terça-feira, 28 de maio de 2019

DANY LAFERRIÈRE



“EVEN WHEN YOU ARRIVE, YOU’RE GOING BACK AND FORTH”

A Zadie Smith, e ao seu romance “White Teeth”, donde retirei esta frase para o título.

 Os estudos pós-colonialistas já demonstraram, por diversas vias, os motivos que levam a que as literaturas das regiões que estiveram sob o jugo colonial até meados do séc. XX sejam, como se sabe, pouco conhecidas e não tenham conseguido atingir uma legítima projecção internacional.

Habitualmente, inclui-se nesta visão as literaturas das Caraíbas (ou Antilhas), não só as que foram produzidas nos diversos tipos de crioulos, mas também as que foram e são escritas nas línguas dos países colonizadores (o inglês, o espanhol, o francês e o neerlandês), que se tornaram, após as independências, línguas nacionais, e com um alcance mais global.

No entanto, pode constatar-se, utilizando os indicadores disponíveis (os Prémio Nobel concedidos, por exemplo…) que não são poucos os autores naturais das Caraíbas com projecção internacional. Dir-se-á que este facto deriva em grande parte da língua utilizada por estes autores ser o francês e o inglês e de possuírem, antes do mais, a nacionalidade francesa e britânica. Mas, de qualquer forma, é indiscutível que esses autores nunca perderam as profundas ligações que têm aos seus locais de origem e que essas ligações são bem explícitas nas suas obras. E o número de autores com estas características é tão significativo que se tornaria fastidioso estar aqui a enuncia-los.

Na minha opinião, as considerações do pós-colonialismo ganham muito mais sentido e ressonância se procurar perceber como a realidade “material” afectou a produção discursiva da literatura, mas também de outras manifestações artísticas, das Caraíbas. Basta um superficial “olhar” pela situação social, económica e política que a região das Caraíbas viveu (e vive) nas últimas décadas para perceber a dimensão e a profundidade das sequelas que lá deixaram o colonialismo e o neo-colonialismo. A violência social, a miséria crónica da maioria da população, o desrespeito completo pelos mais elementares direitos humanos, a permanência de um Estado, seja em modelos ditatoriais seja em modelos ditos “democráticos”, que apenas existe para satisfazer a avidez cega de “famílias” já per si ricas e poderosas, fazem, desta região, um dos palcos mais sinistros da história contemporânea. E não vale a pena assinalar aqui e ali uma ou outra excepção, pois esses casos só vêm tornar ainda mais gritante a regra geral: e essa é que os Estados, nesta região, são encarados pela grande maioria da população como “gangs” de criminosos a evitar e não como entidades constituídas para proteger e promover o bem-estar da comunidade.

As Caraíbas, pela mais obscena das razões, tem sido objecto do interesse cíclico da comunicação social europeia e americana: a sua voraz necessidade de sangue para inebriar audiências tem feito com que “corra” a noticiar as crónicas intempéries (terramotos, inundações, tempestades tropicais, etc.) que assolam esta região, provocando milhares e milhares de mortos. Mas raramente essa mesma comunicação social se interessa por entender e explicar os “reais” motivos dessas destruições de vidas humanas e do ambiente, que, obviamente, não estão tanto nas catástrofes naturais, mas mais no profundo subdesenvolvimento destas sociedades, na miséria em que está mergulhada a enorme maioria da população e na incapacidade de “responder” de forma cabal a essas calamidades.

Ora, toda esta situação, naturalmente, determinou, não tanto a qualidade ou a quantidade da produção literária e artística, mas, em particular, o modo como se processa a produção discursiva nestas manifestações (veja-se, a título de exemplo, a relevância que tem nas Antilhas a “pintura naïf” e como os artistas contemporâneos têm vindo a reequacionar este património); e, consequentemente, obriga a procurar entender de outra forma esses discursos, abdicando de abordagens assentes em modelos canónicos ocidentais.

Estas constatações resultam da minha leitura de uma obra de um escritor do Haiti (o romance intitula-se “L’Énigme du Retour”, e o autor é Dany Laferrière), e de perceber que pouco se sabe da realidade deste país, e muito menos da sua literatura, principalmente fora do espaço francófono. E este facto levou-me, mais uma vez, a reflectir sobre os mecanismos culturais que motivam o interesse pela leitura de uma obra literária (e a quase inevitável propensão “nacionalista” com que se fazem essas opções) ou ainda sobre a fundamentação do modelo com que se constrói a história literária (mais assente no impacto e/ou projecção de uma obra ou de um autor, isto é, em critérios, em boa parte extraliterários, do que em valores intrínsecos à própria obra).

Lembro que a história contemporânea do Haiti dá-lhe certas peculiaridades que o destacam dos restantes países da região e da América Latina, como, por exemplo, ser, depois dos Estados Unidos, a primeira colónia americana a tornar-se independente, ter “nascido” de uma revolta de escravos e ser, provavelmente, por isso mesmo, um dos primeiros Estados a abolir a escravatura. Mas, durante o restante séc. XIX e todo o séc. XX, o que caracterizou a vida política deste país foi a permanente instabilidade, com inúmeras rebeliões, conflitos rácicos entre mulatos e negros, golpes de Estado militares e guerras com a vizinha República Dominicana (que “motivou” uma ocupação dos Estados Unidos). Lamentavelmente, a única excepção nesta constante instabilidade foi no período em que o poder foi ocupado por duas das ditaduras mais brutais e sangrentas do continente americano: os Duvalier, pai e filho (os famigerados “Papa Doc” e “Baby Doc”), que se mantiveram no poder durante cerca de trinta anos, suportados por milícias e “esquadrões da morte” (os famigerados “Tonton Macoute”, que se mantiveram no “activo”, mesmo depois do fim das ditaduras dos Duvalier), objectivamente acusados de vários massacres de populações civis e de oposicionistas. Nos últimos trinta anos, depois da saída do poder, em 1987, dos Duvalier, o Haiti voltou de novo à ininterrupta instabilidade política, transformando-se cada vez mais num “protectorado” dos Estados Unidos, com este país a interferir permanentemente no “caos” da sua política interna.

