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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

JORGE IBARGÜENGOITIA 2

 
 
 
CONSPIRAÇÃO FRACASSADA
 
Quando, há quatro anos, a Editorial Caminho publicou o romance As Mortas de Jorge Ibargüengoitia, muito boa gente ficou impressionada com aquela centena e meia de páginas: descobria-se um autor pertencente a uma literatura (a mexicana), da qual só se conhecia uma bendita trindade (Rulfo, Fuentes e Paz), e logo com uma pequena obra-prima de crueza e humor, de realismo alucinado. As Mortas, com a sua ironia ao mesmo tempo trágica e gélida, conseguia realmente revelar por que motivo as componentes de mestiçagem cultural, de telurismo miserável, de suburbanismo concentracionário dão aquela configuração de carnalidade e morte, de realidade à beira do abismo, que caracteriza o universo social mexicano.
 
Por tudo isto, era com uma séria expectativa que se encarava a tradução de uma nova obra de Jorge Ibargüengoitia. E talvez também, por tudo isto, é que Os Conspiradores desiludiu tanto.
 
Os Conspiradores é uma tentativa de ficcionar uma das primeiras insurreições independentistas do México, a rebelião do padre Morelos, no início do séc. XIX, uma das manifestações que prenunciava a maturação social existente nesta colónia espanhola para a independência (que decorreu cerca de dez anos depois). Note-se, contudo, que Jorge Ibargüengoitia não pretendeu fazer obra de rigor historiográfico, e, por isso, deu outros nomes aos líderes do movimento e acrescentou situações que só se justificam pela liberdade criadora; mas os principais acontecimentos narrados e o seu contexto cronológico não deixam dúvidas quanto à insurreição descrita em termos romanescos.
 
Esta rebelião, como sucedeu noutras regiões, foi, em grande parte, resultante do descontentamento da população crioula (descendente dos espanhóis nascidos na colónia) por ser, de forma sistemática, preterida nas funções de gestão da sociedade colonial em relação à oriunda de Espanha. Mas se o estatuto da população crioula lhe dava condições para liderar o movimento independentista, o mal-estar era muito mais generalizado, tocando a população mestiça e índia, miseravelmente explorada nas grandes propriedades fundiárias e na produção mineira. Natural, por isso, que os acontecimentos provocados pala rebelião ultrapassassem os seus principais promotores, transformando-se num movimento contra qualquer ordem social e económica, de profunda inspiração religiosa.
 
Ao descrever toda esta situação, Os Conspiradores pretende também realçar certas contradições que estão na base de alguns dos acontecimentos mais dramáticos da história contemporânea do México: os brutais desníveis económicos que propiciam cíclicas explosões de fúria popular e repressões sanguinolentas; o carácter espontâneo e massivo do sentimento de rebelião, sempre asfixiado por uma radical escassez de meios para se impor, que irrompe de uma crónica resignação à miséria e às distinções sociais; a dinâmica insurrecional da religiosidade popular e o estatuto apaziguador e conservador da Igreja, etc. Por outro lado, como é notório na caracterização dos protagonistas desta rebelião, visa-se também demonstrar que são essas contradicções o que, no essencial, referencia o comportamento dos agentes individuais: entre o legalismo, a corrupção e o populismo, entre a megalomania militar e a impreparação política, os líderes dos movimentos revolucionários nunca conseguiram de facto, naquele país, dar um sentido abrangente à vontade popular, soçobrando sempre perante situações indomáveis e destruidoras.
 
Mas o carácter trágico deste tipo de acontecimentos assume sempre, neste romance, uma dimensão banal e vulgar. E isto deve-se, na nossa opinião, a dois factores. Em primeiro lugar, se, em termos históricos, pode parecer correcta a opção de dar uma configuração de “memórias” de um protagonista secundário ao material narrativo (tendo em conta a importância do memorialismo no séc. XIX), esta revela-se desadequada em termos literários, porque introduz um elemento de distanciamento emocional que esbate a dimensão “viva” dos acontecimentos narrados, e, ao mesmo tempo, desactiva a introdução do humor - instrumento estilístico fundamental em Jorge Ibargüengoitia -, na medida em que este aparece identificado com a posição parcelar do protagonista-narrador. Em segundo lugar, o estilo seco, pretensamente objectivo, e o linearismo narrativo (só entrecruzado de recorrências do narrador) retiram qualquer textura épica às situações descritas e transformam os seus protagonistas em títeres medíocres.
 
