, mas também as reacções, favoráveis e hostis, dos ouvintes e dos familiares de Elizabeth Costello, expõe, como se fosse uma construção pluridimensional, a problemática que está na sua raíz.
 
Antes de avançar para o tema concreto destas conferências, ou melhor, das comunicações de Elizabeth Costello (os direitos dos animais), gostaria de chamar a atenção do leitor para o facto de esta obra, na sua brevidade, ser uma das mais complexas, arrojadas e aliciantes reflexões que se pode ler sobre este tema e que está, com a maior das sinceridades, a anos-luz dos recentes debates caseiros sobre as violências cometidas sobre animais.
 
A argumentação de Elizabeth Costello parte do pressuposto de que toda a história da filosofia (de Aristóteles a Descartes e Kant), ao reflectir sobre o animal, sofre de “homocentrismo”; isto é, avalia o animal de acordo com valores fundamentais para o homem (a consciência, a razão ou a posse de linguagem articulada), definindo assim uma hierarquia equívoca e descurando aquilo que é o elo comum entre os homens e os animais: a existência de uma “alma corporizada”, com a mesma capacidade de fruir a vida e de pertencer à harmonia musical da Natureza, e, por consequência, com idêntico pânico pela morte (mesmo que a morte possa não ser, para os animais e para os homens, “a mesma morte”) e, o que é provavelmente fundamental, com a faculdade de transmitir estes sentimentos. 
 
Se assim é, a “alma corporizada” do animal adquire o estatuto de sujeito (a consciência de si próprio não deve ser determinante para esta definição) e, em sequência, não pode ser entendida como uma simples “coisa” ao serviço do homem. Nesta circunstância, é legítimo considerar que existe no animal os atributos essenciais de uma pessoa. Ora, como é sabido, o quadro de valores da civilização ocidental sempre considerou como crime qualquer violência exercida sobre uma pessoa, dado que qualquer sujeito se sente de imediato identificado com o objecto dessa violência. A dedução lógica deste raciocínio é que qualquer violência executada sobre os animais, mesmo pelos motivos mais altruístas, deve ser assumida, em consciência, como um crime. Por fim, se se considerar que nunca foi admissível definir graduações no estatuto de pessoa, é-se obrigado a chegar à conclusão de que somos cúmplices de carrascos de uma permanente carnificina criminosa de proporções superiores às do conhecido Holocausto da II Guerra Mundial (é esta, diga-se de passagem, a analogia que Elizabeth Costello efectua, para fazer compreender a situação dos animais, e que tanto choca certas “almas sensíveis”).
 
É evidente que J. M. Coetzee não pretende, com estas conferências, apresentar uma resolução para as relações dos homens com os animais, mas apenas problematizar essas mesmas relações, levantando substanciais problemas morais.
 
Quando se recorda que a vida do homem e toda a economia mundial sempre assentou no morticínio de animais, tem-se plena consciência de como As Vidas dos Animais se aproxima dos universos da utopia. Mas será possível continuar a voltar a cara para o lado, fingindo que se desconhece, e aceitar como natural, depois de ler esta obra de J. M. Coetzee, o clamor indefeso de vida silenciosa que se ergue das pocilgas e dos aviários que nos alimentam?
 
Publicado no Público em 2000.
 
 
Título: As Vidas dos Animais
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: Maria de Fátima St. Aubyn
Editor: Temas e Debates
Ano: 2000
134 págs., esg.
 
