sábado, 25 de fevereiro de 2012

CARMEN MARTÍN GAITE 2



OS SUBÚRBIOS DA MORTE


A publicação em Portugal dos últimos romances de Carmen Martín Gaite tornou possível que esta autora fosse conhecida no nosso país como nenhum outro escritor da chamada geração do “meio século” espanhol. Este facto, mesmo ponderando todos os méritos literários da sua obra, parece um pouco “injusto”, principalmente tendo em consideração que esta geração conta com nomes tão distintos como Luis Martín-Santos, Ignacio Aldecoa, José Manuel Caballero Bonald, Jesus Fernández Santos, Ana Maria Matute, Juan Benet, Rafael Sanchez Ferlosio, Garcia Hortelano, Juan e Luis Goytisolo, Juan Marsé e Francisco Umbral. Convém destacar que se deve a esta geração literária uma viragem decisiva nas letras espanholas, visto que, partindo ainda de uma perspectiva realista e de uma atitude crítica em relação à sociedade, optou por técnicas narrativas que estilhaçaram o modelo oitocentista e introduziu estratégias e problemáticas decorrentes do quadro estético e teórico da modernidade.

É inquestionável que, tendo ainda como referência o seu contexto geracional, Carmen Martín Gaite conseguiu, principalmente nas últimas duas décadas, um sucesso comercial que a transformou numa verdadeira instituição literária e editorial no país vizinho (em particular, após o sucesso comercial que foi o ensaio Usos Amorosos de la Postguerra Española). Decerto que as principais constantes temáticas que aparecem espelhadas na sua obra não são estranhas a este sucesso: uma previsível preocupação com a estrutura emocional e afectiva da mulher numa sociedade fortemente patriarcal como a espanhola, uma atenção muito centrada no modo como as feridas da memória e a incomunicabilidade podem, a todo o momento, fazer descer a lucidez abaixo da linha de água da realidade e, como pano de fundo permanente, uma irredutível perplexidade com a absurda condição da existência.

Mais uma vez, o último romance de Carmen Martín Gaite editado no nosso país, O Estranho É Viver, não escapa a esta problemática. Saliente-se que este título parece programar toda a encenação dramática da obra, o que por si só não seria criticável, se este artifício de glosa não fosse, muitas vezes, demasiado explícito e condicionante.

Como visão geral, pode afirmar-se que O Estranho É Viver é um romance sobre o luto. A trama desencadeia-se com a visita da narradora - uma arquivista, ex-compositora de música “rock”, que, de uma forma obcecada, mas um pouco diletante, se dedica a investigar a vida de um aventureiro setecentista espanhol que morreu nos calaboiços por ser incapaz de distinguir a realidade dos seus próprios delírios - à clínica onde está internado o avô, já moribundo e com quebras de consciência. Aí, vê-se confrontada com a solicitação do médico para que aceite, por compaixão, substituir a mãe, que também faleceu recentemente e com quem ela mantinha uma relação difícil, nas visitas ao doente, de molde, a que este, nos últimos dias de vida, não sofra o doloroso impacto da morte da sua filha.

Esta situação obriga a narradora não só a um obsessivo confronto com a memória da mãe, como a embrenhar-se nos espaços em quem ela viveu e com as personagens com quem conviveu, mergulhando-a num dia-a-dia alucinado que a coloca à beira da loucura. No fundo, sente-se transportada para territórios que ficam sob a sombra da “asa da morte”, dando-lhe uma visão fulgurante do valor específico da existência.

Toda a acção divagante da narradora ao longo de O Estranho É Viver tem, por isso, um duplo sentido: primeiro, “prepará-la” para assumir, por momentos, o papel da mãe e conseguir, através do “médium” perturbado que é o avô, ouvir o que nunca ouviu da boca da mãe e dizer-lhe o que nunca disse (e o verdadeiro “clímax” do romance, que é a última visita ao avô, atinge uma “intensidade” que é verdadeiramente invulgar na já vasta obra de Carmen Martín Gaite), num “ajuste de contas” que, por um lado, é mortífero, por outro, redentor, já que liberta a sua consciência emocional das “teias da morte” e a predispõe a viver a sua própria existência; segundo, porque, no meio daquele período em que a narradora sente um impulso imperioso para se enredar no devaneio, em se isolar ou em mentir, esta compreende como a “realidade espectral” da morte está profundamente enraizada na consciência de cada um (e, por isso mesmo, a “estranheza” da vida de que fala o título deste romance). O que a narradora percebe, através do insólito da experiência que está a viver, é que, ao contrário da concepção clássica que entende a morte como o estádio que apaga qualquer significado à vida, o reino da morte é uma imensa planície enevoada a perder-se no tempo e a vida uma “periferia” que, pela sua simples existência, dá sentido a tudo, até à própria morte.

Por conseguinte, O Estranho É Viver, ao pretender ser uma reflexão sobre a dimensão da morte, revela-se uma obra de um enorme optimismo (saliente-se que até a conclusão do romance - em que, como sinal da sua pacificação com o passado, a narradora engravida – poder-se-ia transformar num “cliché” sentimentalista, se a autora não conseguisse, através de uma segura economia narrativa, tornar a situação aceitável). Em conclusão, este romance sobressai com uma das obras mais conseguidas e interessantes que Carmen Martín Gaite realizou nos últimos tempos, e onde, curiosamente, até alguns dos seus defeitos estilísticos e narrativos mais comuns (uma certa propensão para dissolver a estrutura da obra num registo de divagação incontrolada e a opção por dinamizar a trama com situações no limite do plausível) estão bem integrados e legitimados.


Publicado no Público em 1998.


(Foto da Autora de EFE)



Título: O Estranho É Viver
Autor: Carmen Martín Gaite
Tradutor: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editor: Difel
Ano: 1997
233 págs., € 12,62




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