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domingo, 20 de agosto de 2017

J. M. COETZEE 4

 
 
 

A BÁRBARA REJEIÇÃO
  
Quando, como nos dias de hoje, se observa uma valorização, quase indiscriminada, de toda a produção literária que, em exclusivo, se centra na tónica do romanesco, sem se considerar que esta sempre dominou a literatura do consumismo e do mero entretenimento, tem um prazer redobrado na leitura, a contra-corrente, deste último romance traduzido de J. M. Coetzee.
 
Não porque a parábola de À Espera dos Bárbaros não tenha uma elevada dimensão de romanesco; mas porque, associando uma notável capacidade de aludir e impressionar o leitor pelas ambiências criadas a uma sobriedade estilística bem próxima de um certo Faulkner (o de O Santuário, por exemplo), consegue compreender de um modo radical, e através de uma espécie de retorno aos “universais”, certas relações, bem identificáveis e socialmente preocupantes, como a violência, a ordem social assente na prepotência, os estatutos e a estreita ligação do carrasco e da vítima, etc. Tudo isto, esquivando-se a um registo simplista e a um realismo maniqueísta que, por todas as razões, a vivência social deste autor sul-africano poderia solicitar, e atingindo, por uma inovadora recriação do real, uma mais exigente denúncia dos regimes baseados numa brutal descriminação.
 
O quadro narrativo de À Espera dos Bárbaros permite ao autor debruçar-se sobre o comportamento de solidariedade (que é habitual considerar como inerente às “sensibilidades” de esquerda) de um vulgar e pouco ambicioso magistrado de uma pequena cidade de fronteira que, perto do final da sua vida, se sente impelido a “proteger” os “bárbaros”, povo indígena e nómada, das torturas e brutalidades que, os seus “naturais” aliados, os defensores do Império, vão realizando com o intuito de descobrir uma fantasmática invasão. É desse modo, cegamente, tal como acontece na África do Sul com o regime de “apartheid”, que os defensores do Império vão transformando uma ficção justificativa da sua existência numa realidade auto-destrutiva.
 
No entanto, esse comportamento do magistrado é entendido, por parte das vítimas, com perplexidade ou como uma forma perversa de prolongar as torturas do coronel Joll, o chefe dos defensores do Império, e, por conseguinte, encarando-o como sendo a outra face de uma moeda de opróbrio. Além disso, todas as suas tentativas de deserção para o “campo” dos “bárbaros” vão revelar-se sem sentido: ninguém esperará o magistrado nas suas tentativas de fuga, nem ele próprio entende o sentido histórico daquele povo. Nunca as deserções poderão ser existenciais, mas apenas éticas, e, portanto, o que o espera, é um aglomerado indecifrável de sinais produzidos pelo outro povo, um inexplicável amontoado de vestígios arqueológicos no meio do deserto.
 
Essa aproximação à vítima, por parte do magistrado, revela-se também como uma forma desviada de um outro querer, resultante da curiosidade intelectual ou até mesmo do desejo, mas que, ao assumir uma rota “humanitária”, o torna impotente (algumas das páginas mais brilhantes deste romance são as que escrevem as emoções e os sentimentos do magistrado por uma jovem vítima de tortura, com quem estabelece uma relação muito ambígua, feita de uma vontade mórbida de perceber e interiorizar o sofrimento do outro, de purificá-lo pela ternura e por um desejo inconclusivo).
 
Por fim, toda a sua “humanitária” solidariedade lhe aparece na sua asserção radical: esse comportamento é uma opção entre formas diversas de morte. De facto, o magistrado não entende como não se morre de náusea por excesso de cumplicidade com a tortura (é essa a pergunta obsessiva que ele faz aos torturadores, não por mera ofensa, mas porque realmente não percebe): é por ignorância que ele é impelido a morrer na indignidade, a que o reduz a tortura e a repressão, quando obriga a sua energia orgânica a transformar-se na animalidade da busca da pura sobrevivência.
 
Torna-se, então, clara a acusação final de À Espera dos Bárbaros: todas as formas sociais, que subsistem sobre a mais opaca incompreensão do outro, provocam um pestífero alastrar da violência e da tortura a que ninguém consegue escapar.
 
Publicado no Expresso em 1986.
 
Título: À Espera dos Bárbaros
Autor: J. M. Coetzee
Tradutor: José Agostinho Baptista
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1986
136 págs., € 11,61
 
 
 
 


sexta-feira, 5 de agosto de 2016

ALAIN MABANCKOU

 
 
 
O “DUPLO” ANIMAL
 
Tenho escrito e dito que a literatura narrativa atingiu hoje uma dimensão nunca alcançada na história literária, tendo em vista a sua expressão geográfica: os modelos da narrativa escrita ocidental foram, nas últimas décadas, conquistando territórios (mesmo com algumas formas “miscigenadas” com modelos locais e regionais de narrativa escrita e oral) e agregando à história da literatura outras culturas e sensibilidades. Isso é visível em certas regiões da Ásia, mas em particular da África.
 
Se descontarmos algumas tentativas de expressão literária nas décadas de trinta e quarenta, pode dizer-se que a afirmação das literaturas africanas, em particular nas regiões sub-saharianas, foi feita, através das chamadas línguas dos países colonizadores, após a II Guerra Mundial e, na maior parte das vezes, em simultaneidade com as guerras de independência. Goste-se ou não, inevitavelmente essa produção literária ficou marcada por necessidades imediatas de intervenção política e militar. Além disso, a segregação racial, a miséria, o analfabetismo e o neocolonialismo económico continuaram a impor, mesmo após a independência dos países africanos, a necessidade de produzir uma literatura de combate, de frente pública e de testemunho. Por isso mesmo, todos os conflitos mais íntimos e pessoais das personagens narrativas apareciam numa dependência, mais ou menos mecânica, dos conflitos sociais e políticos e, de certo modo, só serviam para ilustrar os efeitos destes. 
 
Nos anos setenta e oitenta, com a consolidação das independências políticas, essa necessidade de intervenção imediata afrouxou em certos países africanos, permitindo uma gradual diversificação dos temas tratados e das técnicas narrativas. Foi a partir dessa altura que certos autores granjearam projecção internacional (em particular, sul-africanos, nigerianos, senegaleses, angolanos e moçambicanos), em grande parte devido à sua capacidade de aliciar, em termos estilísticos, leitores de outras paragens: o sucesso de quase todos os autores africanos foi obtido na Europa e nos Estados Unidos, sendo quase por completo ignorados (eu diria tragicamente, dado o nível baixíssimo de escolaridade e o fraco poder de compra das populações africanas) entre os leitores dos países de onde são originários.
 
Estas considerações vêm a propósito da leitura do romance Mémoires de porc-épic de Alain Mabanckou, um escritor originário da República do Congo (mais conhecida por Congo-Brazzaville).
 
Creio que o leitor português comum não conhece nem ouviu falar de nenhum autor deste país e, provavelmente, até se interroga se possui uma literatura digna deste nome. Não admira, porque, de facto, nenhum autor do Congo-Brazzaville atingiu a mínima projecção internacional e apenas alguns nomes e obras têm reconhecimento entre especialistas de literatura africana do universo francófono.
 
