sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

RICHARD WRIGHT

 
 
 
RADICALISMO E RECADO
 
A mais elementar história da literatura americana reconhece que Richard Wright, com os seus dois primeiros livros, Uncle Tom’s Children e este Filho Nativo, foi um autor-charneira na literatura de origem negra. Com um realismo “social”, denunciatório e didáctico (o autor era militante comunista quando os escreveu), estas obras contribuíram de facto para a caracterização da sensibilidade e do comportamento negros numa sociedade profundamente marcada pela segregação racial. E a sua repercussão foi de tal ordem que, sem sombra de dúvidas, determinou, estética e literariamente, a produção das gerações seguintes de escritores negros - mesmo quando repudiavam o seu realismo por demasiado ingénuo ou a excessiva tipificação dos seus personagens.
 
É certo que grande parte da importância deste escritor é resultante de razões históricas e sociológicas: Richard Wright viveu a deslocação de parte das comunidades do Sul para o Norte, a sua fixação nas grandes cidades industriais, a criação dos “bairros negros” e o novo tipo de violência que esta situação produziu. O romance Filho Nativo é o primeiro reflexo literário desta nova situação e, por isso mesmo, a obra fundadora do chamado “realismo urbano negro”.
 
Os méritos deste romance não se confinam, porém, ao estatuto de testemunho. Grande parte da modernidade e da importância de Filho Nativo advém das estratégias narrativas utilizadas para a caracterização da ambiência social e psicológica dessas novas comunidades. Assim, percebe-se que toda a construção romanesca é orientada para evidenciar, até ao excesso, que são os sentimentos constantes de medo e impotência que provocam a massificação sob uma mesma cor de pele. O desejo de extinguir a invisibilidade (como diria Ralph Ellison) do individuo motiva inteiramente o olhar e o comportamento de Bigger Thomas (que triste ideia, numa tradução que, de um modo geral, é escorreita e adequada, converter-se este nome em Tomás, o Calmeirão), mesmo nos brutais crimes que as circunstâncias o obrigam a executar.
 
Este é outro aspecto que demonstra a radicalidade da perspectiva de Richard Wright: ao construir a trama romanesca com base em dois crimes muito violentos e quase insuportáveis em termos éticos, o autor revela o carácter abissal da incomunicabilidade inter-racial num contexto de segregação. Repare-se, por exemplo, que Bigger Thomas, depois de cometer estes crimes por pânico, percebe que conseguiu, de qualquer modo, furar os condicionalismos do terror, sentindo, pela primeira vez na sua vida, o júbilo de ser soberano do seu destino - mesmo sabendo que este o irá arrastar para a pena de morte. Neste contexto, é impossível qualquer paliativo reformista, qualquer humanitarismo religioso ou ideológico, vindo do grupo étnico dominante; pelo contrário, este comportamento só reforça a presença branca e, por isso, agudiza o sentido de revolta e de liquidação do outro.
 
Grande parte da qualidade narrativa de Filho Nativo, onde são assinaláveis uma forte crueza e sentido de observação na representação das situações e um vigoroso dinamismo da acção dramática, desvanece-se, no entanto, na terceira e última parte. Aqui, como refere o lúcido posfácio de John Reilly, Richard Wright introduz o advogado de defesa Max, que irá funcionar como porta-voz das posições do autor em relação à questão racial. A partir desse momento, face às exigências do didactismo marxista, o ritmo narrativo amolece, a complexidade da observação vivida cede perante a linearidade da grelha ideológica e as personagens ganham em retórica psicologista o que perdem em eficácia dramática.
 
No fundo, este final revela-se contraproducente para os objectivos globais de Filho Nativo: as inquietações que levantam uma imagem contrastada da segregação racial ficam serenadas par um discurso que tudo procura responder e resolver.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Filho Nativo
Autor: Richard Wright
Tradutor: António Paço
Editor: Editorial Inquérito
Ano: 1990
379 págs., esg.
 