 É esta história, associada a uma endémica corrupção e a pilhagens constantes das riquezas públicas por parte das famílias próximas do poder político, que justifica o gravíssimo subdesenvolvimento do Haiti, cuja maioria da população vive esmagada pela penúria e pela fome. Os indicadores de desenvolvimento socio-económico e cultural deste país, apresentados pelos organismos internacionais, comprovam, em todos os aspectos, que ele se encontra numa enorme fragilidade, sendo um dos países mais subdesenvolvidos do globo. Hoje, o Haiti subsiste à custa da assistência pública internacional; mas, até nessa perspectiva, a situação é dramática, pois muitas dessas entidades, com o seu enorme exército de técnicos e “especialistas”, vivem, como os próprios haitianos mais esclarecidos o afirmam, de forma parasitária em redor da situação de carência de toda a ordem das populações, sem, no entanto, alterar de forma eficaz a presente situação.

Com este cenário, não admira que os haitianos se vejam obrigados, desde que tenham meios para o fazer, a uma crónica emigração, incluindo, naturalmente, as suas elites culturais que se sentem em absoluto incapazes de sobreviver no seu país, acossadas pela miséria circundante e por bandos de assassinos. E, integrando esta elite, obviamente os seus escritores.

Ora, tendo em conta tão precárias condições de subsistência, não se pode afirmar que a literatura haitiana tenha um valor displicente. Pelo contrário, pode dizer-se que é, sem sombra de dúvida, uma das mais florescentes das Caraíbas. Porém, como se percebe, uma boa parte dos autores mais reconhecidos vive no exterior do Haiti (em França, no Canadá e nos Estados Unidos) e escreve em francês ou, em menor grau, em inglês. De facto, mesmo não sendo língua oficial (essas línguas são o crioulo haitiano, falado por toda a população, e o francês, falado apenas por cerca de metade dela), o inglês, decorrente da enorme diáspora para os Estados Unidos e Canadá, e ainda, possivelmente, como consequência secundária do ascendente dos Estados Unidos na vida pública haitiana, tem sido utilizado por alguns escritores relevantes, como é o caso de Edwidge Danticat (n.1969), uma narradora radicada nos Estados Unidos, que tem obtido o reconhecimento da crítica e do público (recordo que ganhou, entre muitos outros prémios e consagrações, o prestigiadíssimo Prémio Neustadt, em 2017, para o conjunto da sua obra).      

Quanto aos autores em língua francesa, destaco os nomes de Jacques Roumain (1907-1944), militante comunista e autor de um dos romances essenciais (“Les Gouverneurs de la rosée”) da literatura haitiana, René Depestre (n. 1926), principalmente reconhecido como poeta, mas que também é um importante romancista e ensaísta, Frenkétienne (n. 1936), poeta e dramaturgo, além de pintor e músico, o magnífico e malogrado romancista Jacques Stephen Alexis (1922-1961), Jean Métellus (1937-2014), também reconhecido como poeta, Yannick Lahens (n. 1953), Louis-Philippe Dalembert (n.1962) e o já referido Dany Laferrière (n.1953).

Este autor, exilado em Montreal desde os anos setenta, já com mais de duas dezenas de títulos publicados, adquiriu, desde a edição do seu primeiro romance (com o saboroso título de “Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer”), em meados da década seguinte ao início do seu exílio, um reconhecido sucesso tanto no Canadá como em França, logrando vários prémios (entre eles, o Prémio Medicis com este romance que agora li, “L’Enigme du retour”) e doutoramentos “honoris causa”, concedidos por universidades francesas, canadianas e americanas. A coroar este percurso literário, foi eleito para a Academia Francesa em 2013, sendo o segundo membro desta Academia a não ter a nacionalidade francesa (o outro foi Julien Green). Em resumo, Dany Laferrière é hoje considerado como um dos mais importantes autores da francofonia.

Uma característica inteiramente assumida na obra de Dany Laferrière é o seu caracter autobiográfico. É, por isso, compreensível que a sua obra se centre na temática do exílio, da situação dos exilados nos países de acolhimento e da sua relação com o país de origem. Mas, aceitando o pressuposto que a autobiografia é um registo convencionado, o autor estabelece uma constante dialéctica com a memória, abrindo-se dessa forma à autoficção.

Pode, assim, afirmar-se que, ao confluir na mesma entidade a figura de autor e de narrador, há a intenção, por parte de Dany Laferrière, de questionar a própria figura do autor, procurando “iludir” ou “apagar” a personagem real, concreta, com a nova entidade criada: o autor pretende perenizar nesta figura do narrador/autor a sua própria imagem.

Ora, é neste contexto que “L’Enigme du retour” funciona como uma espécie de culminar de toda a sua obra ou, pelo menos, como uma peça-chave de um percurso literário. E, talvez por isso, tenha sido tão bem recebida no mundo literário de língua francesa.

A trama do romance é, na aparência, muito simples e escreve-se em duas linhas: o narrador/autor recebe, a certo momento da sua vida, um telefonema a informá-lo de que o seu pai morreu; e percebe que isso é um “ponto de ruptura” que o obriga a contextualizar o seu passado e o seu percurso. Para isso, sente necessidade de entender essa figura paterna cuja morte lhe foi anunciada e que ele mal conheceu e, com ela, o Haiti da sua infância e adolescência.