De qualquer modo, registo aqui, para satisfazer uma possível curiosidade do leitor, os nomes de alguns autores mais prestigiados do Congo-Brazzaville, como Jean Malonga (1907-1985; considerado o “pai” da literatura congolesa), os poetas Tchicaya U Tam’si (1931-1988) e Henri Lopes (1937) e os novelistas Emmanuel Dongala (1941) e, em particular, Sony Labou Tansi (1947-1995); recentemente, porém, o autor primeiro referido, Alain Mabanckou (1966), atingiu uma projecção já significativa, com a obra que acabei de ler: em 2006, Mémoires de porc-épic obteve, em França, o Prix Renaudot, tendo sido, de um modo genérico, bem aclamado pela crítica deste país.
 
Pode dizer-se que a ideia base de Mémoires de porc-épic é interessante, principalmente porque nos remete para os “contos” de tradição oral africanos: todos os homens têm um “duplo” animal nefasto, pois, por vezes, comete, pelos homens, os erros e os “pecados” mais vis e sangrentos, satisfazendo assim os seus desejos obscuros e imorais.
 
O romance é constituído pelas “confissões” de um porco-espinho à sua “baobab” (embondeiro), depois de Kibandi, o homem de quem era “duplo”, ter morrido, e de, portanto, perceber que os seus dias também estavam contados…Essas confissões vão revelar que este “duplo”, perverso e traiçoeiro, tinha “comido” muitos humanos, isto é, que tinha originado a morte ou mesmo assassinado, de forma brutal, vários inimigos ou indivíduos que, por ciúme, inveja ou despeito, o seu “mestre” humano sentiu desejo de eliminar ou apenas de “afastar”.
 
Através destas “confissões”, vai aparecendo um conjunto de personagens picarescas e características das pequenas comunidades rurais, ainda de base tribal, e outros, já ocidentalizados e “ilustrados”, que representam o modelo social que se perfila no horizonte destas comunidades e que irá, decerto, alterar a sua trama milenar de instituições sociais e de relações interpessoais, assim como a sua relação com a Natureza.
 
De certo modo, Mémoires de porc-épic procura efabular esta situação de transição das comunidades rurais do Congo-Brazzaville. E é nesse contexto que deve ser entendida a notória intenção de retomar uma certa tradição oral dos contos populares. Por isso, um dos aspectos mais aliciantes para o leitor, ao iniciar a leitura desta obra, é constatar como Alain Mabanckou tentar reformular essa tradição em termos literários… A solução parece-nos, contudo, um pouco convencional: opta-se por uma construção frásica de tipo torrencial, com diminuta pontuação, pelo aproveitamento da gíria popular e pela repetição de certos vocábulos, imagens e metáforas, transformando-os em “leitmotivs” discursivos.
 
Porém, a maior fragilidade deste romance está, no entanto, na inexistência de uma estrutura narrativa consistente: o carácter “confessional”, com que o romance é alinhavado, favorece a sucessão de histórias e anedotas numa continuidade cronológica, sem crescendo de intensidade ou de dramatismo, como camadas que envolvem um inexistente núcleo central. Por isso, o autor vai perdendo-se em inúmeras divagações desequilibrantes, terminando o romance, como se não descobrisse outra solução, de forma um pouco abrupta e inepta…
 
A minha opinião final é que Mémoires de porc-épic é uma obra que se centra numa ideia literariamente bem intencionada, mas concretizada de forma insuficiente… E este juízo leva-nos também a questionar sobre o nível a que chegou a produção literária da edição francesa no ano de 2006, para se conceder a esta obra um dos prémios mais prestigiados deste país.
 
 
P.S. – Já depois de ter redigido esta recensão, constatei que uma já velha chancela portuguesa - que acreditava que se encontrava em fase de “limbo” editorial – iniciou uma nova colecção de obras narrativas, chamada “Raízes”. A sua orientação – parece-me – é de publicar obras oriundas de literaturas do Terceiro Mundo; e, quanto tomei conhecimento dela, já tinha editado, entre muitos autores interessantes (eu chamo a atenção para o escritor do Djibuti, Abdourahman A. Waberi, dos Camarões, Léonora Miano, do egípcio Rachid El-Daïf, dos senegaleses Fatou Diome e Boris Diop, e da indiana Ananda Devi), este romance de Alain Mabanckou.
 
Confesso que ainda não tive tempo para analisar a tradução portuguesa. Mas, de qualquer modo, gostaria de perguntar uma coisa: como é possível que uma colecção com estas características – única em Portugal – edite títulos atrás de títulos sem ter nenhum eco na imprensa portuguesa?
 
Publicado na web em 2008.
 
 
Autor: Alain Mabanckou
Título: Mémoires du porc-épic
Editor: Seuil
Ano: 2006
228 págs., € 15,68
 
 



domingo, 3 de julho de 2016

TAHAR DJAOUT

 
FALA E MORRE
 
 
                                                 O silêncio é a morte
                                                 E tu, se falas, morres
                                                 Se te calas, morres
                                                 Então, fala e morre.
 
 
                                                 Tahar Djaout
 
Como é bem conhecido, os tempos, nestes últimos cinquenta anos, têm sido dolorosamente difíceis para a nação argelina. Depois de uma Guerra de Independência, que foi precursora e modelar para inúmeros países africanos que iniciaram a sua luta pela libertação colonial na década de sessenta, mas que também ficou tingida pela utilização sistemática da tortura e por sangrentos massacres - mais de meio milhão de mortos entre a população islâmica - que ensombraram a imagem de “farol” dos direitos humanos que a França sempre procurou assumir no mundo, a Argélia encontrou-se, à data da sua independência (1962), numa situação de total depauperação de meios técnicos e financeiros: de facto, a debandada da comunidade “pied-noir”, que durante mais de cem anos explorara a comunidade autóctone, deixou o país num estado exangue. Esta realidade obrigou a elite política argelina a proceder a uma estatização dos meios de produção que, na circunstância, revelou-se o modelo estratégico possível de desenvolvimento, mas que, por sua vez, originou um enorme mal-estar social, principalmente entre a população rural, e fomentou uma asfixiante burocracia e uma situação quase endémica de corrupção entre os seus quadros político-administrativos. Como reacção a este processo, assim como, é bem provável, a uma desadequada, em termos culturais, laicização de um Estado tutelar em excesso aos níveis económico e ideológico, a Argélia viu surgir, no seio da sua tradicional comunidade islâmica, manifestações de fundamentalismo religioso, muito activas e violentas, que deram origem a um ambiente de guerra civil, com novos massacres das populações indefesas, ficando - o que numa visão prospectiva pode ser muito grave - os seus autores quase sempre impunes, devido a um jogo de informação e contra-informação que, por  sistema, obscurece se estas acções foram perpetradas pelos movimentos integristas armados ou pelas forças militares e paramilitares pró-governamentais. Tudo isto tem encaminhado a Argélia, desde os inícios da década de noventa, para uma fase bem sombria e trágica da sua história de onde, de certo modo, ainda não conseguiu sair. 
 