 



NORMAN MAILER

 
 
 
O FLUXO VITAL DA PALAVRA
 
 
O que levou Norman Mailer, durante dez anos, a escrever este romance, que, na edição portuguesa, tem mais de setecentas e cinquenta densas páginas, passado no Antigo Egipto, entre os reinados de Ramsés II e IX?
 
É evidente que esta pergunta, que, página a página, nos surge durante a leitura de Noites Antigas, se relaciona com a intervenção cultural que Norman Mailer vem exercendo na sociedade americana, polemizando com as suas manifestações mais intransigentemente puritanas e antidemocráticas. E esta intervenção é de tal forma enérgica que, no fundo, nos transmite a imagem de ser um produto genuíno da vitalidade contraditória e brutal dessa mesma sociedade. Como consequência, Norman Mailer aparece-nos como o mais típico escritor americano da actualidade, tornando-se quase impensável vê-lo debruçar-se sobre outro contexto socio-cultural.
 
Com a publicação de Os Nus e os Mortos, enorme fresco sobre a participação americana na Guerra do Pacífico, logo assumido como o romance da geração que nela entrou, Norman Mailer, com vinte e cinco anos, conseguiu saltar para a ribalta do mundo literário. Depois, em particular com os romances An American Dream e Why Are We in Vietnam?, os ensaios The White Negro e The Prisoner of Sex  e as reportagens The Armies of the Night e Miami and the Siege of Chicago, Norman Mailer vai irromper nas grandes questões das décadas de sessenta e setenta da sociedade americana, tais como o racismo, a guerra do Vietname, a contestação estudantil, os movimentos feministas e a chamada “revolução sexual”, etc.
 
Por fim, torna-se agora óbvio que esta atenção empenhada com a realidade americana conduziria a sua produção literária a uma nova fase, que pretende tratar de forma romanesca certos dramas “vividos”, exaustivas reportagens romanceadas ou, para utilizar uma expressão do autor, “romances de não-ficção” como O Canto do Carrasco.
 
Este género, bem marcante da actual literatura dos Estados Unidos, revela uma das pretensões literárias, de certa forma académica, mais caras a Norman Mailer: compreender, através da dissolvência das fronteiras entre a ficção e a não-ficção, a especificidade do contributo romanesco na interpretação da realidade.
 
Curiosamente, o projecto Noites Antigas vem afirmar o reverso desta mesma pretensão, completando-a: conseguir fazer transparecer uma realidade, de que só existem esparsos fragmentos informativos, através do trabalho de levantamento e coesão do romanesco.
 
Mas, é esse mesmo trabalho, que aposta em prolongadas e constantes narrativas mitológicas, em exaustivas descrições de ritos, de comportamentos e de ambientes, entendidos como fundamentais para a integração e habituação do leitor a um contexto socio-cultural tão diverso, que faz com que este romance se torne enfastiante e penoso.
 
No entanto, talvez em nenhum outro romance de Norman Mailer se encontrem algumas das suas preocupações maiores tão libertas da poeira factualista (decorrente de um tipo de intervenção na sociedade americana, que é, em termos ficcionais, bastante condicionante) como em Noites Antigas, corporizando-as, principalmente, na personagem central, Menenhetet.
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Assim, torna-se mais inteligível a sua tentativa de entender a agressão e a violência, em particular, nas suas formas últimas — a guerra e a morte -, como necessárias e determinantes a um “continuum’ de energia vital que se deve manifestar em todos os aspectos da existência, e que, portanto, explica também o caracter estruturalmente violento do comportamento sexual (daí a capacidade de Menenhetet em renascer do próprio sémen, desde que morra no momento de uma ejaculação fertilizante); ou a visão do tempo como um conflito entre o futuro e o passado (“Porque eu diria: tudo-o-que-está-para-vir pode estar a pesar sobre o-que-já-passou”, conclui-se a determinada altura), exigindo, de quem vive o presente, um radical empenhamento na sua existência (toda a composição de Noites Antigas se resume a uma longa revelação dos “sigilosos saberes”, que Menenhetet foi absorvendo no decorrer das suas vidas, ao faraó Ptah-nem-hotep, e que, por sua vez, vão servir, recebidos através do sémen, a um sobrinho homónimo, como preparação para a travessia da Terra dos Mortos, aquando do encontro das suas almas no além-túmulo).
 