Mas para perceber as “repercussões” desta decisão (e são essas “repercussões” que vão constituir a componente estrutural do romance), tem que se explicar que este pai, rigorosamente homónimo do narrador/autor, foi obrigado a fugir do país, por temer pela sua vida, em meados da metade da década de cinquenta, para os Estados Unidos, em consequência da sua oposição ao regime de “Papa Doc”; vinte anos depois, pelas mesmas razões, o filho, o narrador/autor, foge também do Haiti, para um exílio no Canadá, agora receando os Tonton Macoute de “Baby Doc”. Entre pai e filho (pois o pai fora obrigado a fugir quando Dany Laferrière tinha apenas quatro anos) ficou somente as narrativas da sua mãe e da sua avó e dos amigos militantes do pai.

Percebe-se ainda que a tentativa de compreender a personalidade do pai, leva o narrador/autor a tentar situar-se em relação ao Haiti da sua infância e adolescência, aceitando, em grande parte, que esta é uma entidade mítica e fruto do imaginário pessoal. Por isso mesmo, o narrador/autor percebe que este “regresso” não é uma simples viagem de captação da presente vivência dos espaços e lugares onde viveu. A sua dimensão “iniciatória” obriga-o a confrontar essa experiência com a paisagem (e até o clima) do lugar de acolhimento (a Montreal gélida ou, no sentido mais amplo, o Norte), onde no essencial viveu os últimos trinta anos.

Assim, decide deslocar-se, numa espécie de deriva preparatória, para outras regiões do Canadá e dos Estados Unidos, estacionando, em particular, em Brooklyn, onde o pai vivera e acabara por morrer, recolhendo os seus últimos e poucos pertences (o que inclui uma mala depositada em seu nome num banco em Manhattan, que o narrador/autor abandona, pois não a consegue abrir e sente que é um sofrimento inútil descobrir o que lá está…), falando com amigos e familiares e procurando perceber quem era “aquele” pai que morreu rigorosamente só. Ao mesmo tempo que faz esta deambulação de “luto e despedida”, o narrador/autor sonha… pois percebe que a actividade onírica é uma forma “oculta” de visitar esses mesmos espaços e lugares sem ser reconhecido, um pouco como a entrada “clandestina” nos lugares que a sua imaginação “recriou” e que necessita de ter presente e vivo na sua consciência para os confrontar com o país real.

Como bagagem, leva apenas o “Cahier d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire, um clássico fundamental da literatura antilhana, que serve como apoio mágico e referência na procura de compreender o seu lugar original.  

Perceber o Haiti. Perceber, na imagem cristalizada do passado, a sua beleza terrífica e sedutora (é muito curioso e interessante que o narrador/autor, entre as diversas qualidades e atributos do pai, destaque a sua capacidade de sedução – atributo necessário para o seu papel de líder), na aridez quase extática dos lugares e na aparente serenidade dos homens, mergulhados na mais negra fome e à espera do crime anónimo que lhes silencie o sofrimento.

Para isso, como referi, o autor vai necessitar de utilizar todos os seus recursos e abordagens. Um deles é, naturalmente, perceber as manifestações culturais do seu povo, em particular, a sua pintura “naïf”, assim como a literatura, uma componente determinante do seu país imaginário.

Esse regresso ao Haiti vai, assim, transformar-se num ritual exorcista próximo da liturgia vudu: saber qual é o lugar dos “mortos” (o pai, um certo país chamado Haiti, repleto de amigos, mas também de castas rácicas, de miseráveis e de assassinos) e, principalmente, se eles continuam ou não a conviver com os vivos.

O resultado dessa “peregrinatio ad loca infecta” é compreender que todos estes “países”, todas estas formas de entender o Haiti, coexistem, tal como coexistem, no mesmo reino, os vivos e os mortos. E que o seu lugar, o seu lugar de autor/narrador é estar em permanente deriva: a nenhum lugar pertence porque a todos pertence.

É também esta certeza que o autor/narrador descobre no olhar silencioso do seu sobrinho que o acompanha no périplo pelo Haiti: a de que ele irá inevitavelmente seguir os passos do seu pai e de ele próprio, e que o sobrinho, ao acompanhá-lo, está também a preparar-se para abandonar o Haiti. Há um destino, uma verdade irredutível, na sua condição de haitianos que os leva a permanecer em trajecto, sempre cá e lá, vivendo presos ao seu lugar de origem, mas em constante fuga para outro lado.

O que fica deste caminho? Um livro, que utiliza todos os registos, do poético à narrativa, do ensaio ao levantamento geográfico e etnográfico, um conjunto de espectros circulando entre o amor e o absoluto silêncio. E a dor, a dor de um destino imparável, entre a fuga e o regresso, entre o exílio e a amarga sobrevivência.
 
Lisboa, 28 de Maio de 2019
 



segunda-feira, 16 de julho de 2018

ROBERT COOVER 2

 
 
 
 
EXERCÍCIO DE ESTILO
 
Se existe um tema que se pode entender como clássico, no quadro de teorização da modernidade, esse é inegavelmente o das relações entre serva/senhor. Remetendo para três imensos pilares do pensamento moderno — Sade, Freud e Nietzsche —, durante este século, vários pensadores, onde sobressai Bataille, perturbaram as nossas consciências humanistas e bem-pensantes, ao esmiuçarem a dependência corpórea, sensorial, que tal relação estabelece entre os seus membros, ao clarificarem a necessidade orgânica que institui, chegando ao ponto de assinalarem que a sua ruptura provoca um desequilíbrio fatal e comummente doloroso nos seus dois pólos.
 