Não admira, portanto, que a literatura argelina contemporânea tenha sido estigmatizada por esta realidade social, cultural e política tão violenta e dolorosa. Assim, durante a década de cinquenta - a fase mais intensa da luta de libertação -, o empenho dos romancistas argelinos de expressão francesa (esquece-se muitas vezes, de modo lamentável, que existe uma literatura argelina de expressão árabe), tais como Mouloud Feraoun, Mouloud Mammeri, Malek Haddad, Assia Djebar, mas, em particular, Mohammed Dib e Kateb Yacine (o seu romance Nedjma é considerado uma das “narrativas fundadoras” da literatura argelina), centrou-se, no essencial, na tentativa de demonstrar, perante o “humanismo francês”, os direitos óbvios da sua comunidade à independência política e económica, assim como em dissecar a forma como uma sociedade de raíz tradicional se estava a transformar.    
 
Nas décadas seguintes, após a independência, os problemas sociais e políticos da sociedade argelina mudaram de fisionomia. Face à desilusão de largos sectores sociais perante a incapacidade do poder político em satisfazer ancestrais necessidades e revindicações e, por outro lado, perante um discurso político que procurava fundamentar-se numa ortodoxia ideológica hegemónica e uniforme, recusando quaisquer variantes ou sinais de contestação, os escritores argelinos viram-se na obrigação de afirmar a sua independência através de rupturas de discurso. É este o sentido principal das narrativas de autores que surgiram nesta altura, tais como Rachid Boudjedra e Nabile Farès, e também de outros da anterior geração (relembro, por exemplo, os romances desta época de Mohammed Dib).
 
O agravamento das tensões sociais entre um poder político-administrativo corrupto e largos sectores sociais (uma classe média empobrecida, um proletariado suburbano sem perspectivas de emprego nem de possíveis melhorias de condição de vida, uma população rural desapossada das suas terras e sem trabalho) e o ressurgimento de manisfestações religiosas fundamentalistas, em confronto com todo o tipo de tentativas de abertura social ou de ocidentalização, deram fermento ao trabalho criador de escritores que iniciram a sua produção na década seguinte, em particular, Rachid Mimouni e Tahar Djaout.
 
Tahar Djaout nasceu em 1954, em Azeffoun, na Cabília marítima, e estudou matemáticas na Universidade de Argel e, mais tarde, ciências da informação e da comunicação na Universidade de Paris-II. Em 1976, iniciou-se na actividade jornalística, profissão que se tornou, durante a sua curta vida, uma dos meios fundamentais da sua intervenção na sociedade argelina: primeiro, integrou os quadros do jornal “Moudjahid”, passando depois para o hebdomadário “Algérie-Actualité”, onde foi, durante vários anos, editorialista e editor do sector cultural. Em Janeiro de 1993, com outros colegas do “Algérie-Actualité”, resolveu fundar um novo jornal, “Ruptures”, em que passou a ser chefe de redacção. Esta decisão foi-lhe fatal: em 26 de Maio desse mesmo ano, quando se preparava de manhã para ir trabalhar, um jovem aproximou-se da sua viatura e deu-lhe três tiros da cabeça. Tahar Djaout ficou ainda durante oito dias em coma profundo e morreu no hospital a 2 de Junho.
 
Para se compreender a importância deste brutal assassínio, saliento apenas três notas que são, ao mesmo tempo, bem reveladoras da encruzilhada social e política que a Argélia nos dias de hoje vive. A primeira, é que, face a efervescência social que o atentado sobre Tahar Djaout provocou, apareceu na televisão argelina, quatro dias depois, um jovem a “confessar” quem tinha sido os executantes do assassinato (cujos corpos apareceram mais tarde abatidos pelas forças da ordem) e a mando de quem (um chefe bem conhecido das GIA, as forças integristas argelinas); porém, em tribunal, o jovem declarou que a sua “confissão” tinha sido obtida sob tortura policial, ficando, portanto, sem efeito e, por consequência, o crime impune. A segunda, é que o jornal “Ruptures”, que Tahar Djaout ajudara a fundar, desapareceu das bancas em Agosto de 1993, devido a constantes ameaças de morte sobre outros membros da equipa jornalística – que os obrigou a refugiarem-se em Paris - e a conflitos constantes com a empresa gráfica onde o jornal era impresso (saliente-se que o jornal era rentável e tinha uma tiragem média de 70 000 exemplares). Por fim, a nota mais sinistra: o assassinato de Tahar Djaout foi o primeiro de várias dezenas de atentados a jornalistas na Argélia que têm ficado, na sua maior parte, como o seu, na total impunidade.
 
Ao nível literário, Tahar Djaout deixou-nos uma obra que integra cinco colectâneas de poesia, uma de contos e cinco romances. Foi em 1975 que publicou o seu primeiro livro de poesia, Solstice barbelé, e em 1981, o seu primeiro romance, L’Exproprié. De seguida, publica a sua colectâna de contos, Les Rets de l’oiseleur, e três romances: Les Chercheurs d’os (1984), L’Invention du desert (1987) e, por último, o romance que agora se publica, Os Vigilantes.
 
A obra narrativa de Tahar Djaout – como a maior parte dos autores argelinos aqui referidos – procura conciliar a análise das conjunturas socio-históricas argelinas com um trabalho de reflexão e de experimentação da matéria narrativa, conseguindo, dessa forma, conferir-lhe uma importância literária que supera uma postura estrita de denúncia ou de mero “documento histórico”. Por outro lado, - e esse foi, provavelmente, uma das razões que motivaram o atentado que o silenciou – o autor procura esquivar-se a uma visão maniqueísta da sociedade, tentando compreender como os bons e os maus estão em cada lado da trincheira e como todos os comportamentos, mesmo os mais repugnantes, ao mesmo tempo que tem de ser denunciados, devem ser inteligidos no contexto das motivações ancestrais que vão moldando (e desfigurando) o barro humano que lhes subjaz. Para atingir estes objectivos, o autor serve-se da ironia e de um certo folgo lírico que transfigura não só as situações absurdas e/ou trágicas narradas, mas, em particular, consegue dar uma densidade inusitada às personagens nelas envolvidas. 
 
Esta perspectiva narrativa possibilita que possam confluir nas obras romanescas de Tahar Djaout diversos níveis de leitura, podendo ser entendidas como parábolas que  reflectem uma determinada problemática conjuntural da Argélia, mas também podem ser “desterritorializadas” e integráveis em qualquer outro contexto sociocultural que propicie situações semelhantes.
 
Por fim, deve ser salientado que, na sua tentativa de compreender as motivações ancestrais que determinam o comportamento das suas personagens, Tahar Djaout rememora, com um olhar nostálgico, os universos “solares” da infância e de um passado rural, onde os reinos da morte eram simples, distintos e cristalinos, dando uma tonalidade “mediterrânica” muito peculiar aos seus romances.
 
Os Vigilantes é considerado, por unanimidade, em particular pela articulação harmónica dos seus elementos, um romance exemplar no conjunto da obra de Tahar Djaout e, por conseguinte, a melhor forma de introduzir o leitor de língua portuguesa na produção narrativa deste malogrado escritor.   
 