Há, por isso, em Noites Antigas, um carácter de “suma” testamentária (“De acordo com a minha observação ninguém teme mais a morte que o mais inteligente dos escribas”, afirma, já quase no final do romance, Menenhetet), que reforça a dimensão demiúrgica da palavra, sempre assim considerada por Norman Mailer, visto que a entende como emanação pura desse fluxo de energia vital.
 
Mas, mesmo atingindo, em algumas passagens, soluções estilísticas muito belas, entre a prece e a evocação mítica, Noites Antigas, na maioria das vezes, dá-nos a impressão de ser um mero rol do repertório de informações já conhecidas sobre o Antigo Egipto, ou, então, a estrita afirmação de um falismo autoritário e violentador.
 
Fica-nos, por conseguinte, a ideia de que, sendo Noites Antigas um dos mais ambiciosos projectos da literatura da actualidade, este resultou num dos seus mais aparatosos falhanços. A tal ponto, que nos levanta a suspeita de que, reconhecendo contudo a importância ideológica da intervenção cultural de Norman Mailer na sociedade americana, este autor tenha sido em excesso sobrevalorizado.
 
Publicado no Expresso em 1985.
 
Título: Noites Antigas
Autor: Norman Mailer
Tradutor: Teixeira de Aguilar
Editor: Publicações Europa-América
Ano: 1985
427 e 339 págs., 17,67 € e 17,67 €
 
 



quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

GORE VIDAL 2

 
 
 
O LASTRO ONTOLÓGICO
  
Talvez devido à dimensão exótica e intrigante de certas épocas, resultante da distância temporal, o romance histórico goza hoje de uma sólida popularidade, proliferando, um pouco por todo o lado (e até em Portugal, onde estas coisas aparecem sempre um pouco tardiamente), os cultores de um género que conhece uma excepcional voga editorial — mesmo se, na generalidade, os resultados sejam bem aquém das expectativas.
 
Mas, sem retirar legitimidade à exploração, por si só, desta dimensão exótica e intrigante, não há dúvida que a ficção histórica mais estimulante é aquela que se assume, sem sofismas, como um continente adequado ao conjunto das inquietações pessoais do autor (e, naturalmente, vem-nos sempre à lembrança esse paradigma que é Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar), ou então, tal como na obra de Gore Vidal, que encara a sua componente temporal como instrumento privilegiado de compreensão da historicidade.
 
O romance deste autor agora publicado, Criação, integra-se, com Juliano, o Apóstata e outros, numa vertente da produção literária de Gore Vidal que, em complementaridade à sua “ficção política” (da qual foi editado há pouco o romance Washington, D. C.), procura compreender os valores determinantes e mais primordialmente subjacentes ao mundo contemporâneo.
 
Criação é um romance que, de imediato, impressiona pela ambição. Uma obra de seiscentas páginas, que desenvolve a sua acção no séc. V A. C., e em redor de personagens tão fundamentais como Pitágoras, Heródoto, Sócrates, Péricles, Zoroastro, Buda e Confúcio, provoca no leitor uma razoável desconfiança, em particular, porque o alarma para uma leviana tendência ahistórica de certa “intelligentsia” americana. Realmente é bem pouco provável que algum escritor europeu encarasse, com sensatez, um projecto de tamanha pretensão...
 
