sexta-feira, 20 de outubro de 2017

DORIS LESSING

 
 
 

A FERIDA ORIGINÁRIA E A COMPENSAÇÃO IDEOLÓGICA

 

O terrorismo, pela imensa angústia quotidiana que provoca, tem motivado, nos últimos anos, uma intensa actividade editorial, onde se procura caracterizar o fenómeno. Semelhante circunstância advém, antes do mais, da certeza de que ele é resultante de dois factores culpabilizantes do mundo contemporâneo: a incapacidade da actual sociedade em integrar certos grupos, para que tenham outros meios de afirmação social e política que não seja a violência, e a consciência de que os argumentos, que legitimam essa violência terrorista, entroncam em algo essencial do processo filosófico e ideológico ocidental.

 
Doris Lessing, dentro da vertente realista da sua prolífera obra, resolveu também agora, em A Boa Terrorista, debruçar-se sobre este assunto. Mas, tal como nos restantes romances, onde pretende, no essencial, fazer o levantamento das motivações do mal-estar contemporâneo, o que lhe interessa é explicitar quais os mecanismos caracteriais que estão por detrás do terrorismo, em particular, aqueles que facilitam uma tão convicta adesão a princípios ideológicos que tornam, por consequência, natural o uso da violência.

 
Através das peripécias de um grupo de “squatters” de extrema-esquerda (que, enquanto ocupa uma casa devoluta e pronta a demolir, tenta entrar em contacto com o I.R.A., com o intuito de tornar-se um dos seus braços armados na Grã-Bretanha), vai percebendo-se que existe um denominador comum na maioria deste conjunto de personagens: eles são estigmatizados por uma “ferida” (que pode ser a negritude, a homossexualidade assumida como vida oculta, a histeria, etc.) que lhes impossibilita a integração social e os impele à desagregação psicológica e física. A ideologia torna-se, aparentemente, a via para suster essa desagregação, visto que lhes dá uma ilusão de omnisciência que justifica a sua marginalidade: sentem-se no palco da História e a euforia, daí resultante, não só lhes provoca uma completa inconsciência sobre os efeitos da sua acção, como também origina, no contraste com a realidade medíocre em que vivem, alguns episódios de intensa comicidade e que pontuam este trágico romance (recordo, por exemplo, a forma como são manipulados, pelos “profissionais” da violência, os míseros resultados mobilizadores das suas manifestações, a dimensão grupuscular dos seus Congressos, etc.). Mas, de facto, a ideologia é, através de um circuito perverso, o escoador fácil para as suas pulsões de auto-destruição, visto que a perfeição revolucionária é encarada como o estádio do martírio extremo. Neste sentido, Faye, a militante que se deixa imolar na própria bomba que lança, é a mais consequente, porque, com o seu acto, conseguiu, com uma convicção brutal, dar cabo da sua insuportável existência.

 
No contexto deste grupo, Alice, a personagem principal de A Boa Terrorista, distingue-se, visto que a sua “ferida” é resultante da sua sexualidade branca que, não só a leva a repudiar o sexo por ser uma “via de perdição”, como também a afasta do percurso (normalizado) dos seus pais. A sua necessidade de uma afectividade assexuada leva-a, por isso, a aproximar-se deste grupo de “squatters” e a empenhar-se (de forma quase solitária) na reconstrução de uma casa - espaço onde pretende constituir uma teia de relações de “camaradagem” que funcione como casulo em relação a um universo que lhe exige uma presença como figura sexuada. Talvez porque a sua “ferida” vai cicatrizando com a reconstrução da casa, Alice é a única que consegue perceber a dimensão absurda da violência que os outros membros do grupo necessitam como exigência visceral.

 
No fundo, é provável que este romance de Doris Lessing nada traga de inovador sobre o tema do terrorismo. Mas é inegável que a sua capacidade expressiva na pormenorização das situações (talvez, aqui e além, essa pormenorização se revele pouco funcional, tornando a leitura de A Boa Terrorista por vezes monótona) e, principalmente, a eficácia da sua estrutura dramática lhe dão uma dimensão invulgar e comprovam que Doris Lessing é também, entre outros aspectos, uma das mais importantes escritoras realistas da literatura contemporânea.

 
Por fim, gostaria de referir que, mais uma vez, as Publicações Europa-América revelam uma concepção ultrapassada da actividade editorial e um notório desrespeito pelas exigências do actual público leitor. Como é possível continuar a fazer edições onde a capa nada tem a ver com o conteúdo (alguém é capaz de explicar por que aparece um robot do Blade Runner na capa deste romance?), sem qualquer revisão, tipográfica ou outra, e com traduções feitas a granel?