Publicado como introdução à edição portuguesa de Os Vigilantes em 2004.
 
Título: Os Vigilantes
Autor: Tahar Djaout
Tradução: Armando Silva Carvalho
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2004
171 págs., € 13,00
 
 
 



quinta-feira, 12 de maio de 2016

J. M. COETZEE 3

 
 
 
A LÍNGUA
 
Um dos aspectos mais interessantes da obra de J. M. Coetzee relaciona-se com a estratégia com que se coloca perante a instável realidade sul-africana. O autor procura formular cada conjuntura numa problemática nuclear, liberta de qualquer circunstancialismo, ficciona-a num contexto puramente imaginário e sem qualquer relação linear com a realidade circundante, transformando-a numa parábola com sabor mítico. Esta estratégia, sendo útil ao autor no seu esforço de se situar com maior lucidez no meio da tempestade que tem sido a Africa do Sul, dá-lhe, por outro lado, uma abrangência que a toma aliciante para qualquer leitor.
 
A Ilha, o último romance de J. M. Coetzee agora traduzido, retomando as figuras arquetípicas de Robinson Crusoé (aqui nomeado Cruso) e o seu escravo Friday, pondera as hipóteses de comunicabilidade entre universos culturais distantes e a importância existencial de possuir uma “fala”. Por isso, a experiência de náufrago de Cruso é relativamente marginal (é só a primeira parte do romance que a narra), já que para o autor o essencial é compreender por que motivo Defoe se interessou por essa história. Dai que A Ilha se centre numa personagem forjada por J. M. Coetzee, Susan Barton, a mulher que naufragou na ilha de Cruso e que, por ter sido a única sobrevivente em condições de testemunhar essa experiência, a “narrou” a Daniel Defoe.
 
Cruso funciona nesta obra como uma espécie de pólo negativo, de alteridade radical em relação as inquietações das restantes personagens: dominando a ilha, Cruso esforça-se para que a História não entre nela (isto é: não crê na comunicação, rejeita qualquer dimensão material da civilização e qualquer tipo de intervenção produtiva), aceitando a temporalidade pura que é o acaso. Como não necessita de moldar o tempo, não necessita de “fala”. Basta-lhe, como sinal da sua existência, deixar um vestígio material: os terraços que constrói para se entreter e sem nenhum fim prático.
 
É contra este projecto de existência que Susan Barton, na segunda e terceira parte de A Ilha, se insurge: ela sabe que a veracidade da sua experiência só existe na “voz” que a comunicar. Por isso, a história de Cruso e Friday, pelo silêncio que sobre ela caiu, tornou-se-lhe mais importante que a sua própria memória. De certo modo, Cruso e Friday passam a ser personagens de Susan Barton, personagens que só existem se ela conseguir convencer alguém a dar-lhes uma “fala”.
 
Neste sentido, Friday, por não ter língua, torna-se, de um modo obsessivo, mais importante para Susan Barton do que Cruso. Friday é um continente, uma personagem “pura”, visto que todas as memórias lhe podem ser forjadas. Ou por outras palavras: Friday é um escravo, na acepção mais radical desta condição, já que até a sua memória lhe foi usurpada. Porém, ao mesmo tempo, é um canibal: porque a premência que Susan Barton sente em dar existência a Friday (dando, assim, existência à sua experiência de náufraga) através de uma “fala”, devora a autonomia e a identidade dela.
 
É neste contexto que se vai processar todo o diálogo conflituoso entre Susan Barton e Daniel Defoe: até que ponto é legítimo outrem dar uma “língua” a Friday? Haverá um Friday exterior à “língua” que por ele “fala”? Entre personagem e autor, quem devora quem? De quem realmente “fala” a obra?
 
Susan Barton crê que só existe veracidade de uma experiência na obra artística; porém, se assim é, ela própria só existe na narrativa: é feita de papel e tinta, vive da volubilidade de quem a escreve. Por isso, Daniel Defoe defende que a dominação mantem-se em quem está em último lugar a transmitir a “fala”: Friday continuará escravo de quem por ele “falar”. No entanto, a própria existência de Defoe contraria isto: miserável, perseguido, doente, é as suas histórias, os fantasmas das suas personagens, a veracidade que ele constrói com a sua arte que o vampirizam, vivendo a sua custa.
 
A Ilha é um complexo, exaustivo e admirável requisitório sobre o estatuto do escritor (não é por acaso que o seu título original é Foe: a solução adoptada pela edição portuguesa, tendo algum valor polissémico, não “traduz” com rigor a intenção do autor). Porém, para lá disso, há neste romance uma ambição mais ampla de leitura do processo civilizacional, salientando que este assenta mais num universo de retóricas, num clamor de “vozes”, do que num quadro institucional, material e técnico.
 
Publicado no Público em 1993.
 (Foto do Autor de Bert Nienhuis)
 
Título: A Ilha
Autor: J. M. Coetzee
Tradutor: Marta Morgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1993
159 págs.,  € 11,61
 
 


segunda-feira, 31 de agosto de 2015

J. M. COETZEE 2


 
 
 

 
 
O SILÊNCIO DA VIDA
 
Em 1997 e 1998, J. M. Coetzee foi convidado pela Universidade de Princeton, para, no quadro das Conferências Tanner, proferir duas conferências sobre um problema ético que considerasse bem candente. Dessa participação, resultaram dois textos (“Os Filósofos e os Animais” e “Os Poetas e os Animais”) que compõem este volume intitulado As Vidas dos Animais (completado por reflexões muito interessantes de uma teórica da literatura, de um filósofo, de uma professora de estudos religiosos e de uma primatóloga). Mas - e aqui se manifesta as peculiaridades da personalidade literária de J. M. Coetzee - em vez de optar pela forma de ensaio filosófico (forma habitual de participar nas referidas Conferências), resolveu elaborar dois textos de metaficção, em que uma velha escritora australiana, Elizabeth Costello, vai apresentar duas comunicações num colégio americano, onde o filho é professor auxiliar. Essas comunicações são sobre um tema que cada vez mais obceca esta escritora ao ponto de provocar, em seu redor, um clima de fortíssima hostilidade: os crimes perpetrados por sistema pelos homens sobre os animais.
 
A opção de J. M. Coetzee, em apresentar duas ficções - que constituem uma pequena novela - em vez de textos ensaísticos, não é gratuita: é que o autor está absolutamente convicto de que a narrativa é uma forma literária mais perfeita do que a do ensaio filosófico para ajudar a compreender uma determinada problemática. E isto porque a ficção, sendo o instrumento ideal para tentar compreender o Outro, tem, numa reflexão sobre essa alteridade quase absoluta que é o animal (pelo menos, porque assim tem sido assumido pela história das ideias e das religiões), uma capacidade de problematizar que parece impossível à filosofia. Por isso, como refere, de modo brilhante, Marjorie Garber no seu comentário, estas conferências de J. M. Coetzee são uma brilhante reflexão sobre os limites da inteligibilidade do romance e sobre a sua eficácia em transformar mentalidades. Saliente-se que, além disso, no caso do tema particularmente polémico destas conferências, a ficção, ao permitir encenar não só os argumentos, mas também as reacções, favoráveis e hostis, dos ouvintes e dos familiares de Elizabeth Costello, expõe, como se fosse uma construção pluridimensional, a problemática que está na sua raíz.
 