 
 
 


terça-feira, 6 de julho de 2010

J. M. COETZEE 1




A ALEGRIA PERDIDA

Mesmo partindo do princípio já conhecido de que, civicamente, toda a realidade determina uma exigência ética, é forçoso constatar que certas realidades específicas, pelo seu grau de conflitualidade, a impõem como uma condicionante de qualquer acto social. Nestes contextos, essa exigência ética paira como uma sombra sobre a criação estética: nem produtores nem fruidores deixarão de encarar a obra artística como um instrumento ideológico funcional orientado, pelo menos, para a compreensão da realidade e, dessa forma, com a obrigação de contribuir para a superação qualitativa da referida conflitualidade. E até mesmo os criadores que pretendem assumir uma atitude de neutralismo em relação à realidade que os envolve, entendendo que a produção artística não deve estar sujeita a condicionalismos intervencionistas, sabem que nunca será essa a “leitura” que se fará da sua obra e que, pelo contrário, nem que seja pela tal pretensão de neutralidade, ela será encarada como elemento integrado na conflitualidade existente. No nosso país, houve várias gerações de criadores que sentiram na pele este clima social condicionante, assumindo-o, é certo, como um estímulo ou como um bloqueio, mas percebendo sempre que a sua obra estava inevitavelmente imbricada numa situação sociopolítica concreta.

A história da África do Sul durante o século XX é um caso bem exemplar de uma realidade que impôs uma exigência ética aos seus criadores. Se se passar em revista a poderosa literatura sul-africana deste século, e se se recordar nomes de autores como Breyten Breytenbach, André Brink, Nadine Gordimer, Bessie Heade, Christopher Hope, Mike Nicol, Njabulo Simakahle Ndebele, Alan Paton, Laurens Van Der Post ou Wally Mongane Serote, pode perceber-se como a realidade social sul-africana esteve sempre fortemente presente e como todos se sentiram impelidos à produção de uma obra claramente empenhada em contribuir para a resolução dos violentos conflitos que a atravessam.

É, tendo em consideração este contexto, que mais impressionante se torna a criatividade da obra romanesca e ensaística de J. M. Coetzee. Este autor e professor universitário de sessenta anos iniciou a sua carreira literária em meados da década de setenta com a novela Duskland; mas foi só com o romance seguinte, À Espera dos Bárbaros (todos os títulos em português são de obras editadas no nosso país), que ganhou notoriedade na África do Sul e, em termos internacionais, com o seu terceiro livro, A Vida e o Tempo de Michael K., com que ganhou o Booker Prize de 1983. Posteriormente, ampliou a sua obra nos domínios do ensaísmo e do memorialismo (onde publicou títulos marcantes como White Writing, Doubling the Point, Giving Offense, Boyhood: Scenes from Provincial Life ou o recente As Vidas dos Animais), mas continuou a ser na ficção que a sua produção literária mais se destacou: romances como Foe (que recebeu o título em português de A Ilha), A Idade do Ferro, O Mestre de Petersburgo e o recente Desgraça (com que ganhou novamente o Booker Prize - situação inédita nos 31 anos de história deste Prémio) consagraram definitivamente J. M. Coetzee como um dos mais importantes autores de língua inglesa da actualidade e, consequentemente, como um dos principais ficcionistas vivos.

Pode caracterizar-se a unidade temática da obra deste autor, através da formulação de uma pergunta: de que forma se pode compreender o Outro? Parecerá que, colocar a problemática de uma obra literária nestes termos, é uma facilidade. Mas quem tiver acompanhado a narrativa deste autor com alguma atenção, compreenderá que é esta, de facto, a sua motivação principal e que, além disso, tem, em todos os seus romances, um sentido operacional particularmente acutilante. J. M. Coetzee considera, de forma inequívoca, que esta é a questão fundamental que se coloca ao homem, muito em especial, na actual sociedade: a resolução efectiva da situação do “apartheid” e da segregação racial, por exemplo, está claramente contida na formulação social desta pergunta e na tentativa de lhe responder.

