segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

KATE ATKINSON


JUST LIKE A ROLLING STONE

Desde há algum tempo que se torna visível, principalmente na literatura anglo-saxónica, uma proliferação de romances que pretendem caracterizar a vida das famílias, perseguindo a sua evolução ao longo de gerações. A proliferação destas sagas levanta-nos algumas interrogações sobre o seu sentido. Uma hipótese, que gostaria de formular - e que não anda longe das posições de Tobias Wolff ou de Jayne Anne Phillips sobre o papel da ficção e da poesia nos dias que vamos vivendo -, é a de que, perante a “desfuncionalidade” da literatura, esta estaria a confinar-se ao papel mínimo de testemunhar, através da recriação pela palavra, existências que a vertigem dos tempos nem uma pedra tumular deixa como sinal. Assim, a literatura voltaria a assumir um destino épico, justificando-se desse modo o retorno ao realismo. Porém, esse realismo seria distinto dos anteriores, porque não teria qualquer tipo de intencionalidade ideológica e o seu intervencionismo apenas seria consequência da nostálgica constatação de como essas existências partilharam o nosso tempo, em todos os cantos silenciosos do mundo, esforçando-se tragicamente por afirmar um vestígio de afecto contra a voracidade da morte.

Esta hipótese vem a propósito do primeiro romance da escritora inglesa Kate Atkinson, agora publicado no nosso país com o título Retratos de Família (versão livre do título original, Behind the Scenes at the Museum) e que foi muito bem recebido pela crítica e pelo público, ganhando o Whitbread Prize Book of the Year de 1995. Com a publicação posterior do romance Human Croquet, Kate Atkinson tornou-se em definitivo uma das ficcionistas da Grã-Bretanha cuja produção literária maior interesse motiva.

A atenção do leitor fica de imediato retida, em Retratos de Família, por duas “bizarras” originalidades, mas que, de certo modo, definem o “tom” do romance: o seu "arranque", com a narradora, a inconfundível Ruddy Lennox, a relatar o momento da sua própria concepção e a ironizar com o seu destino, e pela existência, em cada capítulo, de enormes “notas de rodapé” (no fundo, são outros capítulos) que expõem os passos marcantes do percurso dos antepassados femininos da narradora. Convém, no entanto, salientar que estas “bizarrias” não são gratuitas: elas pretendem reforçar o sentido, fundamental no romance, de que não há “rupturas” nesses destinos femininos, de que, na sua essência, eles são o mesmo percurso a desembocar no presente grotescamente banal da narradora.

A estrutura narrativa de Retratos de Família assenta, portanto, num conjunto de “quadros” de vida, definidos em termos cronológicos, da personagem principal (em particular, sucedidos na sua infância e adolescência), que remetem, através das “notas de rodapé”, para o que está “por detrás” deles, isto é, para o percurso dos seus antepassados. A conjunção destes elementos tem como resultado um amplo fresco sobre a vida da mulher das classes médias-baixas inglesas durante este século, onde constantemente pontua o absurdo, a desagregação emocional, a hipocrisia afectiva, o sofrimento gratuito (a voragem de homens nas Guerras Mundiais aparece como um marco tão trivial no destino destas mulheres como o casamento ou o nascimento dos filhos), o sexo desencantado.

Este olhar, quase sem remissão sobre a existência feminina, assume a dimensão da caricatura, em grande parte devido à utilização de um humor corrosivo que transforma as situações mais comuns numa disforme amálgama de tempo desprezível. O humor de Kate Atkinson neste romance é tanto mais impiedoso quanto brota de uma imaginosa (e bem fundamentada em termos documentais) capacidade de construção de situações e de uma inegável argúcia na análise comportamental. Pena é que, aqui e além, ainda tombe em algumas soluções que buscam a fácil hilaridade (recordo, por exemplo, a narrativa de um casamento em que o noivo cai sobre o bolo e que acaba numa batalha campal entre as duas famílias)...

Porém, deve ser salientado que a acutilância do humor de Retratos de Família supera de forma bem expressiva a artificialidade que, na generalidade, impera na mediania do chamado romance humorístico inglês. Primeiro, porque, de uma forma consistente, a autora consegue expor o “non-sense” com que a infância e adolescência encaram o comportamento adulto; mas, em particular, porque este humor advêm de uma amargura que parece nascer, não das circunstâncias triviais, mas das próprias fontes da vida. De facto, ele parece ser possuído pela clarividência de quem compreende que o grotesco existencial de todas estas personagens é resultante de ancestrais mágoas que se tornaram insustentáveis e desfigurantes (e, neste aspecto, são significativas as “amnésias” da narradora). Mas, por outro lado, este humor também nasce de quem aceita (e é este o sentimento vigorosamente expresso no final do romance) que a nossa única remissão possível, mesmo que cegos de culpa, furor e desperdício, é continuar a caminhar pelas ruas que nos calharam em sorte até ao fim. Tal como se deduz da canção rock...

Publicado no Público em 1998.


Título: Retratos de Família
Autor: Kate Atkinson
Tradução: Ana Faria
Editor: Planeta Editora
Ano: 1998
371 págs., € 16,46


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