Antes de avançar para o tema concreto destas conferências, ou melhor, das comunicações de Elizabeth Costello (os direitos dos animais), gostaria de chamar a atenção do leitor para o facto de esta obra, na sua brevidade, ser uma das mais complexas, arrojadas e aliciantes reflexões que se pode ler sobre este tema e que está, com a maior das sinceridades, a anos-luz dos recentes debates caseiros sobre as violências cometidas sobre animais.
 
A argumentação de Elizabeth Costello parte do pressuposto de que toda a história da filosofia (de Aristóteles a Descartes e Kant), ao reflectir sobre o animal, sofre de “homocentrismo”; isto é, avalia o animal de acordo com valores fundamentais para o homem (a consciência, a razão ou a posse de linguagem articulada), definindo assim uma hierarquia equívoca e descurando aquilo que é o elo comum entre os homens e os animais: a existência de uma “alma corporizada”, com a mesma capacidade de fruir a vida e de pertencer à harmonia musical da Natureza, e, por consequência, com idêntico pânico pela morte (mesmo que a morte possa não ser, para os animais e para os homens, “a mesma morte”) e, o que é provavelmente fundamental, com a faculdade de transmitir estes sentimentos. 
 
Se assim é, a “alma corporizada” do animal adquire o estatuto de sujeito (a consciência de si próprio não deve ser determinante para esta definição) e, em sequência, não pode ser entendida como uma simples “coisa” ao serviço do homem. Nesta circunstância, é legítimo considerar que existe no animal os atributos essenciais de uma pessoa. Ora, como é sabido, o quadro de valores da civilização ocidental sempre considerou como crime qualquer violência exercida sobre uma pessoa, dado que qualquer sujeito se sente de imediato identificado com o objecto dessa violência. A dedução lógica deste raciocínio é que qualquer violência executada sobre os animais, mesmo pelos motivos mais altruístas, deve ser assumida, em consciência, como um crime. Por fim, se se considerar que nunca foi admissível definir graduações no estatuto de pessoa, é-se obrigado a chegar à conclusão de que somos cúmplices de carrascos de uma permanente carnificina criminosa de proporções superiores às do conhecido Holocausto da II Guerra Mundial (é esta, diga-se de passagem, a analogia que Elizabeth Costello efectua, para fazer compreender a situação dos animais, e que tanto choca certas “almas sensíveis”).
 
É evidente que J. M. Coetzee não pretende, com estas conferências, apresentar uma resolução para as relações dos homens com os animais, mas apenas problematizar essas mesmas relações, levantando substanciais problemas morais.
 
Quando se recorda que a vida do homem e toda a economia mundial sempre assentou no morticínio de animais, tem-se plena consciência de como As Vidas dos Animais se aproxima dos universos da utopia. Mas será possível continuar a voltar a cara para o lado, fingindo que se desconhece, e aceitar como natural, depois de ler esta obra de J. M. Coetzee, o clamor indefeso de vida silenciosa que se ergue das pocilgas e dos aviários que nos alimentam?
 
Publicado no Público em 2000.
 
 
Título: As Vidas dos Animais
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: Maria de Fátima St. Aubyn
Editor: Temas e Debates
Ano: 2000
134 págs., esg.
 
 
 
 


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

NADINE GORDIMER 2

 
 



 
O CONTINENTE DA PELE
 
- Quando me tocavas a princípio (e ela pegava-lhe na mão e espalmava-a na anca), isto era uma luva. Verdade. A cor negra era uma luva. E por toda a parte, pelo teu corpo todo, a cor negra era como um manto. Uma coisa que Deus te deu para te vestires. Por baixo, tinhas que ser como eu (...).Branco como eu; porque foi isso que me ensinaram, quando me quiseram ensinar a não ter preconceitos: por baixo são tal e qual como nós. Ninguém dizia que nós eramos tal e qual como tu.
 
O sorriso tornou-se mais acentuado.- Também não seria verdade. Serias tu que ficavas com uma pele a menos.
 
- Se se é branco, falta sempre uma pele. Coisa que eles nunca dizem.
 
Agora, porém, ela diz tudo. - Quando estamos juntos, quando tu estás dentro de mim, então, nada falta. Nadine Gordimer, Um Capricho da Natureza.
 
Um amigo meu, que concebe as sociedades como uma espécie de circuito viário, entende que, sempre que se fala de liberdade, está-se a falar de “liberdade de circulação”. Nesse sentido, a sociedade sul-africana é provavelmente uma das que impõe mais atrito: ao crispar-se numa hierarquização segregativa, esta sociedade imobiliza, impossibilitando o jogo fascinante dos disfarces, das transfigurações, do desvio à norma. E tal sucede, porque obriga a que todos os seus membros se definam, inequívoca e definitivamente, perante o colectivo, perante “aquele real”. Nada circula e não há fuga possível - é esta a grande vitória do apartheid: nenhum gesto pode ser exterior à presença ofuscante dessa realidade imposta.
 
Por isso, a literatura sul-africana, de origem branca ou negra, afirma, de forma constante, a sua impossibilidade em se esquivar ao empenhamento social e político. Por outro lado, devido a essa mesma dificuldade de circulação, a literatura vê-se obrigada a enfrentar o código condicionante da realidade, necessitando, por conseguinte, na maior parte das vezes, de assumir uma configuração realista. Bem exemplar disto é a obra de Nadine Gordimer, a ficcionista mais prestigiada da Africa do Sul.
 
Se outros méritos não tivesse, a obra de Nadine Gordimer tem o de não corresponder ao maniqueísmo social com um outro literário e de procurar, não abandonando um acentuado empenhamento anti-apartheid, libertar-se de uma tipologia redutora de caracteres e revelar as tensões e as emoções, isto é, a vitalidade, de uma realidade que se quer morta. Em resumo, e com alguma (má) ironia, pode afirmar-se que o retrato de Nadine Gordimer da sociedade sul-africana não é tanto a preto e branco mas a preto “no” branco.
 
O último romance da autora, Um Capricho da Natureza, manifesta algumas inovações no quadro habitual da sua produção literária, em particular pela sua maior abrangência de intenções, por um maior rigor e concentração no que é fundamental para a caracterização da realidade africana e pelo recurso a certas formulações narrativas que pretendem ascender à dimensão mítica.
 