É a este tema que resolve regressar o escritor norte-americano Robert Coover, em A Criada e o Amo. Este autor, pela primeira vez traduzido para português, iniciou em 1966, com The Origin of the Burnists, a publicação de uma significativa obra de ficção (lembramos Pricksongs and Descants, The Public Burning, etc.), marcada por uma permanente preocupação formal e orientada para a desagregação das estruturas normativas e clássicas do romance. Essa obra, entroncando numa tendência da ficção americana contemporânea, que tem também como expoentes Harry Mathews, John Barth e Richard Brautigan (todos eles desconhecidos do leitor português), tem, portanto, uma importante vertente experimental que transforma as narrativas numa espécie de arte combinatória de elementos formais onde as regras do jogo substituem as condicionantes miméticas (se quisermos encontrar alguma correspondência à obra de Robert Coover na literatura deste lado do Atlântico, devemos lembrar-nos das experiências do grupo OuLiPo, liderado por Raymond Queneau e Georges Perec).
 
É por isso que se pode afirmar que o tema de A Criada e o Amo é um “logro” a que o autor tem que recorrer para evidenciar aquilo que está subjacente e é nuclear na própria produção ficcional, que é a sua estrutura formal. Aproveitando-se de um quadro narrativo repetitivo e onde é desnecessária, e inconveniente, a progressão (o início dos trabalhos domésticos de uma criada e a sua sistemática punição por desleixo), Robert Coover vai desenvolver uma combinatória de referentes que, alterando-se e deslocando-se na própria narrativa, vão assinalar a subreptícia progressão de comportamentos até à ritualização de uma relação perversamente punitiva, onde os seus objectivos e sentidos se vão desvirtuando até ser a própria existência do “castigo” que justifica a relação.
 
As variantes de texto para texto são a tal ponto gradativas que a sua progressão faz-nos lembrar as experiências da música e do bailado “minimal” (como muito bem refere o texto de apresentação que aparece na contra-capa desta edição), e um trabalho interessante a realizar, face a esta obra, era perceber qual a lógica que determina aquela progressão (aritmética? geométrica?).
 
Perante um tema tão exaustivamente estudado (e, portanto, onde é difícil apresentar inovações significativas) e com um valor tão subsidiário na produção da obra, o que se realça em A Criada e o Amo é a sua dimensão de “exercício de estilo”. Mas talvez seja essa mesma predominância das preocupações formais que leva o leitor, ao concluir a leitura desta obra, a encará-la como demasiado fechada em si mesma e, por conseguinte, inútil.
 
Publicado no Expresso em 1987.
 
 
Título: A Criada e o Amo
Autor: Robert Coover
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Ed. Fragmentos
Ano: 1987
68 págs., esg.
 




quinta-feira, 12 de julho de 2018

GRACE PALEY

 
 
 

MÚSICA DE CÂMARA

 

Existem escritores que, em vez de pretenderem realizar abrangentes totalidades sobre a condição do homem, ou de se confrontarem com espectaculares tragédias ou imponentes sistemas filosóficos, impõem, pelo contrário, nas suas obras, uma tonalidade de música de câmara, procurando unicamente aflorar aqueles “dramas moleculares” do quotidiano que tanto condicionam a existência.

 
É este o caso de Grace Paley, uma escritora norte-americana que, há cerca de trinta anos, iniciou a sua obra de ficcionista com este Pequenas Contrariedades da Existência que a Relógio d’Água agora traduziu e editou. Originária de uma família judia russa, Grace Paley nasceu, em 1922, em New York, tendo dedicado a maior parte da sua vida a conceber “short-stories” possíveis de terem de facto sucedido entre a vizinhança dos bairros de Bronx ou de Lower East Side onde sempre viveu.

 
Pequenas Contrariedades da Existência é constituída (como a restante obra desta autora) por breves histórias de mulheres, narradas, de forma sistemática, com um humor que, muitas vezes, toca o patético, e onde a desgraça ou a felicidade parecem não ser coisas deste mundo, ou, pelo contrário, tão profundamente mescladas na vida das pessoas, que dá a ideia de que a lágrima e o sorriso aparecem do nada.

 
A melancolia e a ternura com que são descritas rupturas e as paixões, os conflitos de geração, as faltas de dinheiro ou as súbitas prosperidades, transmitem a estas “short-stories” uma envolvente serenidade e revelam que Grace Paley tem uma enorme cumplicidade com as personagens femininas que retrata.

 
Depreende-se de Pequenas Contrariedades da Existência uma vontade simples de “mostrar”, como se fosse impossível descobrir qualquer sentido na existência das pessoas. Nenhuma conclusão é assim retirada destas “short-stories”, deixando-se, por isso, ao leitor a possibilidade de efabular a sua significação.

 
Utilizando a elipse e um estilo simples e directo, num tom vagamente tchekoviano (a que não deve ser estranha a sua origem russa e judia), Grace Paley consegue atingir, em Pequenas Contrariedades da Existência, uma significativa intensidade lírica que é, a maior parte das vezes, um sinal maior das “short-stories” - essa, sem sombra de dúvida, a grande criação narrativa da literatura norte-americana.

 
Lamenta-se, no entanto, que a edição portuguesa revele uma tradução e revisão descuidadas, obscurecendo, não poucas vezes, o sentido destas histórias.

 
 

Publicado na revista Ler em 1987.

 


 

Título: Pequenas Contrariedades da Existência
Autor: Grace Paley
Tradutor: Paula Castro
Editor: Relógio d’Água
Ano: 1987
126 págs., esg.
 