Por fim, gostaria de expressar aqui a convicção, dada a importância cultural de uma editora como a Caminho, de que se deve decerto a um mero lapso a inexistência na obra de qualquer referência ao tradutor.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Os Conspiradores
Autor: Jorge Ibargüengoitia
Editor: Editorial Caminho
Ano: 1990
195 págs., esg.
 
 
 



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

JORGE IBARGÜENGOITIA 1


 
 
 
A PRESENÇA LARVAR DA MORTE

 

A imbricada aculturação de uma milenar tradição índia, já, em grande parte, desfigurada pela colonização espanhola, com uma desconexa integração no mundo moderno deu ao México a imagem de um subúrbio exótico. Essa realidade, perpassada, ao mesmo tempo, pelo mais vincado ruralismo e por uma importação maciça dos valores urbanos da sociedade norte-americana, transformou-se num campo de contradições extremas que sobressaem como um rugoso relevo na história contemporânea do México. E atingiram tal grau de intensidade que toda a realidade mexicana parece ser possuída por uma presença larvar da morte: os conflitos sociais e intersubjectivos têm, por isso, uma constante dimensão telúrica, de um confronto de forças pré-conscientes.

 
Uma realidade com semelhantes características exerceu, como é natural, enorme fascínio sobre a literatura contemporânea (recorde-se, por exemplo, os casos de D.H. Lawrence e de Malcolm Lowry), ao ponto desta impressionar, de um modo incisivo, a imagem que, do exterior, se faz daquela. Por outro lado, é inegável que a força desta realidade delineou também vigorosamente os campos temáticos e, quase de certeza, as próprias estruturas formais da literatura mexicana. Ora, se se tiver em consideração que esta, desde sempre, teve um enorme ascendente no quadro das literaturas latino-americanas (recorde-se os casos conhecidos de Rulfo, Fuentes ou Paz), pode perceber-se como a partir da representação simbólica da realidade mexicana se enformou “parâmetros narrativos e poéticos” que têm uma irradiação significativa em toda a América Latina.

 
É neste contexto que o romance As Mortas de Jorge Ibargüengoitia (um autor nascido em 1928 e que faleceu, malogradamente, num acidente de aviação em Madrid, em 1983, que vitimou também outros intelectuais latino-americanos) parece encaixar-se perfeitamente. De facto, a obra deste autor já não sofreu os efeitos benéficos, em termos de divulgação, do chamado “boom” latino-americano, por lhe ser posterior, e, por isso, As Mortas torna-se uma notável revelação que ultrapassa em interesse os limites do género policial, para o qual o leitor poderá ser remetido, dada a colecção onde o romance foi publicado em Portugal.

 
Em redor da tentativa quase absurda de duas proxenetas em manter retidas as prostitutas de um bordel, após o seu encerramento forçado, provocando um alucinante ambiente concentracionário, onde, em catadupa, se vão sucedendo as cenas de violência e crime, as inumações clandestinas, as primárias cumplicidades de subsistência, Jorge Ibargüengoitia mostra, mais uma vez, como as situações de marginalidade efectiva funcionam como verdadeiros “daguerreótipos” desse embate de forças pré-conscientes que tem lugar nuclear na realidade mexicana.

 
Mas o mais interessante em As Mortas é as suas características estilísticas, já que o narrador tem a mera função de efectuar o levantamento dos acontecimentos, aproveitando-se de depoimentos de testemunhas, provas de tribunal, etc. Esta tonalidade de relatório, concisa e objectiva, serve na perfeição, através de uma descrição ironicamente ingénua, para realçar a própria crueza dos factos e a rudeza destas personagens, habituadas a saber que é o medo do sofrimento que está na base das relações de poder que estruturam uma sociabilidade fechada.

 
Por fim, convirá salientar a tradução de António Sabler que, de modo adequado, respeita os intuitos estilísticos do autor, assim como a capa de Henrique Cayate que, mais uma vez, realiza um belíssimo, na sua aparente singeleza, trabalho gráfico, “marcando” uma colecção que se tem mostrado como fundamental na divulgação da boa literatura policial e de ficção científica.

 

Publicado no Expresso em 1986.

 

Título: As Mortas
Autor: Jorge Ibargüengoitia
Tradutor: António Sabler
Editor: Ed. Caminho
Ano: 1986
184 págs, esg.