O romance resume-se à biografia de Hillela - uma belíssima mulher branca nascida na África do Sul - desde a sua infância, em casa de duas tias com posições na aparência opostas em relação à sociedade sul-africana (a sua mãe fugiu com um português, fadista e “bailarino”, para Moçambique e o pai, caixeiro-viajante na Rodésia do Norte, não tem modo de vida para manter a filha), até adulta e casada com um Chefe de Estado africano. A narração da sua vida vai permitir à autora encenar os conflitos dilacerantes que, não só a África do Sul, mas todo o continente africano, viveu nas últimas décadas (o colonialismo e a má consciência disfarçada do colono, as primeiras reacções contra a segregação racial e a respectiva repressão, as ambiguidades do liberalismo branco e o início da luta armada, a prisão ou o exílio e os atentados contra os líderes africanos, as independências e o pan-africanismo, as atribulações tribais e ideológicas dos Novos Estados, o auxílio inconsequente ou oportunista do “bloco socialista” e dos E.U.A., etc.), chegando mesmo a assumir como real algum devir, tal como a extinção do apartheid e o aparecimento de uma maioria regra na África do Sul.
 
Mas o que caracteriza sobretudo Um Capricho da Natureza é facto de ser um romance sobre a “pele”. A pele como lugar nevrálgico de aproximação ou afastamento dos outros. E, acima de tudo, a pele como meio particular de conhecimento, não só porque determina, em primeira instância, o modo de olhar dos outros e para os outros, mas também porque, sensorialmente encaminha para o lugar justo.
 
De facto, é a pele que estabelece a memorável evolução de Hillela. Ela aproxima-se ou implacavelmente se afasta, motivada por um furor sexual que a obstina em desconhecer tudo o que não sente através da pele, quando o seu corpo ama. O desejo e o prazer são o seu fundamental método de aprendizagem e o sexo é a energia motriz que a desloca.
 
Vai ser a sua paixão por Whaila, o militante revolucionário da África do Sul, que lhe dará consciência do sentido do seu percurso: a necessidade de “completar” a sua pele branca, através de uma junção de pigmentações, criando uma unidade mítica prenunciadora de uma nova humanidade, onde cada homem e cada mulher, com as suas especificidades e as suas “colorações”, fossem inteiramente soberanos (não será o “capricho da natureza”, que alude o título e a epígrafe, essa capacidade trópica de Hillela em assumir o olhar e a estar da negritude?).
 
Mas essa unidade, essa fusão de dois seres míticos, é, a seu modo, uma irrealidade neste mundo: o atentado, em que morre Whaila e Hillela se salva por um acaso, é a consumação desta verdade. O que vai restar desta relação “arco-íris” é uma filha, Nomzano (a homónima de Winnie Mandela), modelo internacional expondo a sua pele exótica de cidade em cidade, e a absoluta convicção de Hillela de que tudo terá de fazer para acabar com o mundo que tornara a sua relação com Whaila impossível.
 
Percebe-se então que o percurso de Hillela se identifica com o percurso de África. É, por isso, que aquela unidade mítica que ela sempre procurou se irá reencarnar numa relação com um Chefe de Estado africano; e ainda que, com ele, irá regressar à terra de Whaila, expurgada do apartheid e governada por uma maioria negra. Mas aqui sabemos nós que, por muito plausível e real que a arte de Nadine Gordimer pretenda configurar esse tempo, entrámos no registo do puro desejo da autora e que aquela só serve para exorcizar uma realidade que há muito já devia ter desaparecido.
 
Publicado no Expresso em 1989.
 
(Foto da Autora de Guillermo Arias).
 
 
Título: Um Capricho da Natureza
Autor: Nadine Gordimer
Tradutor: Miguel Serras Pereira
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
460 págs., € 4,90



quarta-feira, 19 de agosto de 2015

NADINE GORDIMER 1

 
 
 
 

O EXORCIZAR DA CULPA
 
Há realidades e realidades, costuma dizer-se. E, quando assim nos referimos aos contextos em que nos situamos, parece claro que estamos a referir-nos às facilidades que temos ou não em circular nessas realidades. Isto é, à maleabilidade que permitem, aos índices mais ou menos acentuados de constrangimento que impõem.
 
Se entendermos a criatividade como um modo vertiginoso de circulação social, é evidente que realidades, em que haja um índice maior de constrangimento, motivam um atrito maior, uma ligação mais intensa a esse “real”.
 
Se entendermos a criatividade como um modo omniforme e omnisciente de estar social, é também evidente que realidades, em que haja um índice maior de constrangimento, motivam um desejo mais intenso de ascensão sintética e, por consequência, uma capacidade maior de alegoria.
 
Tudo isto já foi dito, por esta ou por outra forma, e só enunciamos estas questões para reforçarmos a ideia de que, se as opções criativas são, por natureza, pouco coagentes, há, no entanto, realidades que impõem tais índices de constrangimento que obrigam que as necessidades de empenhamento ético pesem francamente no acto criador. Alguns de nós conhecem bem tais situações: quantas vezes, olhando para os nossos velhos escritos, mesmos os mais íntimos, sentimos que foi essa realidade forte, como tempo concretizado, que apenas moveu a caneta sobre o papel...
 
Penso, por isso, que não vale a pena nomear essas realidades. Indico somente dois tipos, por referência directa ao que se segue: as realidades coloniais e as que se estruturam sobre o apartheid e sobre um conjunto de relações sociais acicatadamente rácicas, como é o caso, por exemplo, da África do Sul.
 
Sendo a realidade sul-africana tão constringente, natural se torna, portanto, que os seus narradores, brancos ou negros, tenham optado, com preferencial tendência, por “enformá-la” através de uma série de propostas de ficção realista, isto é, sustentada por um “corpus” ideológico de raíz mais ou menos empírica, já com largas tradições na ficção de expressão inglesa.
 
Mas se a situação específica da realidade sul-africana cria um jogo de relações sociais, e, por consequência, romanescas, com uma localização acentuada, isso não obsta, pelo contrário, que o analista de ficção não tenha possibilidade de detectar ramificações bem criativas na genealogia das situações e das personagens que o trabalho narrativo tem vindo a produzir.
 
É o caso concreto da tríade de ficcionistas brancos sul-africanos mais divulgada na Europa, e que inclui, além de André Brink e J. M. Coetzee, a escritora que motiva este artigo, Nadine Gordimer, de quem apareceu o ano passado, nos escaparates das livrarias portuguesas, a tradução de uma sua colectânea de contos, Numa segunda-feira, de certeza, com chancela das Edições 70.
 
Nadine Gordimer (n. 1923) publicou, até à data, oito romances e seis livros de contos (destaco, entre estes, Burger’s Daughter, Conservationist, Soldier’s Embrance e World of Strangers), e é hoje uma das escritoras com maior prestígio no mundo literário anglófono. Torna-se claro, pelo conjunto da sua obra, que esta escritora tem um empenhamento político e social (digamos até, de uma forma genérica, cultural) bem definido: lutar por uma sociedade na África do Sul que se organize segundo um sistema socio-político de sufrágio universal e que, em consequência, rejeite todas as formas de apartheid ou de descriminação face à Lei com base na origem rácica.
 
Semelhante empenhamento é bem nítido na obra agora em causa. Trata-se de uma selecção de contos, feita pela própria autora, de cinco colectâneas publicadas durante os últimos vinte e cinco anos, e que, segundo os seus objectivos, testemunham as variantes comportamentais de diversos grupos sociais brancos e não-brancos em diferentes níveis de prática quotidiana.
 