 



GORE VIDAL 4

 
 
 
OS BASTIDORES DO ESPECTÁCULO DO PODER
 
Uma tremenda trovoada cai, de noite, sobre um amplo relvado salpicado por árvores de grande porte. Num dos extremos do relvado, uma mansão georgiana toda iluminada, onde decorre uma luxuosa recepção. Recolhido debaixo de uma destas árvores, um adolescente, vestido a rigor com um fato branco, confronta-se com a trovoada, convence-se de que é capaz de a dominar. A chuva bate-lhe na cara, ensopa-lhe o fato e obriga-o a fugir, ensurdecido pelos trovões, para o pavilhão da piscina. Pára à porta, porque ouve um rádio a tocar, e, através da luz intermitente dos relâmpagos, vê, sem conseguir identificá-lo, um casal a fazer amor. A sofrer com a sua própria carência de adolescente, resolve fugir de novo, atravessando a correr o relvado e entrando, pelas traseiras, na grande casa.
 
Creio que, mesmo na sua inevitável pobreza, esta descrição sucinta da acção inicial de Washington, D. C., de Gore Vidal, revela o carácter “espectacular”, diria mesmo hollywoodiano, com que este autor nos introduz na saga em que pretendeu decifrar o poder político norte-americano.
 
Gore Vidal começou (por fim…) a ser traduzido no nosso país, e logo com uma das obras mais importantes deste autor que, desde muito cedo, se distinguiu na literatura americana do pós-guerra pela sua versatilidade estilística e temática. Descendente de uma família ligada tradicionalmente à elite dirigente dos Estados Unidos, Gore Vidal nunca iludiu a sua íntima relação com esse “establishment” (ele foi, por exemplo, uma figura proeminente da corte dos Kennedy e candidato a senador), mas, ao mesmo tempo, sempre assumiu atitudes muito críticas e incómodas para com esse “establishment” e, por isso, todas as suas regulares participações nos meios de comunicação social (Gore Vidal tornou-se profusamente conhecido nos Estados Unidos em consequência das suas, sempre “notadas”, aparições televisivas) provocaram repercutantes polémicas. Narcisista, sempre convicto da argúcia e da pertinência dos seus argumentos, Gore Vidal acusa de mediocridade a actual literatura americana (salvam-se Tennessee WiIIiams, Christopher Isherwood, Eudora Welty e poucos mais…), aponta a corrupção e a apetência autocrática e imperialista dos presentes dirigentes políticos, denuncia a “ditadura heterossexual” da sociedade em que vive. Gore Vidal conseguiu, assim, tornar-se uma das vozes mais radicais da vida americana e, numa daquelas contradições bem típicas dos Estados Unidos, uma das mais ouvidas e das mais solitárias.
 
Em termos literários, a vasta obra de Gore Vidal estende-se pelos domínios da ensaística, da dramaturgia e da narrativa. Este último domínio organiza-se, no fundamental, em três áreas formais: a ficção histórica, a sátira romanesca à sociedade americana e a ficção científica. De todas estas áreas, talvez a mais importante seja a do romance histórico, onde se destacam os títulos de Creation e, em especial, das duas trilogias sobre a história americana (a primeira, da qual o tomo inicial é este Washington, D.C., é constituída também pelos romances Burr e 1876, e a segunda encontra-se em fase de criação, tendo-se, no entanto, já publicado os títulos de Lincoln e Empire).
 
Washington, D. C. foi considerado, pela crítica dos Estados Unidos, como um dos melhores romances alguma vez escritos sobre o poder político norte-americano, e, em particular, sobre aquela cidade que, com os seus matizes vincadamente provincianos e, ao mesmo tempo, pretensamente cosmopolitas, lhe serve de sede.
 
A acção do romance processa-se entre o New Deal de F. Roosevelt e a Guerra Fria de Eisenhower, período em que Gore Vidal considera que se funda o actual império norte-americano, e analisa duas das relações mais determinantes para a compreensão da sua vida política: as relações entre os meios de comunicação social e o poder político, e, dentro deste, entre o Senado e a Presidência. Para isso, coloca em situação, por um lado, a família Sanford, que domina a imprensa da cidade, e, por outro, dois políticos, o senador Burden Day e o seu assistente Clay Overbury, e a respectiva ambição de atingir, como soe dizer-se nestas circunstâncias, a mais alta magistratura da nação americana.
 
Numa perspectiva estilística, como já foi referido, a obra explora toda a capacidade de encenação espectacular da escrita para, com um não-sei-quê de ironia, colocá-la ao serviço da descrição do “destino excepcional” das figuras que partilham o poder da nação mais poderosa do mundo. Utilizando uma estrutura clássica, Gore Vidal vai situando, como eixo central das diversas sub-divisões dos nove capítulos que constituem o romance, uma personagem diferente, o que permite apresentar distintos pontos de vista sobre a acção, complexificando assim os juízos que, sobre esta, se possam fazer, e afastando qualquer fácil tendência maniqueísta em que o leitor possa cair.
 
Como é habitual na ficção histórica, em Washington D. C. cruzam-se personagens reais com “inventadas”, e na acção do romance reflectem-se os principais acontecimentos porque passou a história americana naquele período: o reforço da esquerda liberal, depois do seu empenho na guerra civil espanhola, na administração do New Deal, a recuperação económica, a tensão internacional na fase pré-guerra e o neutralismo, a participação no conflito mundial, a ocupação de Berlim, Yalta, Hiroshima e a Conferência de São Francisco, a caça às bruxas maccarthista, a política de Blocos, a Guerra Fria e o muro de Berlim. Todos os desempenhos da política norte-americana perante estes acontecimentos são encarados como resultantes de um jogo, complexo e arriscado (e, por isso mesmo, amoral), que a elite social de Washington vai executando pela conquista do poder político, e como “puras emanações” de um microcosmos, sobre as quais, por conseguinte, cada elemento integrante parece não ter responsabilidades directas e objectivas.
 