Não é possível saber-se, pela leitura da obra, se J. M. Coetzee tem uma resposta cabal a esta questão. Nem se é possível obter uma resposta definitiva. Mas é inquestionável que o autor considera a literatura, e em particular o romance, como o meio que mais pode aproximar-se dessa compreensão do Outro. Através de romances contextualizados na realidade sul-africana ou de romances alegóricos centrados em figuras literárias (Kafka, Defoe, Dostoievski), J. M. Coetzee constrói uma obra, onde cada livro é uma etapa de um processo de abordagem da “problematização” que sempre constitui o Outro, ao mesmo tempo, que, desse modo, procura contribuir para a clarificação da complexidade da realidade sul-africana (no fundo, sempre entendida como um amplo Outro que é premente compreender). Nesse sentido, talvez o romance mais conseguido, no conjunto da sua obra literária, seja A Ilha (sem detrimento da invulgar qualidade de todos os outros romances), já que, de certo modo, nele efectua uma espécie de suma poética: através da figura de Defoe e do seu esforço para conceber e construir o Robison Crusoé, J. M. Coetzee reflecte romanescamente sobre a importância de ter “voz”, e consequentemente língua (partindo do pressuposto de que a essência do homem, como pessoa, é a sua capacidade de comunicação), sobre o modo como se articula a realidade do autor e a constituição de personagens, sobre o papel da diferenciação rácica, sexual e de classe para a caracterização do Outro e, por fim, sobre a forma como a ficção, pelos mecanismos de encenação de uma outra “realidade”, permite compreender a problemática da realidade envolvente do autor/leitor, etc.

De acordo com esta ideia de que cada romance de J. M. Coetzee é uma etapa na tentativa de caracterização do Outro, percebe-se que exista, de obra para obra, um “crescendo” de deslocação para um “exterior” e que, por conseguinte, Desgraça, o último romance publicado, e onde “regressa” à realidade actual sul-africana, seja invulgarmente incómodo. Incómodo porque coloca em situação personagens a que não se adere com facilidade (o título alude não tanto às “calamidades” que sucedem às personagens, mas mais à sua situação de perda de “graça” - no sentido em que habitualmente é utilizado em contextos teológicos, mas que aqui tem uma exclusiva conotação social) porque afrontam as nossas consciências bem-pensantes e até aquilo que se considera como “politicamente correcto”. De facto, perante as catástrofes sociais que lhe sucedem, a personagem principal – um cinquentão professor universitário de literatura que, em consequência de se ver envolvido num “escândalo amoroso” com uma aluna, é expulso do ensino – só consegue superar a perplexidade que o esmaga e encontrar um percurso de subsistência, coerente com a sua consciência, ao procurar denodadamente compreender a motivação dos outros, ou, por outras palavras, quando se sente capaz de reconstruir o seu sentido, transformando-os de entidades opacas – e gratuitamente adversas – em sujeitos similares a si (no fundo, ao efectuar um esforço de abordagem que, de certo modo, “mimetiza” o trabalho do próprio escritor). As represálias, originadas por preconceitos de idade e de estatuto, do meio familiar e afectivo da sua namorada, a assassina violência racista em que se vê envolvido ou as opções de desistência e resignação da filha, perante a brutalidade degradante a que a sujeitam, só podem ser aceites pela personagem principal quando, num esforço de interpretação, assume os outros como pessoas e se aproxima da carga de sofrimento e de dor que profundamente os motiva.

É a existência desta dor como lastro de todos, seja em que lado da barricada se encontrem, que o antigo professor universitário descobre, na já famosa cena do matadouro, onde, depois de uma vertiginosa descida de estatuto social, aparece a “trabalhar”: no olhar dos animais, que ele encaminha para a morte, constata o mesmo pânico, a mesma necessidade de afecto, a mesma fúria ou a mesma vítrea desistência que ele próprio também já sentiu. No essencial, aqueles corpos, abandonados ou feridos, apenas alvejam (e lhe comunicam) voltar a sentir a alegria perdida e que pressentem, a caminho da morte, como perca definitiva. O que o olhar dos animais lhe transmite, é que, de uma forma diferente da sua, são também sujeitos e que a dor deles é tão real como a que ele próprio sente: aquilo que a personagem principal descobre no olhar dos animais é a sua humanidade.


(Publicado no Público em 2000)


Título: Desgraça
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: José Remelhe
Revisão literária: Ana Maria Chaves
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2000
229 págs., € 16,00