Uma rápida análise dos contos realça, de imediato, que a autora pretende desmontar todo um quadro de situações sociais, assumindo uma atitude de objectividade e distanciação que, estilisticamente, é procurada através de um conjunto de pequenas anotações de observação (algumas vezes bem originais e perspicazes) que pretendem dar uma consistência ambiencial às situações e caracterizar, de forma sintética, as personagens. Penso que este tipo de realismo, que se pode chamar, de modo irónico, pontilhístico, tem muito a ver com certas características técnicas da ficção americana (refiro aqui, a título de exemplo, os casos de Sherwood Anderson, John Updike, Mary McCarthy e Joyce Carol Oates, entre muitos outros possíveis) e encontra-se longe de uma ficção que se desenvolve assente em sinais que, de uma forma nítida, têm como referência um qualquer sistema doutrinário.
 
Por outro lado, a exigência de testemunho, querida pela autora, faz com que estes contos sejam fortemente marcados de historicidade. É, por isso, que todos revelam estar situados em precisos contextos históricos, salvo raros casos em que essa historicidade, existindo à mesma, parece estar mais difusa.
 
De acordo com essa historicidade, pode-se mesmo tentar criar uma tipologia: definimos assim seis grupos de contos, em quatro dos quais a historicidade é bem acentuada, e nos restantes mais diluída.
 
O primeiro grupo de contos inclui os três iniciais (“Não há outro sitio onde nos possamos encontrar?”, “Ai de mim!” e “Seis palmos de terra”) e situa-se num contexto histórico em que as relações rácicas assentam numa concepção de ”menoridade” do negro, determinando assim que sejam, no melhor dos casos, por parte da minoria branca, vincadamente paternalistas. Esse paternalismo não consegue, no entanto, libertá-la de uma culpabilização, a maior parte das vezes, transparente e primária, consequente do seu estatuto social de privilégio.
 
O carácter imediato dessa culpabilização é, em particular, notório no primeiro conto: a protagonista “branca” sente - após ter sofrido uma acção violenta de roubo por parte de um “negro” pobre - tal mal-estar que desiste de apelar às “autoridades” ou de actuar seja de que forma for contra ele; e o drama da própria personagem, como o título indica, é o de não conhecer um lugar onde se possa instituir, entre as figuras em presença, uma forma de comunicação que não seja tão violenta, sendo esse “desconhecimento” o que motiva o seu mal-estar.
 
Nos dois contos seguintes, o drama da segregação racial é transferido para o interior das famílias brancas que, em consequência de darem trabalho a membros das comunidades negras, se encontram numa situação de mediação entre a sociedade em geral e as ambições de afirmação social das referidas comunidades (o caso do conto “Ai de mim!”) ou entre o aparelho burocrático do Estado sul-africano e os mais básicos (e milenares) sentimentos familiares negros, como é o ligado à prática do culto dos mortos (o caso do último conto referido). Qualquer deles tem, por fim, um “pathos” comum: o comportamento de impotência das famílias brancas face a relações e estatutos sociais que são impossíveis de remediar pela acção individual.
 
O segundo conjunto de contos inclui os dois seguintes (“Que nova era seria aquela?” e “O cheiro da morte e das flores”) e historicamente situa o período em que os grupos sociais brancos e negros mais esclarecidos acalentam o sonho de conseguirem construir, por meios pacifistas, uma sociedade de igualitarismo plurirracial.
 
É nesse período que vêm ao de cima os conflitos de integração, já que a aplicação de estatutos formais de igualdade social, mesmo nos pequenos grupos “esclarecidos”, motiva situações que ou são tão violentas, em termos psicológicos, como as do período anterior, ou então, na medida em que emanam dum voluntarismo cultural e político, são pouco vivenciais, descambando em comportamentos bem-intencionados, mas estereotipados e convencionais.
 
Grande parte do fiasco de tal projecto com pretensões igualitaristas está em tender a escamotear as diferenças de origem social e cultural, o que não só é impossível a curto prazo, como comprova que tinha, no fundo, uma liderança “branca”.
 
Qualquer dos dois contos indicados relata situações de “convívio” plurirracial: o primeiro, num ambiente não-branco, pequeno-burguês e operário; o segundo, num contexto branco de classe média e intelectual.
 
No primeiro, a tentativa de “convívio” é, por sistema, confrontada com essa “igualdade” forçada: o mestiço Jack Alexander, seu protagonista, apenas pode receber com uma extrema ironia as afirmações da militante progressista branca que o visita de que é sua “igual”, só porque realiza entre os grupos sociais não-brancos uma espécie de turismo de assistência social. Além disso, torna-se bem evidente em todo o conto que semelhante voluntarismo igualitarista tem áreas de entendimento impossível, como é o caso das sexual e amorosa, já que os diferentes percursos culturais formam imagens sexuais distintas, não focalizáveis pelos respectivos desejos.
 
No segundo, o que se realça, após o deslumbramento que uma adolescente branca tem, ao dançar com um negro, de que ”é a mesma coisa” do que dançar com um branco, é o carácter estritamente formal da acção anti-apartheid em que ela se envolve - a entrada numa “location” (zona de habitação negra, demarcada, muitas vezes por arame farpado, onde era interdita a entrada não oficializada de elementos brancos) por parte dum grupo branco e a sua consequente prisão - motivada por esse deslumbramento. Esta acção realiza-se perante o olhar de indiferença ou de perplexidade - e é este último olhar que deixa um mínimo de esperança e de sentido para os intervenientes - dos miseráveis habitantes negros da “location”, o que revela assim o seu carácter desadequado, e até “mundano”, e, por consequência, impotente.
 
Associado a este conjunto está o conto “Casa aberta”, visto que constrói uma situação que expõe os reflexos negativos desse mesmo projecto igualitarista. Trata-se de novo de um “convívio” plurirracial, mas agora de elementos que, em consequência do seu papel nas acções pacifistas, foram, passados alguns anos, “compensados” socialmente, o que os levou a resignarem-se, a traírem (?), a formalizarem-se num “papel” vazio de qualquer prática social e de qualquer ligação à maioria não-branca. A ironia, que os diálogos lançam sobre a vida das próprias personagens, escamoteando a sua resignação e culpabilização, realça, no entanto, a problemática que está no cerne do próprio conto: é impossível outro “fim” para quem lutou pela integração apenas formal numa sociedade que, no fundo, limitando essa integração, lhe recusa um estatuto de cidadania completa.
 
O terceiro conjunto inclui os contos “Uma coisa temporária” e “Um rubizinho de vidro”. No fundamental, corresponde ao período em que se instituem as formas de resistência, ainda legal, contra a dominação minoritária branca, organizadas, em particular, pelo African National Congress.
 
“Uma coisa temporária” narra, em confronto, os conflitos que se processam dentro de duas famílias cuja “história” se cruza: uma, branca, pertencente à alta burguesia e com uma atitude liberal e proteccionista; outra, negra, proletária, em que o homem é militante conhecido do A.N.C. Qualquer das duas está em situação de desagregação em consequência de lutarem, pelas vias legais, pelos seus ideais: a primeira, como resultado da incapacidade da atitude liberal em integrar as formas de resistência legal (aqui simbolizada pelo uso, por parte do militante negro, do emblema do A.N.C., nas horas de trabalho, dentro da empresa dirigida pelo “chefe” desta família); a segunda, como resultado das prisões sistemáticas, das perseguições ininterruptas, das constantes percas de emprego, que levam ao desespero a mulher do militante.
 