Gore Vidal não esconde que entende a conquista poder político, antes do mais, como uma vitória da inteligência. É certo que existe, como é óbvio, uma intervenção do acaso (ou da sorte) na ascensão ao poder político; mas esta é principalmente consequência de uma implacável capacidade de sedução e de manobra das pessoas. A ascensão ao poder político é, por isso, resultante de um acumular (e de um culminar) de diversos pequenos poderes e conquistas; daí que o poder político tenha uma voracidade tal que exija a total absorção do indivíduo que lhe sentiu o fascínio, ao ponto de abdicar de si, isto é, de ocultar a sua subjectividade. Esta deixa de ter qualquer autonomia: deverá, como tudo o resto, resignar-se ao objectivo da conquista do poder.
 
É face a esta exigência do poder que, no essencial, as personagens de Washington, D. C. se situam: umas sujeitam-se por completo às regras impostas pelo jogo do poder, mesmo que isso leve à destruição de parte de si próprias (é o caso de Blaise Sanford, o magnate que domina a imprensa de Washington e de Clay Overbury, o jovem político em constante ascensão), e são, por isso, “inevitavelmente”, vitoriosas; outras encaram o poder político como devendo estar também sujeito a regras, principalmente morais, e, por conseguinte, sabem que, “inevitavelmente”, não estão em condições de o disputar, resignando-se ao simples papel de incomodarem e dificultarem a ascensão das primeiras, mas conseguindo deste modo, mesmo que condicionadas, obter uma certa integridade solitária como pessoas (é o caso do jovem Peter Sanford e, de certo modo, de Diana Day).
 
Perante estes dois universos em ininterrupto confronto, demarca-se o senador Burden Day, um político que pretende ainda conciliá-los, e que, por isso mesmo, é um representante da “idade de ouro” da política americana, quando esta ainda procurava governar uma República e não um Estado Imperial (note-se que, em obras posteriores, Gore Vidal renunciou a esta imagem de um período exemplar na política americana). No entanto, perante as exigências dos “novos tempos”, a tentativa de conciliação de Burden Day vai também transmitir dele uma imagem de fraco e de um vencido.
 
E, contudo, este controle do poder político não vai dar aos vitoriosos nenhum poder efectivo, mas só o prazer de gerirem um jogo: os políticos são obrigados permanentemente, de modo a não o perder, a executar uma estratégia de sedução o mais ampla possível e, por isso mesmo, a afirmarem-se numa sintonia abúlica com a maioria social. Além disso, as relações entre o Senado, o Congresso e a Presidência levam à anulação de um poder autónomo, e, por outro lado, estes vivem sujeitos a uma administração tentacular que de facto tudo decide.
 
Uma das constatações que se retiram da leitura de Washington, D. C. é que o Presidente americano nada governa, estando apenas limitado a expressar um “estilo” que dá uma “imagem” ao poder. Os políticos vitoriosos sabem, por isso, que é fundamental não revelarem idiossincrasias que se tornem fatais e isso condiciona-os a uma “retórica” do poder que pouco decide e que apenas transmite os sinais ritualizados de que tudo domina.
 
Convém ainda salientar que, em Washington, D. C., as próprias personagens, que entendem que a ascensão ao poder político deve estar sujeita a regras, não assumem essa atitude em consequência de qualquer princípio altruísta, exterior a eles próprios; pelo contrário, foi resultante do confronto entre a história pessoal e a própria História que determinou o modo como cada um encara o poder político.
 
Por fim, gostaria de referir que uma das virtualidades de Washington, D. C. é possibilitar uma viva compreensão, mesmo considerando a distância temporal entre o período referenciado e a actualidade, de um país que tem a intrigante capacidade de conciliar as dinâmicas sociais mais inovadoras com um “actor-presidente” (fica bem saliente neste romance de Gore Vidal como é “perturbantemente lógico” que um actor, pela sua intrínseca compreensão de que o poder é, no essencial, espectáculo, ocupe hoje a Casa Branca) que se evidencia por um discurso, na aparência anacrónico, mas que, no fundo, está em completa consonância com a imensa face oculta da sociedade americana.
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
 
Título: Washington, D. C.
Autor: Gore Vidal
Tradutor: Fernanda Barão
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
388 págs., esg.
 
 



domingo, 8 de julho de 2018

SAUL BELLOW 2

 


ALGUÉM CHORA POR NÓS
 
 
A um certo passo, em Agarra o Dia de Saul Bellow, um velho médico burlão, que pretende continuar a “enrolar” a personagem principal, Tommy Wilhelm, diz, ao tentar convencê-lo da pertinência do projecto deste de separação e divórcio: ”Porque a deixa fazê-lo sofrer assim? (...) Não faça o jogo dela. (...) Quero dizer-lhe, não case com o sofrimento. Há quem o faça. Casam com ele, e dormem e comem juntos, como marido e mulher. Se deixam entrar a alegria pensam que é adultério.” E mais adiante, comentando a realidade que o circunda: ”Sete por cento deste país estão a suicidar-se por meio do álcool. Outros três, talvez, narcóticos. Mais sessenta que escorregam para o pó por meio do tédio. Mais vinte que venderam a alma ao demónio. E, então, há a pequena percentagem daqueles que querem viver. E essa é a única coisa com significado em todo o mundo de hoje. Esses são apenas os dois tipos de pessoas que há. Alguns querem viver, mas a grande maioria não. (,,,) Digo-lhe mais — continuou —, o amor dos moribundos resume-se a uma coisa: querem que morramos com eles. É porque nos amam. Não nos enganemos.”
 