Contudo, e é o mínimo que é possível afirmar, não se pode dizer que Gore Vidal saia destroçado deste projecto. Genericamente, o romance caracteriza com rigor, e de modo fundamentado, a ambiência da época; e se existem, de quando em vez, alguns deslizes de construção (por vezes, certo ênfase propositivo transparece nos diálogos, evidenciando o seu carácter de mero artifício de exposição), eles não obstam a que a narrativa seja, quase sempre, empolgante, e a que a acção se mantenha bem verosímil e encadeada.
 
A acção resume-se à biografia de um persa, Ciro Spitama, neto de Zoroastro e embaixador itinerante de Dario e Xerxes no Ganges e na China, ditada a um seu sobrinho de formação grega, Demócrito. Este destino, entre várias peripécias, vai permitir-lhe contactar com figuras basilares do pensamento oriental e ocidental e, obsessivamente, interrogá-las sobre a sua concepção da origem do mundo e da vida.
 
Ao construir o romance como uma longuíssima fala de um persa a um grego, existe já, em Gore Vidal, uma opção bem reveladora. De facto, esta construção vai permitir que, com plausibilidade, se coloquem na boca do persa as críticas mais radicais à civilização grega, determinando o que nesta existe de deslizante perda para o Ocidente: o abdicar de uma interpretação mítica e abrangente do universo pela tendencial sobrevalorização do “logos”.
 
Por outro lado, ao definir a personagem principal como um persa estreitamente ligado à religião zoroastrista, o autor vai orientar o romance segundo uma dupla direcção narrativa: primeiro, tornar inteligíveis as inúmeras correlações existentes nas grandes religiões orientais que pretendem uma harmonização (e não uma explicação) do homem com a natureza, quer através da definição de uma praxis que o relativize na ordem social e cósmica (Confúcio), quer através de uma integração da precaridade da morte no ciclo renovador da vida (Buda); segundo, sublinhar a importância civilizacional da concepção da dualidade primordial (o Bem e o Mal) que, vinda de Zoroastro, se desloca para a Gnose e, depois, para o Cristianismo.
 
Neste sentido, Criação distancia-se da tendência maior da reflexão neste século que principalmente tem evidenciado o excessivo “peso” da tradição judaico-cristã nas formulações da contemporaneidade. De facto, o que neste romance se torna mais saliente é o papel das concepções religiosas que, na sua procura de absorver a “opacidade cosmológica”, têm contribuído para que o homem, mesmo perdendo sempre qualquer coisa em cada doutrina e deixando atrás de si um lastro de resíduos teóricos, tenha conseguido subsistir com a sua radical angústia ontológica e, ainda assim, construir sentidos conjunturais para a sua existência.
 
Note-se, por fim, que se observa nesta edição uma revisão menos cuidada (ao contrário daquilo a que esta editora nos tem habituado), por conseguinte, algumas gralhas e, aqui e além, uma pontuação de todo absurda. Mas demos o benefício de que é difícil manter um constante rigor numa obra tão vasta e esperemos que numa futura reedição (e este romance merece-o) estas pequenas falhas desapareçam.
 
Publicado no Expresso em 1989.
  
 
Título: Criação
Autor: Gore Vidal
Tradutor: Carlos Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
604 págs., esg.
 
 



quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

KINGSLEY AMIS

 
 
 
A LITERATURA COMO HALTEROFILISMO
  
Foi com a subida à cena da peça Look Back in Anger de John Osborne, em 1956, e com a tremenda polémica que motivou, que o grande público se apercebeu que aparecera uma nova geração literária, logo epitetada nos meios de comunicação social de “angry young men”, pela sua acentuada rebeldia em relação aos valores tradicionais do “establishment” britânico. Esta geração, com um humor muito cáustico e amargo, insurgia-se contra o modelo de democracia e de prosperidade que a Inglaterra dos anos cinquenta ostentava “para dentro”, como consequência gloriosa dos sacrifícios exigidos à população pela participação na II Guerra Mundial, e contra uma integração ilusória que aquele modelo demagogicamente permitia a elementos afortunados dos sectores sociais mais baixos.
 