“Um rubizinho de vidro” é, curiosamente, o primeiro conto todo ele passado entre elementos não-brancos. Tendo por pano de fundo a repressão policial sobre as formas organizadas de resistência e a sua entrada gradual na clandestinidade, é, para além disso, uma análise dos níveis de consciencialização política dos indivíduos socialmente oprimidos, e de como, numa primeira fase, os elementos caracteriais e afectivos têm um papel determinante na motivação para esse empenhamento político.
 
O último conjunto de contos historicizado inclui aquele que dá título à colectânea e que caracteriza o período da resistência armada. Passado na comunidade negra, descreve, através de um narrador negro, a descoberta das tradições culturais, a preparação e a concretização de uma acção armada, e o consequente exílio, com todo o seu rol de sofrimento e desagregação. Há, no entanto, em todo o conto, uma certeza profunda: a de que só através da luta armada, no contexto sul-africano, se pode justificar um lugar social, mesmo que para atingi-lo se tenha que tombar, como acontece a uma das personagens, na destruição psíquica e na loucura, demonstrando que a verdadeira “deslocação” social produtora, em última instância, da própria loucura está na Origem secular de um processo histórico que só se pode “lavar”, como um “pecado original”, pela intervenção na luta armada.
 
No final da análise dos conjuntos de contos com uma historicidade mais acentuada, creio que estamos em condições de afirmar que estes organizam uma determinada imagem da sociedade sul-africana: a de que existe nas relações sociais rácicas uma culpabilização de tal forma marcante que ela torna-se uma espécie de matriz da própria sociedade, já que todos os seus elementos, incluindo os de maior dinâmica social, são atingidos por ela.
 
As variantes comportamentais descritas por estes contos apenas são “exigências” das conjunturas históricas, visto que não se libertam dessa culpabilização: não passam de opções de atitude individual, adaptadas à crescente complexificação das relações rácicas, continuando a ser, por isso mesmo, estéreis.
 
Essa culpabilização, produtora, por si só, de esterilização e impotência social, isto é, fazendo com que as variantes comportamentais dos diferentes grupos sejam apenas um “gesticular histérico” sem reflexo na dinâmica social, tem, no entanto, um “remédio”: a integração nas formas de resistência organizada, liderada pela comunidade negra, contra a opressão da minoria branca.
 
Não é por acaso, por isso, que a partir do terceiro grupo acima referido comecem a aparecer contos passados apenas em comunidades não brancas. É que o fenómeno de culpabilização, a partir do aparecimento das formas de resistência organizada, liderada pela comunidade negra, passa a ter características com qualidades bem distintas: de condicionante, em particular, da comunidade branca, em consequência do seu estatuto de privilégio numa sociedade assente no apartheid, passa a ser integrante a todos os elementos sociais, brancos ou não, conforme se posicionam em relação às referidas formas de resistência organizada.
 
A análise do fenómeno de culpabilização social, que até aí era feita sobre o vértice da relação branco/não-branco, desloca-se agora para o interior da comunidade negra, visto que é ai, na actual conjuntura histórica, que ele tem mais gravidade.
 
Note-se, no entanto, que ainda se mantem no foro individual, para além daquela, outra forma de resolver catarticamente esta culpabilização: é o seu exorcismo através do testemunho escrito. É, por isso, que testemunhar esse processo de culpabilização social, tentando ser o mais objectivo possível, passa a ser, no fundo, uma das balizas da obra de Nadine Gordimer.
 
O exorcismo, que a própria realidade exige, torna-se, assim, uma das formas como a autora intervém, condicionando a própria escrita. E esta necessidade de exorcizar a culpabilização pela escrita define, de certo modo, o lugar onde esta mesma escrita se situa, isto é, a origem cultural que focaliza esta sociedade, e que motiva a mediação (lente?) branca que, no fundo, constitui esta obra. Institui-se assim a escrita como uma forma de “desculpa”, ou seja, de tentativa de eliminação da culpa de não participar, por outra forma significativa, na luta contra o apartheid.
 
Os dois grupos que, por razões de classificação, colocámos para o fim, já que não nos parece, como fundamental na sua construção, a determinação histórica, confirmam só, de uma forma mais ínvia, as considerações expostas acima.
 
Um primeiro grupo inclui dois contos, “Para não ser publicado” e “Proveniente de África”. Qualquer deles se centra sobre as perturbações criadas em elementos negros que, tendo um enquadramento cultural próprio, são forçados a afirmarem-se numa sociedade que lhes é estranha e que tenta condicionar o seu comportamento aos mecanismos e meandros da afirmação social típicos da cultura ocidental.
 
Semelhante temática permite assim reflectir sobre dois assuntos distintos: mostrar como o proteccionismo e o apoio brancos a elementos negros, mesmo quando bem-intencionados, são a maior parte das vezes, pelo menos, inibidores de uma certa autenticidade; mostrar que as respostas às solicitações de integração feitas pela cultura ocidental podem ser diversas, conforme a sensibilidade e a capacidade caracterial de resistência, mas que, de qualquer modo, o resultado é sempre a destruição total ou parcial da referida autenticidade.
 
Por fim, um último grupo, que é constituído por dois contos, “O ilusionista africano” e “O noivo”, caracterizado por reflectirem um sentido comportamental de certo modo contrário ao anterior: a fascinação branca pelo mundo cultural negro, a revelação branca de uma compensação afectiva inter-racial.
 
Deste grupo, quero salientar “O noivo”, porque nos parece ser um dos contos em que mais se distingue a capacidade de Nadine Gordimer em sugestionar situações. Neste conto, de facto, a autora consegue atingir uma densidade lírica e uma ambiência telúrica que realçam bem a situação de um engenheiro branco que, apenas rodeado pelos cantos e as vozes dos operários negros, pelas suas sombras crescendo á luz das fogueiras, na grande distância da noite e do deserto, não consegue conter na sua “casca” caracterial uma necessidade de comunhão emotiva. Mas, mal esta se revela, logo se sente obrigado a rapidamente procurar dominá-la e a culpabilizá-la também.
 
Não gostaria de concluir esta proposta de análise desta obra, que nos parece com a importância suficiente para que se lamente o enorme silêncio com que foi acolhida a sua tradução, sem salientar o interesse que, decerto, o leitor português teria em conhecer os romances de Nadine Gordimer, visto que, sendo obras com outras características, dariam da escritora uma imagem bem mais “orquestral” do que uma, mesmo que boa, colectânea de contos e “short-stories”.
 
Publicado no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias em 1981.
 
Título: Numa Segunda-feira, De Certeza
Autor: Nadine Gordimer
Tradutor: Adelaide Mendes de Carvalho
Editor: Edições 70
Ano: 1980
173 págs., esg.