Este longo “discurso”, colocado ironicamente na boca de um charlatão, sintetiza o quadro que ensombrece toda esta obra de Saul Bellow.
 
Tommy Wilhelm encontra-se a meio da sua vida e sente-se totalmente falhado. Repudiado pelo pai, abandonou mulher e filhos, não conseguiu afirmar-se como actor de cinema, sentiu-se obrigado, em termos morais, a abandonar o emprego, investiu o pouco dinheiro que ainda tinha na Bolsa de Mercadorias e perdeu-o. Vive num hotel, com as contas por pagar, sem amigos, e, principalmente, de todo descrente em relação a si próprio. Tommy Wilhelm, quer queira ou não, casou-se com o sofrimento.
 
É por isso que, ao fazer um balanço da sua própria vida, durante vinte e quatro horas, Tommy Wilhelm, desvenda um dos mais cruéis sintomas da sociedade americana: envolvidos em tantos estímulos de afirmação e consumo, convencidos de que o querer desliza sem atritos nesta sociedade, os homens desfazem e refazem as suas vidas, diluindo-se na névoa dos dias sem deixarem qualquer rasto.
 
Talvez em Portugal não se tenha ainda evidenciado a importância de Saul Bellow, provavelmente o escritor americano mais saliente do pós-guerra. A obra deste autor (vasta, com diversas fases distintas, galardoada com o Prémio Nobel, e donde se destaca este Agarra o Dia, para muitos críticos considerado como a sua obra-prima) não passa de um longo monólogo de um sujeito que ambiciona a omnisciência do lugar, mas que, perante a irrazão dos actuais mecanismos sociais, se sente desagregado e perdido.
 
É este o ponto de partida que origina uma das visões mais pessimistas da sociedade americana que alguma vez foi escrita: quando Tommy Wilhelm, no final das suas deambulações de um dia avassaladoramente depressivo, se encontra, por acaso, no funeral de um desconhecido, e rebenta numa crise de choro, aquilo que ele chora é a total inutilidade do destino do homem contemporâneo. Mas Saul Bellow sabe (e consegue transmitir-nos essa sensação, ao encerrarmos esta novela) que o verdadeiro horror chegará quando a crise de choro passar, quando Tommy Wilhelm abandonar aquele funeral de um individuo que, de um modo anónimo, personifica o irremediável e universal sem sentido da própria existência.
 
Publicado na revista Ler em 1987.
 
 
Título: Agarra o Dia
Autor: Saul Bellow
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Fragmentos
Ano: 1987
112 págs., esg.
 
 

 


sexta-feira, 29 de junho de 2018

WILLIAM S. BURROUGHS e JACK KEROUAC

 
 
 
 
 
A ETERNA ADOLESCÊNCIA A CAMINHO DO NEGRO FIM DO MUNDO
 
Quando se silenciou o troar apocalíptico das bombas e dos canhões da II Guerra Mundial, os Estados Unidos, que tinham passado quase incólumes no conflito (sem invasões nem destruições no seu território e com menos de meio milhão de vítimas militares – isto é, apenas 1% das vítimas globais da Guerra), encontravam-se, no início da década de cinquenta, num aparentemente imparável ciclo de crescimento económico. A irradiação do bem-estar e do consumo em vastos segmentos da população, que até aí tinham vivido na penúria da Depressão e da Guerra, mergulhava o “bom americano” num imenso optimismo, fruto da crença num linearismo desenvolvimentista que iria trazer, segundo parecia, a “paz universal” e a “felicidade eterna” na terra. Foi neste ambiente social e económico, que dava a impressão de condenar toda a gente a um modelo de vida e a uma forma de estar padronizada, que apareceu na costa Oeste, a contragosto, toda uma geração de intelectuais, a “beat generation”, que procurava um “outro” território existencial, dando origem a uma imprevisível tormenta na desmesurada nau americana.
 
Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Jack Kerouac, William S. Burroughs, Gary Snider, Neal Cassady, etc., têm, de facto, em comum, uma necessidade de fuga (Gilles Deleuze, em 1977, considerava-a como a característica determinante de toda a literatura anglo-americana deste século; mas não há dúvida que, onde ela se torna ostensivamente evidente, é na produção literária da “beat generation”): a filosofia oriental, o uso regular de estimulantes e alucinogénios, a afirmação da sexualidade, o pacifismo e o anti-nuclearismo, o renascimento de certa americanidade (a de Whitman, Pound e Henry Miller, por exemplo) resumem-se a uma procura frenética de práticas quotidianas alternativas, à exploração de campos “off que, obviamente, ultrapassam em muito o domínio da produção artística e literária. O peso social destas práticas, e das propostas ideológicas decorrentes, foi tremendo, e quem queira perseguir a genealogia dos fenómenos sociais mais expressivos dos anos sessenta e setenta terá que, de forma inevitável, passar pela acção cultural da “beat generation”.
 
Todo este processo se encontra hoje, contudo, bem distante: a editora e livraria de Lawrence Ferlinghetti, que publicou todos estes autores, a City Light Books, tornou-se um templo institucional em San Francisco, a Universidade de Berkeley o panteão da sua glorificação, os autores “beat” mitos vivos e... mortos. E, como é natural, a avaliação rigorosa da sua produção literária e artística começou a efectuar-se, mais ou menos liberta da fascinante circunstancialidade que a envolveu.
 