Os “angry young men” vão, assim, caracterizar-se pela criação de um certo tipo de personagens, na generalidade jovens em ascensão social, oriundos de meios rurais humildes, mais ou menos desenraizados, e com uma dolorosa (e revoltada) consciência de que a sua afirmação social é só vagamente consentida. De facto, era este o elemento identificante das primeiras obras de autores como o já referido John Osborne, ou de romancistas como Kingsley Amis, John Wain, John Braine e Allan Sillitoe, e que Colin Wilson, no famoso ensaio The Outsider, procurou fundamentar em termos teóricos.
 
Mas, pelas brechas abertas por esta geração, irrompeu o mar tumultuoso dos “sixties”, modificando não só profundamente a paisagem social inglesa, como revelando também que esta geração era só uma equívoca e ocasional manifestação de um determinado contexto social. Em breve se tornou notório ser muito mais aquilo que os separava do que aquilo que os unia, e que o seu posicionamento era muitas vezes antagónico.
 
Um caso típico desta situação é o de Kingsley Amis: Lucky Jim (traduzido no início da década de sessenta para português com o título O Felizardo), o seu primeiro romance, foi considerado como uma das mais brilhantes obras iniciais da literatura inglesa deste século e, ao mesmo tempo, como um dos expoentes da produção dos “angry young men”.
 
Mas, de imediato, Kingsley Amis denunciou a pretensão de o identificar com os restantes autores desta geração e com as suas ambições de transformação social; e afirmou que o seu objectivo, ao redigir Lucky Jim, fora apenas o de construir um romance humorista que satirizasse certas situações de ambição social e de oportunismo.
 
Desde essa altura, Kingsley Amis elaborou uma vasta obra, muitas vezes de forma empenhada em termos conservadores, mas, quanto mais não seja, pela utilização permanente do humor e da sátira, brilhantemente iconoclasta e não de todo ajustável, apesar das constantes afirmações do autor nesse sentido, com os valores tradicionais. Com um grande sentido oficinal da escrita, a obra de Kingsley Amis abrange todos os géneros literários, sem pôr nunca em questão os modelos clássicos, e adquiriu, talvez por isso mesmo, uma grande respeitabilidade no meio literário britânico. A prova, de tudo isto, é que, mais de trinta anos passados sobre o início da sua carreira literária, obteve, em 1986, o Booker Prize pelo seu romance The Old Devils.
 
Contudo, algumas obras deste autor, como é o caso de O Crime do Século agora traduzido, sofrem excessivamente de uma concepção literária que tem alguma coisa a ver com a ultrapassagem de limites típica do halterofilismo. Note-se, por exemplo, que o próprio autor afirma, com bastante humor, na introdução a este romance, que os objectivos da sua elaboração se circunscrevem à superação de cada vez maiores dificuldades literárias, como se necessitasse de testar o seu pulso e a sua técnica.
 
O Crime do Século foi publicado pela primeira vez como folhetim, no “Sunday Times”, e pretendia, com os meios literários o mais depurados possível, apresentar um caso policial de enorme dificuldade de resolução e que envolvesse um número substancial de personagens e situações dramáticas. Assim, em redor de um conjunto de crimes perpetrados de forma semelhante e, eventualmente, pelo mesmo assassino, Kingsley Amis constrói uma hábil e complexa estrutura romanesca, muito empolgante, mas que, no final de contas, não passa (nem provavelmente pretende ser outra coisa) de um perfeito exercício.
 