 

Publicado no Expresso em 1988.

(Foto da Autora de Louis Monier).

 

 

Título: A Boa Terrorista
Autor: Doris Lessing
Tradutor: Bernardette Pinto Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
299 págs., € 17,67
 
 




quinta-feira, 5 de outubro de 2017

ERNST JÜNGER

 



A ARTE COMO MAUSOLÉU

 

Para lá da inevitável inquietação metafísica, aquilo que se espera de uma pessoa, que viveu de forma tão desabrigada como Ernst Jünger, é que não sinta necessidade de “preparar a sua morte”. De facto, era pouco previsível que alguém como ele, que sentiu os efeitos das “tempestades de aço” disseminados pela pele, que ergueu “falésias de mármore” à ascensão do nazismo, que foi obrigado a conviver com a morte na sua imposição mais brutal e anónima e que, por fim, se resignou, há mais de quarenta anos, a uma contemplativa “classificação” da natureza e dos homens, tenha sentido necessidade, aos oitenta e seis anos, de escrever um romance como O Problema de Aladino.

 
Mas este espanto (e irritação) inicial vai-se atenuando, tendo em consideração o modo como Ernst Jünger situa a morte no quadro dos fenómenos naturais. Se, desde Tempestades de Aço (In Stahlgewittern), Ernst Jünger considera a morte (e até mesmo a guerra) como a forma mais despojada e intensa da Natureza em nós, no Diário vai mais longe, ao entender que é a necessidade absurda de exorcizar a morte (e, paralelamente, o desejo de “mais força” na guerra) que tem provocado, no processo civilizacional, uma supremacia abusiva e descaracterizadora da técnica. Foi esta constatação, associada a outras rejeições da actual civilização (como, por exemplo, o papel dado às doutrinas e ao poder político, incluindo o estatuto totalizante do Estado moderno), que lhe abriu a via para um posicionamento contemplativo e reflexivo, abdicando de qualquer outro tipo de acção, e que, por conseguinte, está na base da maior parte da sua produção literária. Ora, é neste contexto que se tem de compreender o sentido de O Problema de Aladino.

 
O romance é constituído por um monólogo relativamente longo de um homem que percebeu que o seu “património” (isto é, as ligações à sua terra e aos seus ancestrais) é, cada vez mais, pura memória e que, por isso, desaparecerá com ele. E tal sucede porque a sociedade perdeu o sentido da morte e, em particular, da inumação, já que é esta que cria um vínculo à terra e permite, através da arte funerária, a perenização simbólica da morte. É a consciência deste facto que o leva a conceber e a realizar, com a ajuda financeira de um banqueiro, o projecto de criar uma necrópole universal na Anatólia, onde se garanta a perpetuidade do mausoléu. Por fim, o homem não só vai enriquecer imenso com este projecto, como consegue desviar o caminho da civilização com a sua utopia.

 
Mas não é apenas este “sonho” irónico que nos leva a afirmar que, com este livro, Ernst Jünger “prepara a sua morte”. É o seu final, directamente relacionado com o título do romance, que torna mais explícito o sentido último de O Problema de Aladino. O mago da lâmpada de Aladino não é só o instrumento absoluto do seu desejo; é a imagem soberana e imortal do próprio Aladino. Assim, quando o personagem principal recebe uma missiva de Phares (o seu “mago”) a oferecer os seus préstimos, percebe que este poderá concluir de forma ainda mais perfeita o objectivo da sua própria vida, e que, deste modo, “livre do seu fardo”, poderá recolher-se no Hotel das Águias (a morte?).

 
Compreende-se então que O Problema de Aladino é o fecho de abóbada da obra de Ernst Jünger e que este se encontra também preparado para se retirar para o Hotel das Aguias: a sua obra (Phares) continuará, como um “duplo” perfeito, o destino da sua vida. E, por outro lado, com este romance, fica também bem claro qual o objectivo de toda a produção literária do autor: a de perpetuar - como um mausoléu - contra a previsível evolução da civilização, um tempo e um modo de estar.

 

Publicado no Expresso em 1989.

 

 
Título: O Problema de Aladino
Autor: Ernst Jünger
Tradutor: Ana Cristina Pontes
Editor: Cotovia
Ano: 1989
123 págs., € 10,10