William S. Burroughs e Jack Kerouac são, reconhecidamente, os maiores prosadores desta geração. E, curiosamente, qualquer deles pretendeu esquivar-se a uma imagem de estritos romancistas.
 
O primeiro, depois de passar por uma dolorosa experiência de toxicómano, dependente de opiáceos, por longas estadias na América do Sul e na África do Norte (a sua permanência em Tânger, em consequência do seu comportamento anómalo, tornou-se lendária), foi alvo, em Boston, por alturas da edição americana da sua segunda obra, Naked Lunch, de um julgamento muito polémico, acusado de obscenidade e atentado aos costumes: o livro (já traduzido para português com o título A Refeição Nua) é resultante de um conjunto de anotações feitas no período da dependência e, posteriormente, no de tratamento por apomorfina.
 
No seguimento desta experiência narrativa, Burroughs vai dedicar-se, durante quase uma década (1959-1967),a um trabalho experimental sobre a linguagem (aplicando, de um modo sistemático, o “cut-up”, método inventado por um seu amigo, o pintor Bryon Gysin, e oriundo de experiências pontuais de Tzara e de algumas concepções teóricas de Cage e MacLuhan), pretendendo estabelecer um elo de comunicação pré-racional com o leitor, e convencido de que a literatura tinha de se converter num instrumento de guerrilha contra a semântica e contra racionalidade que lhe está subjacente, entendidas como os principais suportes do sistema tecnológico, entendido pelo autor como opressivo, em que se vive.
 
Cidades da Noite Vermelha, o último livro de WiIIiam S.Burroughs, como os dois anteriores, é resultante de uma nova “viragem” literária do autor, consciente do “fiasco”, em termos de comunicabilidade, que foi a aplicação radical do “cut-up”. Interligando dois enredos, um, de flibusteiros, passado no séc. XVIII, outro, oriundo do romance negro americano (para lá de outros excertos dramáticos), o romance pretende explicitar a existência, em diferentes épocas, de uma surda guerra que forças obscuras movem com vista a transformar virologicamente a humanidade: conclui-se com um enredo de antecipação, onde, em gigantescas e espectrantes metrópoles, se estabelece uma imagem apocalíptica do nosso futuro, feita de violência e quotidiana criminalidade, de mutação e “perversão” sexual, de circulação permanente de opiáceos.
 
Mas a presença, em catadupa, de imagens brutais de violência, de aviltamento do outro, de degradação, muitas vezes associadas à homossexualidade masculina, só fazem sobressair, à revelia do alarme pessimista sobre o futuro da humanidade, que Cidades da Noite Vermelha pretende ser um “olhar puritano” sobre a actual sociedade, que desvirtua e torna inevitavelmente estéril esse mesmo alarme.
 
Por outro lado, o uso “disfarçado” do “cut-up” e o recurso a métodos narrativos retirados dos “comics” e da ficção “marginal” de aventuras desequilibram a estrutura romanesca desta obra e transformam-na num mero (mas brilhante) depositário de técnicas narrativas.
 
A este nível, o apontamento mais interessante relaciona-se com o “renascimento” de personagens e situações pertencentes aos anteriores enredos na terceira parte de Cidades da Noite Vermelha: ao integrá-las na trama final, William S. Burroughs consegue não só desfazer qualquer “ilusão naturalista”, que tivessem criado os anteriores enredos, por serem construídos por processos narrativos clássicos, como recria, em compensação, a ilusão de que o texto é um mecanismo que se autorreproduz, deixando um lastro semântico.
 
Esta obra torna bem evidente que a produção literária de William S. Burroughs se encontra, pelo menos numa fase provisória, numa situação sem saída criativa. Mas essa não será a situação de todo um conjunto de romancistas que, nas décadas de sessenta e setenta, se preocuparam em especial com uma reflexão sobre a linguagem e as técnicas narrativas, subvalorizando os registos especificamente dramáticos?
 
Quanto a Jack Kerouac, essa necessidade de fuga, de libertação de um quotidiano programado, determinou que a sua obra rejeitasse a especificidade do “literário” (entendido nos limites poéticos e estilísticos modelados pelas obras de Henry James e de Hemingway, autores, por ele, menosprezados): a escrita tinha que se tornar o instrumento imediato e testemunhante de um existir “poético”, isto é, emocionalmente intenso, e o romance uma torrente de palavras que pretendia apanhar o pulsar da vida, transformando-se no monumento épico do momento (os antecedentes desta escrita estão, como é bem explícito, em Céline e em Henry Miller, por exemplo).
 
The Dharma Bums (traduzido para português com o título infeliz de Os Vagabundos da Verdade), o seu terceiro livro, é, como a maioria da restante obra deste autor, a fixação romanesca de material autobiográfico: neste caso, as suas convivências com o budismo zen.
 
Mas, para lá da especificidade do enredo, o que é hoje realçante neste livro, como no já clássico On the Road, é ainda conseguir fascinar-nos, mesmo sofrendo de evidentes ingenuidades narrativas, por personagens que estabeleciam novos modos de viver, por imortais adolescentes sempre disponíveis à descoberta e à invenção de um outro sentir. E, inegavelmente, estes romances de Kerouac, ao dimensionarem de um modo poético todo um conjunto de sinais da civilização urbana, transformaram os Estados Unidos no paraíso daqueles que ainda acreditam ser possível o nomadismo como forma de estar.
 
Publicado no Expresso em 1984.
 
 
Título: Cidades da Noite Vermelha
Autor: William S. Burroughs
Tradutor: Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Editor: Difel
Ano: 1984
320 págs., esg.
 
 
Título: Os Vagabundos da Verdade
Autor: Jack Kerouac
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Minerva
Ano: 1984
303 págs. , esg.