Creio, por isso, que o leitor português merecia conhecer outras obras de Kingsley Amis muito mais interessantes do que esta, e, se possível, com uma tradução mais cuidada do que a presente. Por que não, por exemplo, traduzir The Old Devils, o último grande romance deste autor?
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
 
Título: O Crime do Século
Autor: Kingsley Amis
Tradutor: Wanda Ramos
Editora: Presença
Ano: 1988
159 págs., esg.
 



segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

CHESTER HIMES

 
 
 

HARLEM NEGRO

 
Quando Chester Himes começou a escrever romances policiais, já tinha abandonado os Estados Unidos e iniciado um longo périplo por toda a Europa, que terminou com largas estadias em França e em Espanha, onde velo a morrer. Este exílio, longamente acalentado, foi motivado, tal como sucedeu com Richard Wright e James Baldwin, por incapacidade de suportar o segregacionismo racial americano.

 
No entanto, esta fuga foi também estimulada pela descrença de Chester Himes no respeitante ao meio literário do seu país: ele começara a publicar os seus primeiros romances a partir de 1945, mas as peripécias e dificuldades em os editar e, depois, o seu insucesso, levaram-no a desistir de publicar nos Estados Unidos (mesmo continuando a escrever), por entender que as suas dificuldades em se afirmar no mundo literário americano eram resultantes da incompreensão deste em relação ao problema negro.

 
Foi, portanto, em desespero de causa e por razões de subsistência, que Chester Himes começou a escrever romances policiais (e só quando, em 1956, Marcel Duhamel lhe deu garantias de publicação na, mais tarde prestigiadíssima, colecção se“Sèrie Noire” da Gallimard), tendo iniciado esta nova fase da sua obra com For Love of Imabelle, o romance agora editado com o título Tumulto em Harlem. O romance obteve um sucesso imediato e foi louvado pela crítica (incluindo a norte-americana, uma vez que os romances de Chester Himes, com a auréola de sucesso obtida em França, nunca mais terão dificuldades de edição nos Estados Unidos) pela sua capacidade de inovação do género e pela sua integração da acção em meios sociais que, até aí, nunca tinham sido descritos tão “por dentro”.

 
De facto, as personagens deste primeiro romance (e dos posteriores, já que o autor vai continuar a utilizá-las) são “pobres-diabos”, subsistindo de expedientes, gente que vive em permanente deslize para uma tíbia marginalidade, figuras típicas de Harlem, esse bairro que, mais tarde, tanto sucesso vai ter nos livros e nos filmes do género. E a minúcia da contextualização das personagens é feita com tal preocupação de verosimilhança que qualquer pessoa se poderia deslocar naquele bairro negro, utilizando o romance como carta geográfica... Contudo, a caracterização das personagens e dos ambientes existe só na medida certa das necessidades da acção narrativa e é essa funcionalidade que lhe proporciona um vertiginoso ritmo.

 
Mas também é esta funcionalidade que condiciona Tumulto em Harlem ao estatuto de ser apenas um razoável romance policial: as personagens têm sempre uma linearidade unívoca e inalterável, a caracterização de ambientes é feita por justaposição de elementos de forma quase repetitiva, as situações resumem-se aos diálogos (às vezes, com algum humor) e a um descritivismo mecânico da acção das personagens. Curiosamente, o romance ganha um outro fôlego quando a violência se acentua (a partir do assassinato de Goldy, o irmão da personagem principal), como se a dramaticidade das situações libertasse o escritor dos seus meios restritos de narração.

 
Por isso mesmo, Tumulto em Harlem permite perceber, pelos seus condicionalismos narrativos, porque é que a literatura não-policial deste autor é bem menos interessante, chegando a confinar-se ao meramente documental (é o caso, por exemplo, da sua autobiografia). E porque é que, nos dias de hoje, a obra de Chester Himes tem sofrido uma reavaliação crítica que tem colocado este autor na sua dimensão certa: a de ser só um bom autor de romances policiais.

 

Publicado no Público em 1990.

(Foto do Autor de CORBIS).

 

Título: Tumulto em Harlem
Autor: Chester Himes
Tradução: Mariana Pardal Monteiro
Editora: Edições 70
Ano: 1990
254 págs, esg.